Por Normando Rodrigues *
Deus e seus monstros
O Estadão vê “ciscos”, mas não vê “traves”. Cobra autocrítica do PT, enquanto silencia sobre a própria participação na construção do genocídio brasileiro. Essa hipocrisia é só a ponta do iceberg chamado ódio de classe.
O diabo
No sacrossanto editorial do dia do Senhor de 24 de outubro, o Estadão levou a demonização do PT à literalidade deselegante, e nominou o partido como o “diabo”.
Alheio à Tradicional Família Paulistana, apenas 3 dias antes o verdadeiro Trevoso lançara um novo dogma pela boca de seu cavalo Bolsonaro: vacinação causa AIDS, segundo “relatórios oficiais do governo” do Reino Unido.
A relação entre o antiesquerdismo da elite e o irracionalismo antivacinal é de causa e efeito. Isto, contudo, jamais será admitido pelo Estadão.
O sacerdote
Direcionar o ódio do rebanho contra um alvo determinado, com grande dose de falso moralismo, é a forma secular com que os reverendos do Tinhoso unem seus grupos para os mais corruptos propósitos.
Victor Hugo traçou um bom retrato desse mecanismo na tragédia do “Corcunda de Notre Dame”, de 1831, em cuja trama o vigário-geral Frolo é um patético doente sexual, obcecado pela linda cigana Esmeralda, de 15 aninhos.
Sempre rejeitado pela adolescente, o religioso tenta estuprar Esmeralda. Afinal, no sistema de valores de Frolo-Bolsonaro ela “merece”, assim como as mais de 66 mil mulheres violentadas no Brasil fascista de 2020.
Os pecados
A frustração do padre evolui do ressentimento ao ódio, tal como na massa fascista, e Frolo incrimina Esmeralda num assassinato. Então a adolescente é martirizada, bem ao gosto de Bolsonaro e dos que apoiam o projeto de Lei Antiterrorismo, denunciado pela Organização Mundial Contra a Tortura.
Torturada, Esmeralda confessa o crime que não cometeu, como se estivesse sob Moro e Dallagnol. Suas “culpas”, porém, são outras. Por ser quem é, já estaria qualificada para as câmaras de gás do ídolo alemão de Bolsonaro, destino de meio milhão de ciganos sob o 3° Reich.
Ainda “pior”, Esmeralda é mulher, livre e luminosa. Tudo o que a misoginia fascista mais odeia.
A monstruosidade
Já os pecados do PT, na visão de Frolo-Estadão, são outros: causar “crise”; se opor às reformas da Previdência e administrativa; e se recusar a beijar a cruz do teto de gastos. Nada sobre fome, fila do osso, desigualdade e desindustrialização.
O jornal também não faz nenhuma menção à vacinação de 88 milhões de pessoas contra H1N1, em apenas 3 meses, sob governo do PT no ano de 2010.
Se o PT é condenado pelo perverso evangelho do Estadão, o mesmo texto sagrado não fixa qualquer limite para os ricos. Mesmo o céu é negociável. Basta ver os diálogos entre a nova santíssima trindade, formada por André Esteves, Guedes e Bobby Fields Terceiro.
Os infiéis
Reservar para os infiéis - pobres, pretos, putas, esquerdistas, mulheres, homossexuais, indígenas, muçulmanos, e outros indesejáveis - qualquer fatia do orçamento que fique acima da abençoada esmola, é um pecado “de” capital.
Consequentemente, odiar a vacinação obrigatória, e seu custo público, vira preceito religioso. Divino seria que Luciano Hang (Havan), Michael Klein (Casas Bahia) e Flávio Rocha (Riachuelo), pudessem lucrar com a venda de vacinas.
Se Frolo-Bolsonaro soubesse ler, odiaria ainda mais a vacina ao descobrir que o procedimento nasceu no demoníaco Islã, e que foi levado da Turquia para Londres pela feminista Mary Montagu, em 1721.
As hostes
Trezentos anos depois, Londres viu a invasão, por ex-militares fascistas, da corte em que era julgado o “direito” de uma mãe não vacinar seus filhos. Como Bolsonaro, pediram a prisão dos juízes, e chegaram a arrancar das mãos do magistrado os documentos do processo.
Fascistas da mesma estirpe invadiram a sessão da câmara municipal de Porto Alegre com suásticas e crimes de racismo explícitos, no dia 20 de outubro.
Tais rompantes são típicos do romantismo, um dos afluentes culturais do rio fascista. No entanto, apesar de o “Corcunda” ser obra romântica, é predominantemente um libelo contra o obscurantismo e a hipocrisia de falsos moralistas. E exerceu influência sobre gerações.
A luz
No mesmo ano em que o “Corcunda” foi publicado, entrava para a escola um menino francês de 9 anos que se tornaria fã do escritor.
“Vacinado” por Victor Hugo, a quem dedicaria seu primeiro livro científico, o jovem cresceu católico. E, entretanto, jamais permitiu que a religião se imiscuísse em suas pesquisas. Disso resultaram importantes avanços no campo das vacinas.
Seu nome era Louis Pasteur. E ele certamente apoiaria a vacinação obrigatória.
*Jorge Normando Rodrigues é assessor jurídico do Sindipetro-NF e da FUP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.