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OPINIÃO
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Parto aqui de três recordações. A primeira, e mais recente, é de um almoço em família, quando uma tia muito querida anunciou que, por causa da série O Mecanismo, cancelaria o serviço de streaming Netflix. A segunda, alguns meses antes, é da minha própria maratona da segunda temporada Stranger Things, uma série que ficou bastante conhecida por ter sido montada a partir de, digamos, sugestões do algoritmo do canal. E a última, enfim, é do cancelamento de Sense8, que foi respondida com protesto dos assinantes (o vídeo de um beijaço a favor da série circulou na época), proposta de uma produtora pornográfica de dar continuidade à obra e carta emocionada da criadora Lana Wachowski.
Todos esses momentos poderiam ser coletados (e foram, por diversos críticos culturais) como uma sátira das nossas relações contemporâneas de consumo midiático. Acusa-se os espectadores de certa ingenuidade para lidar com as produções da indústria cultural, ou, em um sentido mais duro, de uma prática de consumo alienada da prática de produção. A Netflix, uma empresa famosa, inclusive, por sua dedicação especial ao trabalho de marketing, aparece, nessa leitura crítica, como se construindo uma manipulação muito eficaz a partir desses produtos. Dessa maneira, ela pareceria dar ao público o que ele quer, enquanto esse público aceita, entusiasmado, qualquer coisa que ela produz.
E então temos O Mecanismo. A Netflix, pela primeira vez em suas produções brasileiras, apresenta um material nada isento das discussões macropolíticas do país. Como a série faz da Polícia Federal os protagonistas apolíticos das investigações da Lava Jato, uma parte dos assinantes de esquerda cancelaram o serviço, vinculando-se a um tipo de boicote. A resposta crítica a essa manifestação foi a lembrança de que, dificilmente, esse gesto surtiria algum efeito na empresa (afinal, uma das logos da Netflix é “Assista onde quiser. Cancele quando quiser.”, ou seja, o descompromisso do assinante já é parte da proposta do serviço).
Essa crítica ao boicote vem acompanhada de um tipo de lição de moral, o entendimento de que o consumo particular, individual, pouco interessa ou se relaciona à indústria cultural massiva. Somos, por essa perspectiva, a massa uniforme e passiva, que pode ter, facilmente, seus gostos generalizados e devolvidos como um produto preparado em algoritmo. Essa seria, então, uma relação de poder já resolvida, sem agência. Não há nada que poderíamos esperar da Indústria Cultural a não ser a continuidade de uma relação dessa natureza.
Mas é só isso que podemos esperar, realmente? Volto quase duas décadas para a estreia das irmãs Wachowski como diretoras no cinema. Em 1999, o sucesso do seu Matrix perturbou a forma mesma do cinema mainstream de ação e ficção-científica. Não estou me referindo aqui ao discurso do filme (apesar de Lana Wachowski ter se identificado publicamente com o marxismo), mas a sua forma, um tipo de desconexão da expectativa de realismo, de exposição do trabalho de computação gráfica e da apresentação do material fílmico como absolutamente maleável que foi precedente para basicamente todo blockbuster contemporâneo.
A apreciação de crítica e público desse primeiro filme foi seguida por um gradativo fracasso nas suas outras produções. Speed Racer (2008), A Viagem (2012) e O Destino de Júpiter (2015) foram de um grande lançamento mal recebido à margem (ridicularizada) da ficção-científica hollywoodiana. As Wachowski se juntam à Netflix, então, como criadoras respeitadas que não conseguiriam emplacar novos projetos na indústria tradicional de Hollywood. O serviço, então, que se apresenta como uma nova Hollywood (ou, pelo menos, uma vertente mais fluida da indústria cultural) lançam Sense8, uma radicalização do formato das Wachowski e uma espécie de marco para a tomada de atenção à política de representação. Aparentemente, as cineastas poderiam fazer o que não teriam espaço para fazer no cinema, até que a série é cancelada pouco tempo depois da adiada estreia da sua segunda temporada.
Acho que a Netflix tem exposto a indústria cultural no centro do capitalismo especulativo. Seus produtos são apostas político-econômicas e eles são sempre apresentados como destinados a um consumo mesmo descartável — a cada semana uma nova temporada para sua dedicada afeição. A ideia de uma coerência entre os produtos (mesmo uma política e representativa) nunca foi uma verdadeira proposta do serviço, assim como a ideia de uma criação original, absolutamente autoral.
medida em que a Netflix expõe a própria máquina produtiva, no entanto, ela confronta também os discursos de coerência e originalidade da indústria cultural como um todo. A Netflix se “arrisca” mais porque seus produtos não representam, separadamente, risco nenhum. É mais fácil testar o produto, trocá-lo por outros, lançar os seus discursos também a essa especulação. De certo modo, o que Hollywood tem feito desde a primeira era dos grandes estúdios agora está à vista.
Como devemos lidar com essa produção cultural massiva? Quais são os parâmetros para leitura e consumo desses produtos? Que agências são possíveis a essa produção? Essas são questões que se repetem nas três circunstâncias mencionadas no início do texto. Essa relação não se encerra no método de produção, assim como não se encerra no consumo. E não me parece que essa contradição pode ser facilmente resolvida. Da mesma maneira, precisamos levar essas problemáticas adiante a cada fronteira da indústria cultural. Curiosamente, a Netflix se tornou o símbolo de uma contradição bem mais antiga. Se não por mais, deveríamos aproveitá-la pelo menos como tal.