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O governo Temer é um amontado de velhos clichês emprestados para reuso no presente
Por Murilo Cleto
Na democracia representativa brasileira tem sido assim: o voto parlamentar vem normalmente acompanhado de um boleto. E com o impeachment não foi diferente. Com menos de uma semana, o governo Temer já tem uma cara. E ela é qualquer uma menos a do século XXI. Reflete, na verdade, a correlação de forças que depuseram provisoriamente a presidenta eleita Dilma Rousseff na última quarta-feira, 11.
Além dos fisiologistas, que caminham para onde o vento soprar com mais força, há também, nesta correlação, os ruralistas, arenistas, fundamentalistas religiosos, todos imprescindíveis para o impeachment, e que agora precisam se sentir representados.
A imagem do novo presidente cercado na posse por homens brancos engravatados é apenas a metáfora perfeita para o que se tem até aqui de gestos e discursos que apontam para a recuperação de um Brasil sequestrado, como tanto se alardeou, pelo PT. Ou melhor, pelo que representa o PT num imaginário que há anos o gesta como o partido que dividiu o país substituindo o gerenciamento do Estado pelo que se convencionou classificar como “ideologia” – um conceito marxista que teve o sinal invertido para se encaixar num sistema de significações e que acabou por empurrar a esquerda para o campo da imaginação e delegar à direita o porte do discurso técnico-científico.
E, também na tentativa de angariar um improvável apoio popular, o novo governo se tornou um amontado de velhos clichês emprestados para reuso no presente.
Durante algum tempo o PMDB vendeu o governo Temer como uma realidade utópica que teria a década de 1990 como refúgio. E não era para menos: tanto o documento “Uma ponte para o futuro” quanto sucessivas declarações de que o Estado entregaria ao mercado tudo o que ele fosse capaz de gerir soaram como música para o empresariado brasileiro, que, ao lado da classe política, se tornou o principal fiador do impeachment.
Embora o neoliberalismo no Brasil tenha vivido o seu auge na penúltima década, desde pelo menos os anos 1970 as concepções de Estado-empresa são hegemônicas no Ocidente. Nelas, não há vida fora do mercado. Assim como, consequentemente, não há qualquer área gerida pelo Estado alheia aos seus interesses. É por isso que nem a distribuição de água, por exemplo, escapou das parcerias público-privadas.
Neste sentido, a aposta do governo e de parte da imprensa que o comprou como seu é de insistir no perfil técnico dos novos ministros – “notáveis”, segundo as palavras do próprio Temer. O Globo chegou a dizer que o Itamaraty abandonaria o perfil “ideológico” por outro, mais “liberal”. Muitos foram à loucura quando José Serra ameaçou “subir o tom” com bolivarianos que criticassem o novo governo.
No Roda Viva, da TV Cultura, Romero Jucá disse que predominaria na Esplanada a meritocracia. E o que se viu foi no máximo uma reunião de notáveis figuras carimbadas do fisiologismo e dos mais recentes escândalos de corrupção. Jucá, que chegou a ser demitido por Lula, que raramente demitia, é uma delas. Mas a aposta discursiva não é aleatória: era preciso romper com o que o PT representa para este imaginário que o supõe como subversor da ordem natural das coisas. E é o que explica o aspecto falo-nórdico do novo gabinete: “foram os escolhidos os melhores”. É para que se sentissem representados também aqueles contrários às cotas. Nada mais simbólico que o Ministério da Educação tenha sido entregue ao partido que tentou acabar com elas por meio de uma ação ajuizada no STF.
Mas não para por aí. Anunciado no dia da posse, o novo slogan do governo federal remete ao positivismo oitocentista, como estampa a bandeira costurada pela República da Espada. No discurso, Temer disse que a expressão “ordem e progresso [...] não poderia ser mais atual, como se tivesse sido hoje redigida”.
E a referência não é gratuita. Para o Ministério da Justiça, Temer levou o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, conhecido pelo assombroso saldo de assassinatos cometidos por uma das polícias militares mais violentas do mundo. A perspectiva para a atuação de movimentos sociais é a pior possível.
Lembrou esta semana no Yahoo o jornalista Matheus Pichonelli, e vale a menção: os portadores da faixa que protestava no ano passado contra Paulo Freire também estão se sentindo representados.
O anti-intelectualismo que grassa solto por aí produziu inomináveis shows de horrores durante todo o processo de impeachment, do voto de Éder Mauro (PSD-PA) ao discurso horripilante de Rogério Marinho (PSDB-RN), que inverteu o conceito gramsciano de "hegemonia" durante os trabalhos da comissão para sustentar que o PT tem um projeto de poder absoluto. Não faz nenhum sentido. Hegemonia, para Gramsci, era apenas uma constatação do exercício de dominação exercido pelas classes dominantes e não uma proposta. Qualquer estudante com meia hora de vida acadêmica sabe disso. Mas não interessa.
Com a fatia fundamentalista, a lua de mel tem sido ainda mais intensa. Não é por acaso, portanto, que a “psicóloga cristã” Marisa Lobo, defensora do projeto que institui a “cura gay”, tenha se manifestado tão euforicamente quanto ao novo Ministério da Educação. Sobre a tal da “ideologia de gênero nas escolas”, o novo ministro da saúde teria confidenciado a ela: “Isso já acabou. O MEC agora é do DEM”.
Temer também soube explorar a rejeição – provocada pela mais completa incompreensão – do brasileiro às leis de incentivo à cultura com a extinção do Ministério. Sobre isso, Silas Malafaia comentou: "Os esquerdopatas estão chorando porque Temer acabou com um dos seus antros”. Mas os programas continuam lá. As leis de incentivo também, incluindo a Rouanet, que agora sim deve permanecer intacta. Fruto do imaginário neoliberal e voltada a megaeventos, ela só foi levemente ameaçada durante a gestão do PT, mas isso também não interessa.
Amplamente comemorada pelos correligionários do novo presidente, a redução de ministérios e cargos comissionados tem efeito meramente simbólico. Todos eles, incluindo Henrique Meirelles, sabem disso. Mas pouco importa. Neste momento também era importante dar a pseudo-intelectuais repetidores de frases feitas a sensação de que a máquina pública seria desinchada. Nem que fosse com medidas inócuas.
Osmar Terra, novo ministro do Desenvolvimento Social, já deu aos meritocratas de Facebook uma pequena amostra do que vem por aí. “Bolsa Família não pode ser objetivo de vida” e “muitos não trabalham por medo de perder o emprego e a bolsa”, disse recentemente. Nenhuma das afirmações tem qualquer base empírica, mas também não importa. Antes de tudo é preciso fazer se sentir representada outra parcela fiadora deste governo.
Diante dos últimos acontecimentos, é bem possível supor que o pato da Fiesp mais uma vez não será pago por ela. A CPMF, por exemplo, surge agora como mal necessário, como, aliás, deve ser todo este governo calcado no manjado discurso da herança maldita. Para a retomada do crescimento vale tudo. A acomodação da classe política já está em curso. O resto vem agora. À Folha, um grupo de empresários sugeriu que o presidente interino, como numa nova versão do príncipe de Maquiavel, fizesse o “mal bem rápido e [o] bem aos poucos”.
E, como sugeriria o filósofo renascentista, “o povo precisa aplaudir as medidas” tomadas pelo novo governo. E não falar em crise, mas trabalhar. Foi o que disse Temer no discurso de posse. E, se o povo discordar, o próprio Maquiavel e os marechais positivistas têm a solução.
Foto de capa: Marcelo Camargo / Agência Brasil