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OPINIÃO
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[caption id="attachment_144453" align="alignnone" width="700"] Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
O bar “Inferninho”, cenário de maior parte do filme de mesmo nome, dirigido por Guto Parente e Pedro Diógenes, é frequentado por homens fantasiados de super-heróis e marinheiros, é servido por um coelho cor de rosa (Rafael Martins) e pertence a Deusimar (Yuri Yakamoto), uma mulher que sonha com o dia em que poderá deixar esse lugar para trás. Ao receber Jarbas (Demick Lopes), um marinheiro desertor, Deusimar aponta a semelhança do rapaz a um jovem Sean Penn, é identificada por ele como uma atriz que ela mesma não conhece, e os dois passam a habitar juntos esse inferno sonhado.
No cinema de Guto Parente, o filme que seria mais facilmente reconhecido em proximidade com “Inferninho” seria seu “Doce Amianto” (dir. Parente e Uirá dos Reis, 2013), tanto por uma identificação com o cinema queer - pelo excesso do estranho, um excesso que não se conforma com uma estética normativa - quanto por uma oposição entre “Amianto” (Deynne Augusto), ingênua e cheia de esperança, e Deusimar, que sonha sem realmente acreditar nas possibilidades de seus sonhos. Particularmente, no entanto, é com “A misteriosa morte de Pérola” (dir. Parente e Ticiana Augusto Lima, 2014), que encontro uma relação mais próxima.
Pérola, a garota que perde de vista a fronteira entre realidade e fantasia enquanto mora sozinha - estudando fora do país -, precisa, como Deusimar, encontrar uma possibilidade de habitação e pertencimento. E a vida dessas duas personagens depende disso. O perigo iminente que se apresenta nesses espaços não se dá porque “Inferninho” é de fato um inferno (não é, é um espaço onde circulam personagens bastante carinhosos) ou porque a casa em que Pérola está hospedada é mesmo assombrada, mas porque nenhuma das duas encontra, nesses lugares, uma possibilidade de vida.
O ponto central para a personagem de Deusimar não está em confirmar a sua frustração inicial com seu “Inferninho”, mas em se deparar com essa possibilidade de vida. “Inferninho” circula pelos festivais de cinema do Brasil num momento em que - seja a partir de um desânimo legítimo de quem entende não haver espaço no país para si, seja pelas próprias declarações do presidente eleito de que, realmente, não haverá lugar para oposições ideológicas - essa possibilidade de habitação e de vida precisa ser reencontrada. Não se trata de deixar Inferninho, mas de inventar, nele, um lugar para si.
Guto Parente e Pedro Diógenes parecem se afastar do realismo mágico de seus filmes anteriores e assumir um lugar cênico da fantasia. Uma apresentação do periférico em “Inferninho” pode convidar uma leitura que entenda o filme como, ao menos, agenciando uma estética do realismo com a sua presente fantasia. Mas não há nada de realista no periférico apresentado. O filme prefere uma imagem produzida sobre esse periférico, um brega em chroma key, e cantado em italiano, algo mais próximo de uma imagem da marginalidade presente na Hollywood clássica, em que Barbara Stanwyck, no “Pacto de sangue” (dir. Billy Wilder, 1944), é uma grande criminosa e Rita Hayworth canta para gângsteres nos bares de uma falsa Argentina, em “Gilda” (dir. Charles Vidor, 1946).
Que a habitação em disputa seja representada por esse espaço de sonho e fantasia de uma periferia imaginada me parece algo muito característico da posição política que o filme alcança - uma política do queer que rejeita assimilação, que não está interessada em deixar essa fantasia do periférico. “Inferninho” venceu, no domingo (11/11), o prêmio de Melhor Filme do júri oficial do “XI Janela Internacional de Cinema do Recife”. O filme, como “Temporada” (dir. André Novais Oliveira, 2018), aparece em um bom momento. Os dois filmes prometem um espaço em que o pertencimento é possível, mesmo em adversidade. Reunidos, ao final, aos coelhos coloridos, super-heróis em mesas de bar, marujos vis e cantoras poliglotas, temos a garantia de que uma fantasia do estranho e um sonho fora da norma ainda estão presentes, e assim permanecerão.
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