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Por Paulo Bicarato
“Nacionalismo” e “patriotismo” são palavras que vêm à tona com as eleições. O verde e amarelo se tornaram símbolos de uma vertente que se apropriou da camiseta da Seleção Brasileira com a disputa presidencial, mas de uma maneira contraditória e confusa, assim como os tempos que vivemos, tempos de um civismo (em excesso ou em falta) duvidoso.
A uma semana do segundo turno das eleições, manifestantes pró-Bolsonaro ocuparam a avenida Paulista e protagonizaram cenas insólitas quando, em meio às camisetas da CBF, circulavam sem contradição camisetas dos EUA e, nos caminhões, bandeiras dos Estados Unidos e de Israel, como bem observou em sua página no Facebook o professor do curso de gestão de políticas públicas da USP e doutor em filosofia Pablo Ortellado: “o comunismo não é a ideologia que defende a justiça social, mas uma espécie de manobra das elites em prol da corrupção. Por isso, podem ser chamados de ‘comunistas’ sem pudor não apenas o PT, mas também a Globo, a Folha, a USP, o PSDB e o MDB. O mesmo se aplica a termos como "nacionalista" e "patriota" ou dos interesses da economia, dos empregos ou da cultura nacionais”.
Ao mesmo tempo, no Distrito Federal outro símbolo da ditadura militar é ressuscitado: quase 25 anos depois de ser extinta por lei federal, a disciplina de Educação Moral e Cívica deve voltar ao currículo escolar, depois de ser aprovada na Câmara Legislativa por iniciativa do deputado distrital Raimundo Ribeiro (PPS). Ainda que ele negue qualquer “inspiração militar”, seu projeto usa como justificativa expressões como “o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana”, “aprimoramento do caráter, como apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade” e “preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando o bem comum” - as mesmas do decreto-lei 869, de 1969, do governo do general Costa e Silva, que criou a disciplina originalmente. A fatídica EMC perdurou até 1993, quando o presidente Itamar Franco revogou o decreto e acabou com a disciplina.
Voltando à mescla de camisetas verde-amarelas (a “semiótica do ódio”, segundo o linguista e professor Marcos Bagno) com bandeiras dos EUA e de Israel, há quase dois meses uma ilustração emblemática flagrou um detalhe que passou quase despercebido em Guaratinguetá, no Vale do Paraíba paulista: no tradicional desfile cívico-militar do 7 de Setembro, entre as dezenas de escolas, entidades e instituições que tomaram a avenida Presidente Vargas, margeando o rio Paraíba do Sul, um grupo de crianças e adolescentes exibia uniformes de um projeto sócio-educativo. Nas camisetas e bermudas, logotipos do governo federal, do Ministério do Esporte e do projeto “Segundo Tempo”. Nas meias, a ilustração da bandeira dos EUA e a inscrição “USA”. O kit com os uniformes foi distribuído às crianças às vésperas do desfile, sem que quase ninguém atentasse para o pequeno “detalhe”.
Com exceção de meia-dúzia de professoras, que preferiram não se manifestar e não se indispor com os realizadores do projeto: nada menos que a EEAr, a Escola de Especialistas de Aeronáutica, sediada na cidade. Desenvolvido desde 2014 na cidade, o projeto Segundo Tempo oferece aulas de música, curso básico de inglês e diversas modalidades esportivas, com o “objetivo de democratizar o acesso à prática e à cultura do Esporte de forma a promover o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens, como fator de formação da cidadania e melhoria da qualidade de vida, prioritariamente em áreas de vulnerabilidade social”.
Questionadas, as instituições envolvidas no projeto se esquivaram de assumir a responsabilidade pelas meias com a bandeirinha norte-americana. O Ministério do Esporte informou que “cabe à pasta custear recursos humanos, material esportivo e uniformes, que obrigatoriamente devem seguir os padrões indicados no Manual de Identidade Visual do programa, disponível no site do ministério”. O manual, no entanto, disponibiliza apenas os logotipos oficiais para download, sem especificar outros detalhes. “Para utilizar o selo de um dos programas do Ministério do Esporte, é necessário que as logomarcas do Ministério e do Governo Federal estejam inclusas na assinatura.”
Desenvolvido desde 2003, o “Programa Segundo Tempo Forças no Esporte” é uma parceria entre o Ministério do Esporte e o Ministério da Defesa, oferecendo atividades esportivas e culturais em instalações militares de todo o Brasil, como a EEAr, em Guaratinguetá, uma das 27 unidades do Ministério da Aeronáutica, atendendo a um total de mais de 6.330 estudantes. Laconicamente, o Ministério da Aeronáutica não se pronunciou sobre o kit de uniformes, assim como o comando da EEAr, mesmo após insistentes pedidos da reportagem.
Somente a Secretaria Municipal de Educação de Guaratinguetá, parceira da EEAr no projeto, foi um pouco mais incisiva: “também ficamos surpresos quando, às vésperas do desfile de 7 de Setembro, foram distribuídas as meias, pela EEAr, onde se via a bandeira dos Estados Unidos. Apesar de não concordarmos com isso, nada pudemos fazer. Toda responsabilidade é da EEAr”. O sociólogo e professor da UFABC Sérgio Amadeu da Silveira vai além: “considero, sim, uma afronta. Essa situação só corrobora com o entreguismo que corrompeu as Forças Armadas brasileiras. Para que Forças Armadas, se não defendem nem mesmo nosso território e nossas riquezas? Não é por menos que elas nem se incomodaram com a venda da Embraer”.
Criada em 1950, a EEAr foi instalada nas terras da antiga Escola Prática de Agricultura e Pecuária, doadas ao Ministério da Aeronáutica em 5 de maio daquele ano. São cerca de 10 milhões de metros quadrados, com uma área construída superior a 119 mil metros quadrados, com 93 prédios administrativos e 416 residências, distribuídos em três vilas militares: Vila dos Oficiais, Vila dos Suboficiais e Sargentos e Vila de Cabos e Taifeiros, segundo o site do Ministério da Aeronáutica, que informa ainda que a EEAr “é carinhosamente conhecida como ‘Berço dos Especialistas’”, oferecendo a formação de 23 especialidades que vão do Controle de Tráfego Aéreo a Comunicações, passando por Fotointeligência, Mecânica de Aeronaves, Meteorologia e Cartografia, entre outras.
Além das quase 400 crianças e adolescentes do projeto, um total de cerca de 5.000 pessoas participou do desfile desse ano na cidade. Como pouco mais de 120 mil habitantes, Guaratinguetá ostenta um IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) alto, de 0,798, a 47º posição em todo o estado de São Paulo. Terra natal de gente como o primeiro santo brasileiro, Frei Galvão (1739 - 1822), o presidente Rodrigues Alves (1848 - 1919), o violonista e compositor Dilermando Reis (1916 - 1977) e o médico cardiologista Euryclides de Jesus Zerbini (1912 - 1993), o primeiro da América Latina a realizar um transplante de coração, Guaratinguetá guarda marcas profundas de sua histórica tricentenária. Majoritariamente tradicionalista, enriqueceu com os coronéis do café e, a seguir, com a pecuária leiteira. Hoje possui um parque industrial significativo, com um PIB per capita de R$ 16.130 (dados de 2008, do IBGE). O tradicionalismo histórico, ou conservadorismo, da cidade pôde ser visto nos resultados das eleições: no primeiro turno, Bolsonaro obteve 62,29%dos votos, seguido de Geraldo Alckmin (13,03%) e Ciro Gomes (8,65%). Fernando Haddad ficou com a modesta quarta posição, com apenas 8,33% dos votos. No segundo turno, Bolsonaro emplacou 78,76%, contra 21,24% de Haddad.
Este repórter confessa sua dificuldade em falar de nacionalismo e patriotismo, ainda mais em tempos tão turbulentos, mas o professor André Coelho, da UFRJ, dá algumas luzes sobre essa turbulência “proposital”: “devemos nos preparar, nos próximos quatro anos, para uma gestão no estilo Trump dos debates e discussões: Bolsonaro e sua equipe fazendo declarações estapafúrdias na imprensa e nas redes sociais no primeiro plano, e passando medidas e reformas duríssimas e gravíssimas no segundo plano. O objetivo será de que reajamos ao que for dito no primeiro plano, causando uma guerra de debates e mensagens entre apoiadores e críticos, diminuindo, assim, o foco de atenção e energia disponível para fiscalizar e criticar o que se fizer no segundo plano”. Ele alerta para o chamado “firehosing”, estratégia de publicidade que bombardeia “a atenção pública com um número tão grande de factóides absurdos e atraentes de serem discutidos para assim manipular o senso de realidade e distrair o foco de concentração em relação ao principal”. Segundo o professor, com essa estratégia Bolsonaro “vai fazer revisionismo histórico, criar versões alternativas dos fatos, acusar a imprensa de persegui-lo e distorcer a verdade, obrigar quem o apoia a entrar cada vez mais na bolha de realidade alternativa que a acumulação das inverdades for criando e obrigar quem o critica a ir se acostumando com (e normalizando) a mentira, o absurdo, o factóide, a declaração incendiária e a irresponsabilidade na comunicação cotidiana e diplomática”.
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Paulo Bicarato é jornalista e mantém o blog Alfarrábio há 17 anos