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OPINIÃO
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A metade progressista do Brasil se sentiu de alma lavada com o desfile da Paraíso do Tuiuti. Ver patinhos batendo panela como fantoches da mídia foi uma catarse visual, ao vivo, na tela das redes golpistas de televisão. A transformação do entendimento geral em imagem é poderoso, calou os comentadores/fantoches da Globo e doeu fundo nos coxinhas que acreditaram, em algum momento do passado, estar contribuindo para um país melhor. Podem ter certeza que ali foi vencida uma das batalhas históricas na guerra pela narrativa de um país chamado Brasil.
Mas nem a guerra acabou, nem saímos das cordas, nem esta foi a maior contribuição do reinado de Momo, apesar de ser certamente a mais imagética.
O poder transformador do carnaval vem de longe. Em séculos passados a festa que antecede a quaresma já fazia críticas à elite. Arlequim e Colombina apareceram como ironias à nobreza, antes de se tornarem parte da paisagem. Vale imaginar que patinhos batendo panelas vão também, um dia, se tornar parte da paisagem. Ou mesmo que isto não aconteça, o prefeito Crivella fez um enorme favor às forças transformadoras do carnaval ao ameaçar cortar o subsídio municipal da LIESA. O enfrentamento puritano do prefeito do Rio de Janeiro teve como resultado libertar as escolas da autocensura. Com a perspectiva de não ter patrocínio as escolas certamente se sentiram mais livres para que seus carnavalescos carregassem na crítica social. Crítica esta que sempre esteve na história do carnaval, uma festa cujo componente popular foi e continua sendo reprimida pela polícia, enquanto o componente elitista é liberado para por exemplo consumir todo tipo de substância ilícita nos salões nobres.
Em Belo Horizonte aconteceu o mesmo há quase uma década atrás. Quando o prefeito Marcio Lacerda resolveu cobrar autorizações e taxas pelo uso do espaço público, um grupo resolveu protestar encenando uma praia na Praça da Estação, com isopor, cadeira, guarda-sol e água do chafariz em pleno cimento. O sucesso do Praia da Estação estimulou pequenos blocos a tomarem as ruas de Belo Horizonte. Se São Paulo era o túmulo do samba, Belo Horizonte era o paraíso dos que odeiam o carnaval e podiam andar nus pelo meio da rua nos quatro dias em que todo mundo ia para a praia ou para as animadas cidades do interior. Eu mesmo passei os carnavais da juventude em Diamantina, Ouro Preto, Oliveira e Boa Esperança.
De repente, a BH que hibernava durante o carnaval foi acordada por bloco tocando Wando, bloco tocando Belchior, bloco tocando Skank, e gente, muita gente saindo pelas ruas, durante o dia. Simples assim. Tomam as ruas com bateria e cores e vão cantando e dançando pela cidade, desafiando um prefeito autoritário.
O carnaval sempre foi festa transgressora, sua origem está em justamente desobedecer ao máximo a opressão culposa da quaresma. Quatro dias com Baco para resistir a quarenta dias com o Bispo. Nas cidades brasileiras, vale sempre lembrar, o carnaval sempre foi binário: uma festa na rua e outra dentro dos salões, uma festa dentro e outra fora da corda.
Era isso o que mais nos atraía nas pequenas cidades de Minas Gerais, a festa na rua, a dita tranquilidade de andar bêbado e fantasiado pelas madrugadas, ainda que só por 4 madrugadas. Fugíamos da cidade grande como a classe média brasileira foge das ruas. A rua era o território dos marginais, do outro, dos não-iguais. Importante notar que esta rua dura, maltratada pelo automóvel que a domina, cobrindo de cinza escuro o chão e outros 50 tons de cinza paredes, arvores e postes, sempre foi o espaço do povo. Suas calçadas quebradas e suas paredes cinzentas são o espaço cotidiano dos 180 milhões de brasileiros que vivem nas nossas cidades. Um espaço duro e desumanizado - planejado, construído e não mantido para manter sua hostilidade.
Por isso a transformação imagética do carnaval está em colorir estas ruas de alegria e afeto. Por quatro dias temos uma outra cidade possível, sem carros, cheia de gente alegre cantando, vestidas para brilhar. Meu bloco favorito em BH, o Então Brilha, sai as 7 da manhã na parte mais inóspita da cidade. Ali entre rampas de concreto e um ribeirão encanado se juntaram 100 mil pessoas atrás de uma faixa FORA TEMER para cantar que gente é para brilhar. Outro bloco, o Tico Tico Serra Copo fechou o túnel da Lagoinha com seus foliões, enquanto o Pena de Pavão de Krishna leva seus corpos pintados de azul para bairros diferentes da cidade.
O resultado desta transgressão barulhenta é que quase 4 milhões de pessoas participaram do carnaval de rua em BH este ano. Some-se este potencial agregador e apropriador do espaço ao potencial imagético dos patinhos fantoches batendo panela e temos a receita para sair das cordas, recuperar a narrativa de um país melhor e quem sabe um dia reverter o retrocesso dos últimos anos.
Nossa democracia golpeada vai ter de ser reconstruída assim, com muito afeto, muito não é não, muito suor e cerveja para reconstruir cada proposta como devemos reconstruir cada calçada e ocupar cada metro quadrado disponível para que gente possa brilhar.