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OPINIÃO
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[caption id="attachment_144323" align="alignnone" width="700"] Foto: Divulgação[/caption]
Juliana aceita um café. Protagonista do filme “Temporada” (dir. André Novais Oliveira), a moça, interpretada por Grace Passô, trabalha fazendo visitas aos quintais das casas do bairro Amazonas, na cidade de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Motivadas pela necessidade de evitar os focos de mosquitos da dengue, essas visitas se estendem para um conhecimento do bairro, da cidade, das pessoas que a habitam. Quando lhe é oferecido, Juliana aceita um café e uma conversa. Ela não é de lá, veio de Itaúna, cidade no interior de Minas Gerais. São essas conversas que vão construindo, aos poucos, uma nova casa para Juliana em Contagem, uma nova habitação possível. Em uma determinada cena já na segunda metade do filme, é Zezé, notória moradora do Amazonas, quem oferece à moça um café, uma conversa e essa possibilidade de habitar.
Aqueles que têm acompanhado o cinema que vem sendo produzido em Minas Gerais nos últimos anos conhecem bem Zezé e sua casa. Maria José Novais Oliveira é a mãe do diretor, André Novais Oliveira, e é uma figura importante de dois de seus filmes, “Ela volta na quinta” (2014) e “Quintal” (2015), interpretando, em ambos, uma personagem muito como ela mesma, Zezé, moradora do Amazonas. Maria José faleceu no primeiro semestre de 2018. Em “Temporada”, ainda contracena com Grace Passô. A sequência da visita de Juliana a Zezé, uma das mais fortes do filme, coloca em cena duas grandes atrizes de formações particularmente distintas: Grace, dramaturga e atriz com uma longa e diversa carreira no teatro; e Zezé, que encena, nos filmes de seu filho, o papel de sua mãe, e que foi, arrisco dizer, uma das grandes atrizes do cinema brasileiro contemporâneo. Encontram-se, na cena, também os dois pontos em conjunção do cinema de André, um realismo encenado e um projeto particular de cinema, rigoroso - clássico até o ponto em que se mantém contemporâneo, contemporâneo até o limite de uma relação com o clássico.
Esse ponto de encontro entre as operações de um realismo social e uma elaborada construção de cena tem aparecido com frequência no cinema mineiro contemporâneo, de filmes como “A vizinhança do tigre” (dir. Affonso Uchoa, 2016) e “Baronesa” (dir. Juliana Antunes, 2017). Esse parece ser também o ponto de partida para as produções da Filmes de Plástico, de que, além de André Novais, fazem parte os realizadores Gabriel Martins - diretor de “Nada” (2017) -, Maurílio Martins - diretor de “Quinze” (2014) -, e o produtor Thiago Macêdo Correia.
Todos esses filmes respondem ao seu próprio realismo com uma encenação por sobre o espaço comum, conhecido e habitado pelos personagens. “Nós três, como diretores, que viemos de Contagem - e cada um de um bairro diferente -, tínhamos um incômodo de ver a grande maioria dos filmes de Minas Gerais sendo filmados no centro de Belo Horizonte. Com isso, aparece também uma ideia de libertar certo sotaque, sem dar um tom caipiresco às coisas”, afirma André, em uma breve conversa após a exibição de “Temporada” no XI Janela Internacional de Cinema do Recife, e conclui: “É a gente tentar falar, como diz Adirley [Queirós, diretor de “A cidade é uma só” (2011), “Branco sai, preto fica” (2014) e “Era uma vez Brasília” (2017)], da nossa própria quebrada”.
“Temporada” levou cinco prêmios no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro deste ano, incluindo o de Melhor Filme e o de Melhor Atriz. Depois de “A cidade onde envelheço” (dir. Marília Rocha, 2016) e “Arábia” (dir. Affonso Uchoa e João Dumans, 2017), “Temporada” já é o terceiro filme mineiro (filmado ou produzido no Estado) seguido a receber o principal reconhecimento do Festival. Se tem alguma coisa que esse conjunto revela é uma forte diversidade do cinema local e uma diversidade também sócio-geográfica e cultural da região. No próprio “Temporada”, como aponta André, Juliana vem do interior de Minas e apresenta, na sua relação com a cidade de Contagem, “um olhar meio estrangeiro, mesmo que alguns pontos de Itaúna, de onde ela vem, não sejam tão diferentes do bairro do Amazonas”. “Na cena da laje, quando ela sobe a casa de um morador e contempla, com ele, a vista do lugar, ela já está direcionando uma forma diferente de ver aquele bairro, aquela comunidade, aquelas pessoas. Isso está também na forma do trabalho dela, essa coisa de entrar nas casas, de conhecer as pessoas mais a fundo”, afirma o diretor.
Pode parecer um tanto condescendente quando dizemos que o modo como André filma a periferia da região metropolitana de Belo Horizonte é “respeitoso”, o que se tornou comum ouvir e afirmar nas conversas após a exibição do filme. Mas isso aparece também como um dado do local filmado por alguém que não o estranha, não o exotiza e não está interessado em alegorizá-lo como uma metonímia do nacional. De certa maneira, podemos ter “Temporada” como um filme de personagem, pautado a partir dessa apresentação do espaço, da vizinhança do Amazonas e da relação que Juliana estabelece tanto com esse lugar quanto com aquele que ela teve que deixar para trás.
Para André, o carisma dos atores - especialmente os atores não profissionais, que atuam em papéis muito próximos de suas próprias vidas fora da ficção - é passado adiante para o filme, o que ajuda a apresentar o sofrimento de Juliana, e reconhecê-lo, de uma forma mais suave. “Isso mostra como a amizade vai envolvendo Juliana e vai melhorando a relação dela com o espaço. Então, tem isso de uma acolhida, o que apresenta um sentido de comunidade também, que vai, aos poucos, abrigando a personagem”, coloca o cineasta. Não é uma novidade, no cinema de André, o modo como o diretor traz essas expressões de afeto de atores não profissionais, que sempre surgem e se apresentam de maneira muito sincera e deixam seus filmes muito marcados por um tom de carinho.
Em seus dois longas-metragens, “Ela volta na quinta” e “Temporada”, André indica um projeto forte e coerente de cinema, que dá continuidade ao que já vinha sendo sugerido em seus excelentes curtas-metragens. A sua relação com a ficção, e com o que é permitido a ela, é uma das mais interessantes que o cinema contemporâneo nos apresenta. Pouco a pouco, enquanto Juliana vai encontrando uma possibilidade de habitação em Contagem, “Temporada” nos conduz também para uma possibilidade de afeto, de se sentir parte mesmo em desolamento, de esperança e, por que não, também de resistência.
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