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OPINIÃO
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Nas colunas que antecederam a esta, abordei alguns aspectos econômicos – alguns problemas cruciais que teremos de superar, se quisermos reconstruir o Brasil, o que significa: construir uma Nação. Não é necessário escrevermos “nação soberana”, pois é evidente que não existe Nação independente, na qual suprir as carências de seu povo não seja o primeiro objetivo do Estado, mais que do governo. A Nação, afinal, é, fundamentalmente, o seu povo.
Mas isso nos leva a uma conclusão quase tácita: não temos, hoje, uma Nação que possamos chamar de nossa. Apesar disso, temos o nosso povo, o povo brasileiro, que não deixou de existir apesar da devastação neoliberal da economia, e, evidentemente, da destruição a que o Estado nacional está sendo submetido.
Porém, a consequência que podemos tirar desse divórcio litigioso entre o povo e a política ainda dominante, é que o Brasil está sob ataque.
Em nenhuma outra área isso é tão evidente – eu diria, até mesmo, escandaloso - quanto na área cultural.
Não se trata, como é fácil perceber, nem mesmo de uma importação da cultura norte-americana, problema que preocupava alguns em outras épocas, apesar da nossa capacidade de absorver, em moldes brasileiros, as contribuições de outros países.
Longe disso, o que temos hoje não é, nem mesmo, uma substituição de formas culturais brasileiras por formas culturais estrangeiras.
Se fosse isso, seria ruim – ainda que jamais se pretendeu que tivéssemos uma cultura sem influência de outras culturas.
Entretanto, o que existe, hoje, no Brasil – estou me referindo ao que aparece nos meios de comunicação – é pior: o que ali se oferece ao povo é um arremedo, uma caricatura do que de pior existe na indústria “cultural” norte-americana. Em geral, algo que beira o ridículo e a indigência espiritual.
Temos, sem dúvidas, muitos autores e produção cultural de qualidade. O problema está no bloqueio a essa produção e a esses autores.
Parece claro que uma política de governo, no plano cultural, para ser popular, democrática, nacional, terá como foco, de saída, o estabelecimento de canais para que a produção ora bloqueada possa se expressar, possa ser conhecida, divulgada.
Nesse sentido, seja como for, não há como ver esse problema, sem resgatar algumas coisas de nosso passado. Porque não estamos partindo do zero. Não vamos fundar uma “nova” cultura nacional. Temos toda uma experiência anterior que não pode ser anulada – e jamais o será.
Mas, nos limites deste espaço, apenas gostaria de lembrar algumas poucas coisas.
A primeira é que nossos gêneros musicais populares – o samba, mas também os outros, inclusive o baião e demais gêneros com origem no Nordeste – tomaram a sua forma definitiva na década de 30 do século passado.
Porém, essa questão cultural vai bem além da música popular – o que já seria de uma importância gigantesca.
Poderia continuar enumerando artistas e outras formas artísticas – desde Villa Lobos a Guignard ou Portinari ou alguns que surgiram um pouco depois, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, por exemplo – e o resultado seria, aproximadamente, o mesmo: constatar que o desenvolvimento nacional foi também o desenvolvimento da cultura nacional.
Independentemente da posição política desses pontos marcantes da nossa história cultural, é evidente que o nacional-desenvolvimentismo, o período que se abre com a Revolução de 30 e vai até 1964, foi decisivo para esse florescimento da cultura brasileira.
Temos, então, um avanço na própria liberdade de manifestação cultural: não é por acaso que foi o presidente Getúlio Vargas quem legalizou a capoeira, antes tratada como atividade de marginais, e, claro, de “negros” – como se a descendência africana no Brasil não fizesse parte do país.
Resta dizer que havia uma política cultural – e uma política cultural eminentemente nacional.
Isso foi bem expresso na última mensagem do presidente João Goulart ao Congresso Nacional:
“... será assegurado todo o apoio do Governo aos movimentos e campanhas de cultura popular, partam de fontes oficiais ou sejam fruto de iniciativas particulares. ”
“Compreendeu-se, finalmente, que os textos constitucionais e as leis protetoras dos economicamente mais fracos nenhum efeito possuem se eles não forem preparados, culturalmente, para o exercício pleno de seus direitos e para o correto desempenho de seus deveres. Sem tal condição, os direitos constitucionais são apenas letra morta, e inútil será esperar que todos possam oferecer, para o progresso político e social, a contribuição que seria lícito deles exigir.”
“... toda capacidade ociosa das instalações e do pessoal de nível universitário será usada para habilitação profissional de nível médio, para campanhas de cultura popular e difusão de conhecimentos básicos entre o povo...” (João Goulart, Mensagem ao Congresso Nacional, 15/03/1964, págs 163, 165 e 170).
Quando do golpe de 1964, as instituições culturais – ISEB, a Rádio Nacional, a Rádio do Ministério da Educação e Cultura e aquelas que pertenciam a entidades populares, em especial o Centro Popular de Cultura, da UNE - foram alvos da reação desde o primeiro momento.
A questão é que um regime que tinha por função tirar o país dos trilhos da independência e do desenvolvimento nacional, não podia conviver com a afirmação de uma cultura nacional.
Mas, por que fiz esse breve - e incompletíssimo, pois, por exemplo, nem falei de Glauber e do cinema novo - rescaldo do passado?
Porque, se já tivemos uma cultura nacional, sob todos os pontos de vista tão pujante, tão florescente – e isso se deu sob a égide do nacional-desenvolvimentismo, do trabalhismo nacionalista – nada impede que a tenhamos novamente.
Longe de nós pregar a volta ou a repetição do passado, até porque é inútil.
A questão é, precisamente, outra: como desenvolver a cultura nacional nos dias de hoje.
Que ação deve ter o Estado no sentido de contribuir com aqueles que produzem e condensam a nossa cultura: escritores, compositores, artistas plásticos, atores, cantores, etc.?
Podemos ter um excelente ponto de partida – pois estou mais lançando uma questão para ser debatida do que apresentando soluções, que somente podem surgir da colaboração de todos – se fizermos o contrário do que está sendo feito. Pois a aparente inação do governo nesta questão é, na verdade, o estabelecimento de um privilégio aos monopólios da indústria cultural, via de regra, externos ao país e à sua cultura.