As visões do fim do mundo em “Hora da Aventura”

A série animada da Cartoon Network prevista para se encerrar neste ano se apegou, por toda essa década, a uma dada imagem do fim do mundo: a Terra de um pós-apocalipse nuclear e personagens que emergem como resultado das chuvas ácidas

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Eu lembro de ter sido informado pela primeira vez do fim do mundo em uma aula de ciências, na segunda série. A professora mostrou algumas imagens do Sol, falou de sua idade milenar e de quanto tempo se esperava que o astro ainda viveria antes de se apagar. Nessa escola católica, as aulas de ciências aconteciam em um prédio diferente do das outras disciplinas, no mesmo das aulas de informática e por onde circulavam os estudantes de ensino médio. Era o espaço dos duros fatos científicos, das verdades comprovadas da vida — ou ao menos assim parecia a uma criança 7 ou 8 anos. A certeza do fim do mundo, como a certeza da própria morte, parece ser uma das grandes descobertas traumáticas de infâncias privilegiadas. O fim das coisas confronta o apego ao tempo presente, desestabiliza a aparência de um mundo pronto para atender a cada uma de suas necessidades e abre caminho para uma frustração contínua. Sempre me incomodou a ideia de que a função de um produto infantil (na televisão, no cinema, na literatura ou na música) fosse apagar ou adiar essa frustração. A higienização da mídia infantil (que tem cada vez mais espaço, apesar de obras que se opõem a isso continuarem a ser produzidas aos montes) não parece proteger as crianças, mas mentir para elas. O fim de Hora da aventura, série animada da Cartoon Network prevista para se encerrar neste ano, testemunha um dos grandes marcos nesse sentido. Em suas dez temporadas, a série apresentou uma enorme variedade de abordagens experimentais com o texto e a estética da televisão seriada e do audiovisual infantil. E ela fez isso se apegando, por toda essa década, a uma dada imagem do fim do mundo: a Terra de um pós-apocalipse nuclear e personagens que emergem como resultado das chuvas ácidas. É uma noção fundamental à série o entendimento de que a Princesa Jujuba, a Princesa Caroço e o reino do povo doce não habitam outro planeta ou um universo mágico distinto, mas uma Terra em que a humanidade está quase totalmente extinta. Os eventos históricos que conduzem a esse momento no tempo de vida da Terra não estão claros. A série nos revela apenas alguns fragmentos de um passado inapreensível e, em alguns momentos, de um futuro ainda mais inóspito. A continuidade da História é apresentada por Hora da aventura não como uma solução para os conflitos do presente, mas como uma tragédia inevitável. O contexto da série é, afinal, o de um apocalipse que se estende por pelo menos um milênio. Os registros desse mundo anterior, ainda no princípio de seu fim, são mantidos aos pequenos pedaços (cartas, fotos e outros objetos de afeto) por seus sobreviventes mais distantes, Marceline, uma vampira reclusa, e o senil Rei Gelado, este já totalmente alienado de seu passado. A condição dolorosa do esquecimento, inclusive, é um tema a que a série retorna com alguma frequência. Por exemplo, na relação do cachorro mágico Jake com seus filhos, que, por sua natureza híbrida, crescem rápido demais. A estranha juventude desses personagens, que entram na vida adulta com um ano de vida, aparece na série como um obstáculo ao seu entendimento do espaço onde vivem e da sua História. O pessimismo sentimental de Hora da aventura está sempre rompendo o tecido da série. Temos a impossibilidade de redenção do pai de Finn, o garoto protagonista; a loucura irreversível do Rei Gelado; e a solidão persistente de Marceline. Há também a incapacidade de todos os personagens de arcar com suas responsabilidades pelo outro — Jake para com seus filhos; Jujuba com seu reino (e com Marceline); Marceline com o Rei Gelado; e, no passado, o Rei Gelado (então Simon) com Marceline. Os esforços, embora absolutamente necessários, para se resistir ao fim do mundo, dão-se sempre a um custo pessoal e nunca obtêm conquistas completas. E essa experiência de estar junto nas ruínas de tudo é bastante marcada pelo afeto que os personagens compartilham um pelo outro. O texto da carta de Simon representa bem diretamente essa comunhão entre a devastação da vida comum e a amizade dos sobreviventes no que é, para mim, o momento mais bonito da série. “Marceline, somos só você e eu nos escombros deste mundo? Isso deve ser tão confuso para uma garota pequena...”, lê uma Marceline em lágrimas para um Rei Gelado totalmente desassociado do seu passado. Para seu público, infantil ou não, Hora da aventura propõe que se enfrente um conjunto distinto de monstros no guarda-roupa: os fantasmas da História, que perturbam o presente com uma visão confusa do passado e um futuro determinado mais pela perda do que pelo progresso. A série deve, em seus últimos episódios, tentar juntar mais algumas peças desse apocalipse duradouro, mas espero que eles mesmos não descubram mais do que alguns outros fragmentos, que se encontre uma maneira de encerrar com a manutenção dessa inquietante incerteza. O que há na História para além do fim? O que resta do espaço quando ele todo deixa de ser iluminado pelo Sol? Sem respostas, que os personagens sejam deixados uns aos outros, mirando o desconhecido enquanto dão conta de cada momento.