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"Sou visível como vagabunda e depravada, e por mais anedótico que pareça para algumas pessoas, incluindo infelizmente ativistas feministas, tais difamações são danosas em si e decorrem ainda em outros danos consequentes. Uma coisa é você se afirmar vagabunda e depravada em seus próprios termos; outra coisa inteiramente distinta é ser construída personagem da fantasia alheia sobre o que haveria de ser a vagabundagem e a depravação (...) Precisamos questionar o abuso instrumental da imagem de uma pessoa nos termos de outra, notadamente para o sustento do próprio narcisismo"
Por Tatiana Lionço*
Visibilidade é uma condição almejada no ativismo, embora nem sempre seja algo que nos ajuda a fortalecer a própria participação na luta política. Quando se é uma pessoa que inspira outras a iniciarem ou permanecerem na luta por uma causa em que se acredita, a visibilidade é boa porque permite a identificação necessária às alianças e também ao fortalecimento de uma rede de combate que é tão mais potente quanto forem múltiplas as vozes singulares que possam se fazer ouvir em uma dada amplitude comunitária. Quando se é uma pessoa objeto de difamação, a visibilidade é ruim pois enfraquece os laços sociais na insegurança e falta de confiança recíproca, não apenas com inimigos declarados mas também com pessoas que deixam de considerar oportuna uma união em luta comum. Cada pessoa que se dedica ao ativismo carrega não apenas uma luta, mas tantas lutas quantas forem possíveis enunciar e reconhecer em diferentes espaços, diante de distintas e variadas pessoas, até o limite da possibilidade da afirmação sempre relativa do “nós”. Não apenas somos muitas pessoas singulares dispostas a lutar, mas somos tantas lutas quantas forem nossas formas de afirmação em potência de unidade coletiva, em camadas móveis de demarcação de pertencimento e de reconhecimento.
Não é prudente almejar o consenso caso levemos a sério nossas insuperáveis diferenças, embora o discurso de ódio e a imposição do silenciamento àqueles de quem se discorda ou de quem se é diferente são passíveis de questionamento em seu valor e propósito. O desejo de que o outro não exista, mas também de modo mais comum e corriqueiro a exigência de que uma dada pessoa não possa legitimamente participar ou se expressar, são modos de pensar a coletividade como mero conjunto uno e homogêneo, e não como mosaico cujos contornos são sempre relativos à demarcação que se escolhe para o reconhecimento na identificação e pertencimento comum. Hoje proponho pensarmos a respeito das negações nas relações das afinidades plausíveis, e não àquelas recusas estruturantes da inimizade incontornável.
Talvez a difamação sirva a quem enuncia a reprovação como uma forma narcisista de afirmar a própria superioridade a partir da negação de uma outra existência com quem se mede em um espelho invertido. Por mais estranho que pareça, aquela pessoa que ofende, que usa seu lugar de fala para declarar a negação do valor de outrem, ainda assim mantém uma laço com a pessoa negada, apesar de se tratar de uma forma de relação que não soma mas que impede o reconhecimento e o pertencimento àquelas com quem se poderia compor uma dada coletividade, ainda que meramente estratégica, na luta. É preciso lembrar que a desaprovação, na maior parte das vezes, também é recíproca e que a vulnerabilidade à empáfia narcísica não é privilégio sequer defeito de algumas pessoas, cada qual devendo fazer o próprio exercício de auto-crítica para o devido respeito básico à alteridade.
O ativismo é um exercício individual que permite muitas realizações coletivas, mas também vulnerabiliza a sofrimentos e desilusões diante da coletividade com a qual se reconhece que não é possível conviver em sintonia. Nos últimos anos sofri muitas ofensas, mas não apenas aquelas que já compartilhei em variadas reflexões públicas como oriundas dos fascistas fundamentalistas, como também de outras pessoas que se dedicam à luta contra os fascismos e fundamentalismos.
Não é fácil sensibilizar as pessoas para os danos decorrentes das violências que elas mesmas não vivem. Todas vivemos condições que outras pessoas não vivem. Não é simples nos tempos de hoje pleitear reconhecimento sobre a opressão que se vive quando você é uma pessoa que encarna privilégios. É como se um limite ético fosse violado, como se tratasse de questões desimportantes diante da gravidade do genocídio racista, classista, machista, homofóbico, transfóbico. Eu concordo que seja prioritário denunciar tais violências e inclusive para isso disponho de meus privilégios sociais e dedico o meu trabalho e luta política. Meus privilégios, no entanto, não me eximiram de sofrer opressões.
Uma forma de opressão bastante específica que eu vivo é ter minha imagem usada à minha revelia na lógica do demérito imposto. Nem todas as ativistas são sistematicamente difamadas publicamente, a ponto de ser há alguns anos uma mulher associada à pedofilia na internet, abusada em campanha política de pastor para o cargo de deputado federal como exemplo de anticristo e ruína dos valores morais. Sou visível como vagabunda e depravada, e por mais anedótico que pareça para algumas pessoas, incluindo infelizmente ativistas feministas, tais difamações são danosas em si e decorrem ainda em outros danos consequentes. Uma coisa é você se afirmar vagabunda e depravada em seus próprios termos; outra coisa inteiramente distinta é ser construída personagem da fantasia alheia sobre o que haveria de ser a vagabundagem e a depravação. No mais, tenho sido pessoa não grata em vários espaços de ativismo também porque há aquelas e aqueles que acreditam que eu não tenha legitimidade para denunciar as opressões que eu afirmo sofrer porque não sou oprimida como elas próprias são.
Gostaria de me deter neste ponto, o da objetificação. Precisamos questionar o abuso instrumental da imagem de uma pessoa nos termos de outra, notadamente para o sustento do próprio narcisismo. As pessoas que abusam da imagem das outras se eximem de dizerem por si mesmas quem são e usam a representação que elas mesmas fazem das outras para construírem uma imagem de si que abusa da potência alheia, desconsiderando ainda o ônus que tal projeção acarreta para outrem. Precisamos ser um tanto mais responsáveis com as outras pessoas, mesmos aquelas com as quais não nos identificamos, caso desejemos conviver em uma sociedade que repudia o extermínio, o abuso e outras formas de precarização da vida alheia. É sempre bom lembrar que a esquerda odiosa também odeia, que o feminismo bélico também agride.
Sequer acredito que possamos deixar de odiar e de agredir, mas tenho alguma esperança que ao menos as pessoas assumam o próprio ódio, raiva e agressividade. Há ativistas fazendo exatamente isso e têm o meu respeito pois assumem a responsabilidade sobre sua explícita defesa da violência. Seria um bom começo assumirmos os termos em que nos propomos conviver. No meu caso, tenho reconhecido que não estou comprometida com modos de justificação moral da violência, o que não é o mesmo que dizer que eu mesma estaria livre de praticar atos de violência e opressão. Talvez eu tenha feito esta escolha por dispor de uma série de privilégios, mas há outras pessoas cansadas da vivência diária da opressão e que optam conscientemente pela violência como último recurso para a enunciação sempre emudecida de sua crítica às violências estruturais que nunca cessam de acontecer. Não estou aqui para medir valor, mas reconhecendo diferenças. Evidentemente tanto eu como as pessoas que escolhem a violência como ato político provavelmente concordemos que não se justificam aquelas violências cometidas por pessoas em seu afã de manutenção dos próprios privilégios à custa da precarização da vida de outras pessoas.
No meu caso, não bastou questionar as difamações dos fascistas mas agora me lanço a problematizar a objetificação que sofri por parte de pessoas da esquerda. É difícil reconhecer um esquerdomacho até que ele abuse de seu privilégio de homem, aproximando-se dos fascistas na apologia de sua supremacia num mundo patriarcal e machista em que ele pode gozar privilégios. De todas as desqualificações que já sofri, de muitos abusos de minha própria imagem que alimentaram a empáfia narcísica de meus opositores políticos, o limite do insuportável, no meu caso, foi a tomada de conhecimento de que supostos parceiros de luta política de esquerda me objetificaram na construção da imagem do homem de bem. Que fique dito que meu calcanhar de aquiles é o homem de bem, eu assumo que odeio o homem de bem, e agora percebo que desmereço tanto o fascista quanto pretensos salvadores de esquerda.
Em 2016 foi produzido um filme político sobre a trajetória do Deputado Federal Jean Wyllys, intitulado Entre os Homens de Bem. Tomei conhecimento da existência do filme durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, quando um colega de universidade me manda mensagens dizendo que eu estava no filme, junto a uma foto que me feriu: eu estava chorando. A situação é que usaram imagens minhas chorando esem proferir uma palavra sequer, nos corredores da Câmara dos Deputados, enquanto Jean Wyllys mencionava o meu nome próprio como uma pessoa competente e que estaria sendo destruída pelos fascistas. Eu, uma ativista feminista que carrega já alguns anos de difamação pública pelos fascistas fundamentalistas, usada sem a minha autorização no filminho da esquerda que quer provar que o verdadeiro homem de bem é da esquerda.
Os diretores tentaram me convencer que na verdade eu estava sendo elogiada pelo deputado, assim como também homens do PSOL tentaram me fazer entender o que eu não havia compreendido: que na verdade aquilo era bom para mim, o deputado estava me apoiando publicamente. O que eu demorei a compreender foi o conceito de esquerdomacho, mas a situação me ajudou a finalmente entender que homens, mesmo os de esquerda, precisam fazer um exercício sério de escuta das mulheres caso estejam de fato comprometidos com a luta feminista. O contrário é apenas gozo do próprio privilégio machista, como o de recusar assimilar um limite imposto por uma ativista feminista alegando que a mesma não consegue articular da melhor forma os pensamentos pois não consegue compreender como é bom que os outros falem por ela mesma e que os outros escolham qual seria a sua própria imagem na luta política. No caso dos diretores, acreditaram que tirar a cena do filme bastaria, mas de minha parte vale ainda mencionar que o fizeram alegando que de fato não eram legalistas, um argumento provavelmente usado no lugar do improvável reconhecimento de seus próprios erros. As consequências de tal erro foram a ruína de várias relações e parceiras políticas movidas por uma crise e sofrimento psíquico grave. Nem tudo se resolve na apresentação ou retirada de cena pois os efeitos da construção de uma imagem veiculada publicamentese desdobram na vida de uma pessoa para além dos contornos de um roteiro. A demora na redação desta resposta pública desde o ocorrido, em setembro de 2016, denota a dificuldade pessoal em elaborar os acontecimentos.
De outra parte, o deputado com quem acreditei estabelecer sintonia política e parceria durante os últimos anos, além de não haver dedicado uma só palavra para tratar do equívoco grotesco que me tomou à minha revelia protagonista da imagem de feministas à beira da impotência, ainda adotou o recurso da “exclusão das redes sociais”, aquele botão mágico que emburrece toda forma de tratar os dissensos e as tensões nas relações com as pessoas com as quais estabelecemos contato não apenas virtual, mas real. O episódio serviu para que eu rompesse várias relações, seja com ativistas do partido mas também com ativistas feministas, que enquanto silenciavam sobre as difamações e abusos de imagem que eu venho sofrendo nos últimos anos, se ocupavam em reunir com anti-feminista supostamente estratégica para a luta, senão a ruminar que a colega haveria passado do ponto, queimado o filme.
De fato, ter queimado o filme para mim foi o mínimo. Não bastou ter retirado a cena do filme, que já em sua segunda projeção no festival de cinema apresentava o corte: é ainda preciso dizer que arranquei a minha cara daquele filme sobre um deputado que se pretende o verdadeiro homem de bem e que é também abusivo usar a minha imagem, sem a devida autorização, para provar que o homem de bem da esquerda salva as coitadas que não teriam voz própria para dizer de que modo fazem a guerra contra o patriarcado e contra o fundamentalismo. Disso sobrou para mim a convicção de que as desilusões políticas ensinam e o que aprendi com mais esta foi que me recuso a curvar diante de homens de todos os lados e que se for preciso encarnar o estigma da loucura feminina estarei a postos para a construção dos delírios mais aterrorizantes sobre a ruína do patriarcado. Me sinto menos ingênua agora e mais alerta, pois minha luta é daquelas que encontra campo minado na direita e na esquerda, aonde quer que homens ou quaisquer pessoas se pretendam incondicionalmente melhores e superiores, prontos para usarem nossa imagem de acordo com seus interesses quando não para apontar o que algumas pessoas não sabem ou não entendem. Todas e todos somos pessoas que não sabem ou não entendem alguma coisa.
Dois episódios equilibraram para mim as emoções decorrentes do abandono que sofri, inclusive por parte de outras feministas, no enfrentamento de mais esta opressão machista e misógina que atravessa a minha imagem pública. O primeiro foi que uma colega de trabalho me procurou se apresentando evangélica e preocupada com o meu estado emocional. Ela me disse que eu precisava me proteger espiritualmente, que a minha luta enfrentaria muita objeção pois de fato eu encarno certos signos facilmente desqualificáveis pelos fundamentalistas religiosos que tem me construído demoníaca. Fiquei bastante pensativa sobre alianças, sobre a surpresa que é sabermos tanto quem omite quanto quem oferece ajuda em momentos críticos. Fiquei feliz em saber que eu posso também me surpreender com ajudas imprevisíveis, e não apenas com os abandonos também imprevisíveis. Entrei em uma livraria em busca de livros santos, desses que carregariam as palavras que nos ajudariam a viver. Folheei algumas obras, inclusive a dos livros sagrados, mas de fato comprei um diário de uma escritora que amo bastante, a Susan Sontag. Li até o momento em que cheguei na epifania pelas palavras: cada geração é responsável por reconstruir a espiritualidade de seu tempo. Me lembrei das atividades com as quais me envolvi no último ano, especialmente a pregação performática em frente à Igreja Universal do Reino de Deus, durante mostra de performances da Universidade de Brasília cujo tema fora Pós-apocalispe. Recordei-me também da oficina de resistência espiritual que ofereci junto com meu parceiro anarcopunk negríndio Amante da Heresia ou Leo Pimentel, em que nos propomos a auxiliar pessoas a desprogramar crendices, sendo que agora estamos propondo exercícios e técnicas de sobrevivência psíquica e de autopreservação diante das investidas alheias para nos destruir, vindas de longe ou das mais próximas relações, na lógica do anarquismo individualista. Há relações improváveis e que carregam a graça da vida por fazer, para além do que nós mesmas somos e já sabemos.
O outro episódio que me chamou à atenção foi um encontro com um sujeito que disse me conhecer, apesar de minha própria ignorância sobre a fama dele mesmo. O LeoFressato se transformou em fenômeno da internet ao publicar um video de uma música de sua autoria, intitulada Oração. Fiquei pensativa pois percebi que era uma pena que a minha má fama chegasse tão longe e antes de mim, a ponto de alcançar as pessoas que eu mesma me dedicaria a reconhecer e a apreciar a fama, antes mesmo que eu pudesse tomar conhecimento delas e me apresentar. De qualquer forma entendi que muitos e muitas de nós tem se dedicado à reinvenção da espiritualidade, ainda que nos custe sermos afrontadas como hereges daquela fé conservadora e que se impõe através dos tempos como justificativa moral para tantas violências.
Agora sei que é sempre possível fazer uma última oração para salvar o meu coração, e o que eu poderia compartilhar hoje é que eu e você, nós que não somos a mesma pessoa e que nem habitamos o mesmo contexto, nós que não concordamos em quase nada ou ao menos que discordamos em pontos fundamentais, nós que não temos o mesmo sexo ou a mesma cor e nem encarnamos condições sociais e existenciais similares: nós sempre podemos desfazer ou nunca fazer alianças poiso mundo é sempre maior do que nós. Nós podemos seguir cada qual pelo próprio caminho. Nós sequer precisamos umas e uns das outras e dos outros para dizermos qual haveria de ser o nosso lugar, o nosso caminho, a nossa luta, mas que se convocarmos umas aos outros, uns às outras, que não seja pela empáfia narcísica de auto-promoção à custa de uma outra pessoa, mas de fato pela potência da interpelação. Não esperem, portanto, que eu me cale caso usem a minha imagem e meu nome para dizer algo sobre si mesmos e sobre si mesmas: se vocês me convocarem eu me darei o direito de dizer por mim mesma em que termos este elo se deu. De minha parte, espero ter menos elos com pessoas que aproveitam estrategicamente de minha imagem à minha revelia e mais proximidade com as pessoas que reconhecem que nunca saberiam por si o teor do que só eu mesma teria para dizer. Estejamos preparadas e preparados para que caibam outras pessoas no mundo que é sempre maior do que nós.
*Tatiana Lionço é doutora em Psicologia e professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB)
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