De autoria do deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), a proposta já foi aprovada pela Câmara e será apreciada no Senado. Movimentos e entidades da sociedade civil contrárias ao uso dos transgênicos se articulam para impedir que o projeto vire lei e explicam os riscos de se consumir alimentos à base de organismos geneticamente modificados
Por Anna Beatriz Anjos
No final de abril, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 4.148/2008, de autoria de Luis Carlos Heinze (PP-RS). Em linhas gerais, ele altera as regras de rotulagem dos produtos produzidos à base de transgênicos.
Caso passe também pelo Senado, a proposta modificará o artigo 40 da Lei 11.105 – conhecida como “Lei de Biossegurança” – e praticamente revogará o Decreto 4.680, que regulamenta o direito à informação sobre “alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados”, os OGMs.
Entre outras determinações, o projeto estabelece que apenas os produtos que apresentem 1% ou mais de elementos transgênicos em sua composição final – estes terão de ser detectados em análise específica – sejam identificados ao consumidor. Além disso, desobriga a presença do símbolo hoje utilizado para caracterizar a transgenia: o triângulo amarelo dentro do qual há a letra “T” em preto, já conhecido por grande parte das pessoas. A espécie doadora do gene também não precisaria mais ser informada.
Organizações da sociedade civil têm se posicionado publicamente contra o PL. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) lançou, no fim de março, uma carta contra a matéria, antes mesmo de ser aprovada pelos deputados federais. Assinam o documento diversas outras entidades, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Greenpeace, Via Campesina, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e o movimento mundial Slow Food. Este, inclusive, lançou um manifesto próprio contra o PL.
Para Fabiana Sanches Urbal, uma das integrantes da rede internacional e fundadora da Escola Como Como de Ecogastronomia, a proposta de Heinze é um retrocesso, pois “devolve o transgênico ao completo anonimato”. “O Brasil foi pioneiro ao estabelecer uma rotulagem que permite a fácil identificação de produtos com ingredientes modificados geneticamente. Ainda que a legislação seja cumprida apenas parcialmente, é tida como um exemplo mundial nesse quesito”, explica. “Conteúdos transgênicos, mesmo em dosagens consideradas seguras, devem ser alertados de maneira clara nas embalagens para que os cidadãos possam cada vez mais facilmente identificá-los, já que não há consenso sobre sua segurança e, portanto, as pessoas devem poder escolher produtos não transgênicos caso assim prefiram.”
A pesquisadora do Idec e engenheira ambiental Renata Amaral afirma que impedir a distinção entre produtos transgênicos e não transgênicos fere o direito do consumidor à informação. “Dentro do Código de Defesa, o consumidor tem esse direito como um dos básicos. A partir do momento em que você retira o símbolo, que é um elemento de fácil identificação de que aquele produto foi produzido a partir de organismos geneticamente modificados, isso acaba não informando o consumidor de um modo mais amplo, impedindo também que ele exerça seu direito de escola”, afirma.
Amaral aponta ainda outra questão a ser levantada sobre o PL 4.148/2008. “É uma sacada muito inteligente que passa desapercebida: a obrigatoriedade de rotulagem somente após análise específica. Isso significa pegar o produto final, já processado e industrializado, levar para um laboratório e tentar analisar seu DNA, verificar se tem ou não transgênico e se está acima de 1%. A questão é que, nos produtos processados, o DNA original já está tão desconfigurado que não se consegue detectar e muito menos quantificar a taxa de transgenia. Dessa forma, muitos produtos, principalmente os processados, que hoje são rotulados, deixarão de sê-lo”, sublinha.
Os problemas dos transgênicos
Não é à toa que há uma frente de movimentos, especialistas e entidades civis mobilizadas contra o projeto de lei apresentado por Heinze. A discussão em torno dos malefícios que os transgênicos podem implicar em diversos aspectos de nossas vidas é antiga.
“É muito importante frisar que o problema não é a tecnologia da transgenia em si. Mas a forma como ela é aplicada, principalmente na agricultura industrial, que é simplesmente inaceitável e irresponsável”, ressalta Fabiana Sanches Urbal. “Há diversos indícios de que os potenciais benefícios alegados não compensam os potenciais riscos biológicos dos transgênicos e dos agroquímicos correlacionados – tais como indícios de cânceres, disrupções endócrinas, resistência a antibióticos, má-formações, doenças crônicas, neurodegenerações, alergias.”
Renata Amaral destaca as consequências ambientais que os organismos geneticamente modificados podem acarretar. “A principal delas é que, quando você opta por uma plantação transgênica, geralmente está dentro de um modelo de monocultura, que carrega uma série de impactos ambientais relacionados a ele. Por exemplo, não há diversidade de espécies, nem de flora nem de fauna; o solo é completamente degradado, e consequentemente, em alguns casos, acaba-se extinguindo algumas nascentes e alguns rios que passariam pelo local”, aponta. “Uma outra questão é que hoje, no Brasil, praticamente todas as sementes vendidas são transgênicas, então há cruzamentos genéticos, por conta dos polinizadores, que não se sabe muito bem quão degradares são. Você acaba contaminando outras plantações.”
O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Em 2014, segundo dados da Abrasco, o consumo médio de defensivos agrícolas no país alcançou o alarmante nível de 7,36 litros por pessoa – em 2011, a proporção era de 5,2 litros. O vertiginoso crescimento do uso destes produtos por aqui também guarda relação direta com a transgenia. “A questão é que muitos dos transgênicos são alterados para que sejam resistentes aos agrotóxicos – o milho Bt, por exemplo, é resistente ao glifosato. O que acontece é que o produtor, quando vai comprar a semente, já compra o pacote semente mais agrotóxico. Como essa espécie é resistente a ele, tanto faz quanto o produtor aplica, ela ficará intacta. Esse tipo de prática aumentou e muito o uso de agrotóxicos”, esclarece a especialista do Idec.
Em linhas gerais, o emprego de sementes transgênicas afeta de forma expressiva a qualidade dos alimentos que chegam à nossa mesa. “Quando ouvimos [o termo] ‘alimentação saudável’, o que estamos ouvindo? O grande tijolo construtor de tudo isso é o ‘ingrediente saudável’ (proveniente de um solo saudável). E a questão dos transgênicos toca diretamente nesse ponto”, defende Urbal.
A integrante do Slow Food explica melhor. “Nós amamos nossa cultura alimentar. Ela é famosa no mundo inteiro. Nossas feijoadas, farofas, cuzcuzes, pamonhas, angus, os nossos virados, bolos, tortas, biscoitos, bolinhos, salgados e doces. Em muitos deles, o ingrediente fundamental é o milho. Atualmente, 82% da produção de milho seco no Brasil é geneticamente modificada. Ou seja, os ingredientes de todos esses pratos tradicionais estão contaminados com venenos e geneticamente modificados.”
Os danos não param por aí: não somos somente nós, que comemos alimentos à base de transgênicos, as vítimas de seus efeitos colaterais. Quem trabalha no cultivo e tenta, inclusive, reverter a lógica das grandes corporações que monopolizam o mercado, também sofre as consequências. “Empresas de biotecnologia informam que produtores familiares ainda poderiam ter maior produtividade com essas variedades (patenteadas - híbridas e/ou transgênicas), mas não informam que eles terão apenas essas variedades para produzir, sendo forçados a comprar o que comer e não mais plantar, afetando diretamente sua segurança e soberania alimentar”, assinala Urbal.
Segundo a ativista, tal processo traz sérios danos à nossa agrobiodiversidade – definida pelo Ministério do Meio Ambiente como "a parcela da biodiversidade utilizada pelo homem na agricultura, ou em práticas correlatas".“A insustentabilidade desse cenário força muitos agricultores familiares a deixarem suas terras. Quando são expulsos, não apenas sua produção se perde, mas todo o conhecimento sobre semeadura, colheita, conservação, manejos específicos daquele local, preparos agrícolas e culinários e variedades locais. A extinção da agrobiodiversidade em última instância significa uma perda sociocultural irreversível e insubstituível”, pontua.
(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)