Se eu pudesse arriscar, diria que o cinema de super-herói foi pela primeira vez efetivamente legitimado como algo além de um subgênero infanto-juvenil com Batman: o cavaleiro das trevas (dir. Christopher Nolan, 2008). O filme conquista isso atendendo a dois requisitos: 1- o reconhecimento das adaptações de super-herói como um gênero hollywoodiano de padrões de texto, direção e produção definidos; 2- o reconhecimento de si mesmo como externo a esse gênero. Interessa mais à trilogia de Nolan ser entendida como thriller policial assim como interessa mais a Logan (dir. James Mangold, 2017) ser lido como um faroeste moderno (Mangold já expressou publicamente sua intenção de desvincular sua obra do gênero, afirmando que não gosta de filme de super-herói).
Seguindo por esse mesmo caminho, a série Deadpool é a própria caricatura dessa aversão ao gênero de super-heróis produzida dentro das exigências do gênero. Esta é a franquia para se alegar a exceção que confirma a regra, mas apenas no que se subentende que a regra, na verdade, não permite exceção nenhuma, apenas uma simulação da exceção. E é assim que Deadpool (dir. Tim Miller, 2016) e Deadpool 2 (dir. David Leitch, 2018) funcionam, como o discurso da indústria que compreende a si mesma, e está sempre um passo adiante, guiada pela dádiva da autoconsciência.
É sempre interessante observar esse esforço. Podemos lembrar do antigo slogan do canal por assinatura: “Não é TV, é HBO”, a reivindicação para fora da televisão tradicional protege a produção do canal de ser confundida com o gênero de que faz parte. Deadpool 2 se protege ao afirmar que é um filme. Mas de que ele se protege? De uma crítica que tende a apontar as repetições do gênero? Da fadiga do público? A bem da verdade, o cinema de super-herói não está em risco. Cada nova produção da Marvel recebe melhores críticas e resultados de bilheteria que a anterior. A Warner está tendo dificuldades para encontrar o tom do seu próprio universo cinematográfico, mas não vai desistir dele tão cedo (a mais extrema das possibilidades seria um novo reboot) — e sua produção televisiva está longe de apresentar problemas para o estúdio.
Contra o que Deadpool parece lutar tão entusiasmadamente para mim é um mistério. Seria a suposta patrulha do politicamente correto? Porque, apesar de se construir formalmente como uma exaltação da masculinidade heterossexual, do homem deixado livre com seus palavrões e obsessões falocêntricas, em um universo que a(o) outra(o) é sempre parceira(o), compreensível com essa continuidade da puberdade, Deadpool 2 se esforça também para oferecer um texto que atenda aos novos padrões industriais de respeito às minorias (apesar de seus tradutores não disporem da mesma atenção: em uma cena em que a personagem de Morena Baccarin diz que os nomes Krystal e Kevin são nomes de strippers, a legenda traduz uma vez como puta e a outra como frutinha). É curioso, inclusive, que Reynolds defina o herói como pansexual enquanto a produção não arrisca que qualquer sugestão disso se dê fora de um trabalho de humor.
Mas, por outro lado, se o gesto de olhar para a câmera (e todas as ferramentas que o filme de que o filme se utiliza para manter esse olhar) é objetável no primeiro filme e cansativo nesta sequência, pelo menos Ryan Reynolds é o ator certo para sustentar uma piada contada várias vezes. Diferentemente dos filmes do universo cinematográfico da Marvel, em que os atores parecem geralmente desconfortáveis com as digressões cômicas do texto, ou são forçados a entregar as falas de humor da forma mais plana e óbvia possível, Reynolds sabe se utilizar das sutilezas de uma comédia verbal.
A questão, no entanto, é que se pênis e penetração não te parecerem particularmente engraçados, você pode estar rindo eventualmente e virando os olhos com mais frequência. A conclusão a que finalmente se chega para as dúvidas que o filme suscita (do que ele quer se proteger e para que tanto esforço?), é que Deadpool 2 atende a um público que não se vê representado nesse gênero em desenvolvimento do cinema de super-herói. Não há piadas de pênis e penetração o bastante nas outras opções da programação dos cinemas, a masculinidade não é tão hiperbólica (apenas um pouco) e não há personagens como os deste filme numa enorme parcela das produções midiáticas disponíveis por aí.
Corro o risco de cair muito próximo do terreno do “Eu sei, eu também estou dizendo isso” que o filme abrange. Mas, enfim, não é justamente isso que esse filme sustenta, da sua concepção de marketing à recepção pela crítica? A fala “precisamos de mais Deadpool” ligada a um discurso de que este filme é uma raridade no gênero não sustenta, justamente, que uma produção como essa é uma alternativa às suas muito similares opções? O caminho de volta de Deadpool 2 conduz apenas à próxima produção de super-herói branca, masculina e heterossexual. É típico que este filme performe o grande risco, dispondo-se a um ultraje que é mais uma fantasia criada para justificar a si mesmo do que uma oposição de fato, a exceção à regra nenhuma da hegemonia.