A conduta do STF, ao permitir o início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau, está muito além de uma inflexão conservadora em relação ao principio da inocência. Tratou-se de esgarçar a ordem constitucional, pois rompeu uma cláusula pétrea e assumiu poderes que não possui, especificamente, o do poder legislativo
Por Kenarik Boujikian, especial para o Viomundo
O julgamento recente do STF (HC 126292*, de 17.2.2016), que só é aplicado ao caso que decidiu, é o mais grave ataque à Constituição Federal, portanto, ao Estado Democrático de Direito, do qual se tem notícia.
Considero que o foco principal deste julgamento está em um Poder de Estado, que tem a primazia de ser o guardião da Constituição, implodir um do eixos fundantes da República: o da divisão de poderes, prevista do artigo 2º da Constituição Federal, catalogada como cláusula pétrea, ou seja, imutável.
Os Poderes do Estado têm campos de atuação absolutamente delimitados, são exercício da soberania e devem ser harmônicos entre si, para que não haja desmandos entre eles, e nesta medida causar o rompimento do sistema democrático.
O STF também é responsável para que a Constituição Federal não se torne letra morta. Tem em suas mãos a manutenção da higidez constitucional e deve fazer, aplicando-a e interpretando-a, retirando da ordem jurídica as normas que não são compatíveis com ela.
A conduta do STF, no processo indicado, está muito além de uma inflexão conservadora em relação ao principio da inocência. Tratou-se de esgarçar a ordem constitucional, pois rompeu uma cláusula pétrea e assumiu poderes que não possui, especificamente, o do poder legislativo.
Assim o fez, pois pegou a caneta do Congresso e riscou parte do inciso LVII do artigo 5º: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E, no lugar, colocou: “ninguém será considerado culpado até o julgamento em 2º grau”!
Em verdade, em temas de direitos fundamentais, nem o Legislativo pode fazer alteração.
Grave, muito grave. E os ministros têm plena ciência desta limitação, mas ainda assim, foram alertados pelo vice-decano, ministro Marco Aurelio, que lembrou que o ex-presidente do STF, ministro Cezar Peluso, atuou diante do Poder Legislativo, para uma proposta de emenda à Constituição que tinha a finalidade de transformar os recursos ao STF em ações rescisórias. Deste modo, indiretamente, seria estabelecido um outro marco para o trânsito em julgado. Logo, todos sabiam que o STF não poderia fazer por si, através de uma decisão, a interpretação/alteração do principio de inocência.
Avançou o STF na órbita legislativa e avançou muito mal.
Deu uma interpretação do direito fundamental de modo a diminuir a proteção e sabemos, pois é beabá da hermenêutica constitucional, que normas fundamentais não podem ter leitura restritiva. O intérprete das normas fundamentais em hipótese alguma pode diminuir o alcance da mesma.
Ainda, em matéria de fundamentação, mais de um ministro referiu-se à expectativa social, ao eco das vozes do povo ou coisas do tipo.
Por Deus! Nenhum magistrado, de qualquer tribunal, pode substituir a vontade da “polis” pelo o que ele supõe ser a voz popular.
Esta vontade tem uma fonte, que é insubstituível, a Constituição Federal. Neste documento, é que encontramos o que o povo brasileiro tem como expectativa de construção da nossa sociedade, sob quais princípios, fundamentos e patamares éticos. Não sei que vozes e vontades são essas que os ministros se referiram. Com certeza, não se identifica a sociedade almejada pelo povo brasileiro em outro lugar, que não na Constituição. Nenhum juiz vai buscar a vontade da “polis”, em TV, jornal, redes sociais, pesquisas, enquetes, manifestação, aplausos ou vaias.
Os juízes e o Judiciário têm um vínculo de subordinação única: com o povo, nos termos do ordenamento constitucional, democraticamente construído, pelos constituintes originários e pelos legisladores.
Os magistrados têm dever de lealdade à Constituição. Para exercer este papel devem ter estofo para enfrentar a mídia, por mais difícil, doloroso e incômodo que às vezes isto possa parecer. Caso contrário, correremos o risco de criar a prisão-mídia; a prisão-populista, etc… tudo muito distante do papel de garantir o estado democrático de direito.
Forçoso reconhecer que, neste julgamento, o STF assumiu para si a desumanização desenfreada do sistema penitenciário. Não é à toa a perplexidade do ministro Ricardo Lewandowski, pois em duas ações recentes (ADPF 347 e RE 592.581) a Corte reconheceu a brutalidade do sistema prisional brasileiro e o excessivo uso das prisões provisórias. Somam-se os informes apresentados pelo ministro Celso de Mello, que provou com dados estatísticos que, em razão de recursos extraordinários criminais, 25% das condenações são revertidas.
A decisão deste HC está em gritante descompasso com a história do próprio STF.
Espero que a lição de humildade que foi dada por um magistrado de São Paulo, que alterou sua decisão (referente à ocupação das escolas de São Paulo), alcance todos os ministros e, assim, possamos sair, todos nós, deste estado de perplexidade e tristeza.
Enquanto isto, continuemos a ler e escrever o artigo 5º, inciso VII, da CF, tal como está grafado, pois, como lembrado por um dos ministros do STF: a decisão é exclusiva para este caso.
Kenarik Boujikian, magistrada no Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia
PS do Viomundo: Na sessão da última quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) , por maioria de votos, negou o habeas corpus 126292. Entendeu que a possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência.
Foto de capa: https://www.flickr.com/photos/cidh/22146666290/in/photostream/