Amazônia brasileira, parte oriental, divisa entre Pará e Amapá. É tempo de chuva. Enquanto a maioria das famílias organizava suas ceias e confraternizações de Natal, extrativistas de Repartimento dos Pilões – comunidade do distrito de Monte Dourado, no município de Almeirim – juntaram-se para impedir que cerca de 200 trabalhadores de uma empresa contratada pelo Grupo Jari continuassem a extrair madeira de lei de seu território secular.
Em manifesto assinado pela Associação dos Micros e Mini Produtores Rurais e Extrativistas da Comunidade de Repartimento dos Pilões e Vila Nova (Asmipps) e pela Rede Intercomunitária Almeirim em Ação (RICA), os extrativistas argumentam que a área de floresta primária em que coletam a castanha do Pará – e onde moram há cerca de cem anos – tem 61 mil hectares. O que significa que a extração de madeira de lei estaria dentro do território da comunidade, que reivindica do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) a concessão do título coletivo sobre a área.
Mas a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará (Sema) autorizou as atividades da Jari ao expedir o Plano Operacional Anual (POA) apesar de ter se comprometido em acordo firmado em maio de 2013 – e lavrado em ata – a não liberar a área até a resolução sobre a questão fundiária. Outro ponto destacado pelos extrativistas é que a castanheira, proeminente no local, é protegida por lei, e não pode ser explorada economicamente.
Ainda assim, a pedido da empresa, a Sema aprovou a Unidade de Produção Anual (UPA) de nº 09 nas proximidades do território requerido pela comunidade. O manifesto dos extrativistas denuncia indícios de erros técnicos sobre a delimitação da área, ou sobreposição, que teriam que ser investigados antes de qualquer decisão. Mas o secretário adjunto de Gestão e Regularidade Ambiental da Sema, Hildemberg Cruz, nega irregularidades. Segundo ele, o pedido da empresa era de 15 mil hectares e a secretaria autorizou uma área de 9 mil hectares, justamente para excluir áreas sobrepostas com Áreas de Manejo Florestal (AMF), áreas de comunidades ou fazendas com decisão judicial favorável ao Estado.
No final de 2014, quando já tramitava na Justiça um pedido de interdito proibitório movido pela associação dos extrativistas – com parecer favorável na Vara Agrária de Santarém – a Sema liberou novas licenças de exploração para a Jari, que os associados acusam de avançar sobre os castanhais e outras espécies da área de Repartimento. Segundo eles, a empresa se recusou a conversar com os moradores, alegando que a madeira seria retirada de qualquer maneira. “Temos tudo gravado”, conta um deles. “Desde a criação da associação a empresa se afastou. Conversam apenas com uns dois moradores que apoiam o projeto”, diz outro (os nomes foram preservados para evitar represálias)
Sem diálogo com a empresa, os extrativistas decidiram partir para o “empate”, uma estratégia de resistência pacífica em que famílias inteira formam um cordão humano, com o objetivo de convencer os peões a desligar as motosserras e manter a floresta em pé. O empate nasceu no fim dos anos de 1970, no estado do Acre, entre os extrativistas então liderados pelo seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988, às vésperas de outro Natal.
O restabelecimento da democracia não interrompeu o ciclo de morte e violência do Estado contra as comunidades amazônicas, inaugurado com a política de integração econômica imposta pelo regime militar, que concentrou terras nas mãos de empresas nacionais e multinacionais. Foi na ditadura, em 1967, que o multimilionário estadunidense Daniel Ludwig chegou à região para instalar o Projeto Jari, um complexo agroindustrial que desmatou mais de 200 mil hectares de floresta densa. A Gmelina e o Pinus, árvores destinadas à produção de celulose, passaram a ocupar o lugar de castanheiras e maçarandubas; 20 mil hectares de arroz e 80 mil hectares de banana e dendê foram plantados, além de pastos para criar 100 mil cabeças de gado e 40 mil de búfalos, como conta o jornalista Lúcio Flavio Pinto no livro Jari: Toda a Verdade Sobre o Projeto de Ludwig(Clique para ler a história completa da disputa pela terra na região do Projeto Jari). Desde 1999, o Grupo Orsa controla o Grupo Jari – composto pela Jari Celulose, Jari Florestal, Jari Minerais, Ouro Verde da Amazônia, Fundação Jari e Marquesa.
O papel da Fundação Jari seria fazer a mediação com a população impactada pelo empreendimento, sob o guarda-chuva da estratégia de responsabilidade social. Como se vê no caso dos Pilões, isso está bem longe de se realizar na prática. O Estado também não cumpre sua função de regularizar as terras públicas conforme a determinação constitucional. Aos extrativistas, sobrou a coragem para resistir.
Natal na floresta
Quando os quatro ônibus chegaram trazendo os peões na manhã do dia 24 de dezembro, deram de cara com uma dúzia de pessoas da comunidade que, desde a véspera, estavam à sua espera. Os acampados os informaram da situação. Não houve conflito. Os trabalhadores compartilharam o rancho com o grupo. Dias depois voltaram para apanhar os equipamentos. Ficaram felizes em não trabalhar no dia de Natal, contam os acampados. “Existe um acordo: nós não entramos nos locais deles, e eles não entram no nosso. Quando soubemos do estrago que estavam fazendo, a gente se uniu e ocupou aqui. Aí a gente falou, nada disso compadre, aqui é nosso. Nós temos garantia que a terra é nossa. Aqui tá embargado pela justiça”, diz um deles.
Visitei o local no dia 13 de janeiro a convite do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), quando já havia perto de 60 pessoas no barraco instalado no meio da floresta, onde a Jari Florestal explorava a madeira de lei. Homens e mulheres, jovens, idosos e crianças dividiam a lona preta na manhã quente de sol, de estrutura forte o bastante para sustentar as muitas redes armadas. Um grupo de acampados toma conta da cancela que dá acesso ao território violado pela empresa. Qualquer um que chegue é filmado e fotografado.
O sustento ganha o reforço da caça e da pesca de surubim e trairão em igarapés com nomes como Caracu, Inferno e Pacanari. “É a floresta que protege os nossos igarapés”, explica um morador. “A nossa maior dificuldade aqui foi a água. Depois que a gente se situou direito no trecho, tudo funcionou”, conta. Os moradores se cotizaram e contaram com a solidariedade de parceiros como o IEB para se instalar. Hoje a barraca tem luz a motor, TV, DVD, e antena parabólica. Além da água dos igarapés, existem galões de água mineral.
Para chegar ao acampamento, foram umas duas horas de viagem de carro em estrada de terra batida a partir da sede de Repartimento. Em boa parte do trajeto, o eucalipto domina a paisagem. Percebe-se claramente a separação entre a floresta nativa e a monocultura nas proximidades do local. Vimos um pátio com a madeira puxada de dentro da mata; montes de troncos de maçaranduba, angelim vermelho, piquiá, e outras espécies nobres, identificadas por códigos conforme a sua procedência. Nos locais onde algumas árvores foram retiradas os extrativistas registraram espécies tombadas com menos de 50 centímetros de raio (árvores jovens), violando a legislação. Este é um dos motivos que os fazem questionar o modelo de manejo sustentável aplicado pelo Grupo Jari.
Certificação Florestal em Xeque
Em seu site, a Jari Florestal afirma ser referência mundial no manejo florestal sustentável nos trópicos, festejando a conversão de 545.000 hectares de floresta nativa em área para exploração de madeira de lei. Trata-se da maior extensão territorial do mundo para exploração de madeira tropical certificada. O mercado europeu é o principal destino de 25 espécies nativas da Amazônia processadas industrialmente.
O selo verde, como é conhecida a sigla FSC – Forest Stewardship Council – (Conselho de Manejo Florestal em português), é a certificação ambiental mais conhecida do mundo, com presença em 75 países. Vinte princípios devem ser obedecidos para que a empresa receba a grife ambiental, que teoricamente garante que a exploração dessa madeira – certificada – promove o desenvolvimento sustentável. O FSC Brasil nasceu em 2001. Até 2007 os negócios no setor de madeira certificada atingiram o patamar de R$ 3 bilhões, informa o site da WWF.
As entidades extrativistas, porém, questionam a renovação do selo verde da Jari Florestal. Em 5 de setembro de2014, a Assimpps já havia encaminhado Carta da ASMIPPS ao conselho do FSC Brasil, questionando o relatório produzido pela Sysflor, empresa com sede em Curitiba, contratada pela Jari para desenvolver a pesquisa que subsidiou o relatório para renovação do FSC da empresa. A certificação vale por cinco anos e foi renovada em julho de 2014.
Na carta, a associação acusa o relatório da consultoria de mentir ao afirmar que entrevistou moradores da comunidade, e afirma ser equivocada a informação de que não existe comunidade tradicional na área de exploração de madeira. Ressalta que o documento omite as situações de conflitos entre moradores e a Jari Florestal, e questiona os serviços da Fundação Jari à comunidade citados no relatório: segundo os moradores nunca existiu um único projeto social em Repartimento. A Associação dos Moradores das Comunidades do Rio Parú e Amazonas também declararam em Carta da Associação do rio Paru e Amazonas enviada ao FSC que nunca foram visitados pela Sysflor.
Manuel Amaral, representante do IEB no Conselho da FSC Brasil, afirma que existem evidências de falhas no comportamento da Sysflor. “O caso é muito sério e precisa ser investigado. As associações de moradores já manifestaram insatisfação. E por conta disso o MPE contestou o relatório de recertificação. O Greenpeace também repercutiu o caso como um dos problemas delicados da certificação no mundo. Tudo isso deverá ser respondido pelo FSC Internacional, que tem competência para se posicionar”, afirma o engenheiro.
Amaral informa que até então não havia registros de suspeitas sobre a certificação socioambiental impactando negativamente a relação empresas-comunidades. “Pelo contrário, conheço muitos casos de que tenha servido para mediar conflitos e acomodar relações promissoras”, diz.
No dia 29 de novembro de 2013, o Ministério Público do Estado do Pará, comarca de Santarém, pediu a suspensão de todos os Planos de Manejo da Orsa Florestal, Jari Celulose e a Papel e Embalagens S.A, nos limites das unidades de conservação integral ESEC Jari, Rio Paru, e Amazonas.
O documento toma como base a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata dos povos tradicionais e de sua participação na administração e conservação dos recursos da natureza; e o artigo 186 da Constituição Federal, que estabelece a função social da terra e o uso racional dos recursos naturais. A promotora de Justiça de Santarém, Ione Missae da Silva Nakamura, recomendou à Sema a suspensão de Planos Operacionais Anuais, Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a Autorização de Exploração Florestal em áreas de floresta nativa.
Na bacia do “Rio do Senhor”
Em tupi Jari significa “Rio do senhor”. As águas em tom escuro nascem na Serra do Tumucumaque, na fronteira com o Suriname, e cortam a vida de pelo menos cem mil pessoas nos estados do Pará e Amapá até desaguar em frente à Ilha de Grande de Gurupá, no estuário do Amazonas. O parque nacional Montanhas do Tumucumaque é o maior do país, com área de 38.464 km², pouco menor que a da Suíça. O complexo ambiental abrange seis unidades de conservação, criadas na década de 1990, sendo três estaduais (a Floresta Tropical do Parú, a Reserva do Desenvolvimento Sustentável Iratapuru e Reserva Biológica Maicuru) e três federais: Parque Nacional do Tumucumaque, Estação Ecológica Jari e a Reserva Extrativista de Cajari. Rio Pau D´Este e Waiapi são as terras indígenas. Na fauna, considerada rara, são encontradas entre as outras espécies: Gavião-de-penacho, Jacu, Choquinha, Mãe-de-Taoca-de-Garganta-Vermelha, Pássaro-Boi, Maú, Araponga-Branca, Galo-da-Serra e a Gralha.
O regime hidrográfico da bacia é bem definido. O período de maior cheia ocorre entre os meses de março a julho, enquanto a quadra mais seca compreende os meses entre outubro a dezembro. Em tempos de crise hídrica a água abunda nesta latitude. Conforme a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) a disponibilidade hídrica da bacia do rio Jari é mais de 10 vezes superior à disponibilidade hídrica nacional. A baixa demografia regional colabora para a construção do indicador.
As muitas corredeiras e cachoeiras dificultam a navegação do largo rio. Numa delas foi erguida uma hidrelétrica, a de Santo Antônio que gera 373,4 MW de energia. Cinco vezes mais do que a necessidade do estado do Amapá. A obra inundou mais de cem mil metros de floresta e foi finalizada ano passado pelo Consórcio EDP, integrado pelo grupo paulista ECE Participações S.A. (90% das quotas) e a Jari Energética S.A. (10% das quotas). É neste perímetro, na localidade de Mulungu, que a Jari Celulose controla o porto fluvio-marítimo.
A cachoeira Santo Antônio, alterada pela usina, era considerada de grande beleza, fonte de lazer e água potável para a população nativa. Fica no município de Laranjal do Jari, no Amapá, uma cidade dormitório que cresce desordenadamente na área de influência do Grupo Jari e suas terceirizadas. Beiradão ou beira é como os moradores da região tratam o local. A moradia é precária, a maioria das casas são de madeira. O aspecto é de favela.
A travessia do rio Jari de catraia (lancha voadeira) custa um real. Menos de vinte minutos de viagem separam Laranjal do Jari de Monte Dourado, a company town do projeto Jari, localizada no município de Almeirim, Pará. Planejada para abrigar funcionários do Projeto Jari, a pacata vila chegou a ter perto de 16 mil operários no auge do projeto. Asfaltada, conta com serviços bancários públicos e privados, e pequeno comércio. As casas seguem padrões hierarquizados conforme a função do operário. Nos locais onde o distrito avança para dentro da floresta, chamados de “silvivilas”, a empresa controla a vida laboral e privada. Estabelece regras rígidas, em particular com relação ao consumo de álcool.
As terras comunitárias
Também no distrito de Monte Dourado, a comunidade de Repartimento de Pilões é completamente diferente dacompany town. Seu moradores são migrantes nordestinos, ênfase a maranhenses, que vivem do extrativismo da castanha, seringa, balata, açaí, cipós, pesca, caça, lavouras de cacau, feijão, milho, arroz e hortifrutigranjeiros. Os mais antigos possuem algum grau de parentesco, compadrio e proximidade, a exemplo do que ocorre com a família Araújo, onde o senhor Getúlio é tido como o pioneiro.
O território é coletivo, marcado por áreas de uso individual. Castanha, angelim vermelho, maçaranduba, cedro, andiroba, copaíba e piquiá são algumas das espécies que integram uma parcela de floresta nativa do lugar. onde circulam veados, pacas, tatus, antas. De acordo com os moradores, a área é a derradeira de floresta primária densa na geografia marcada pelo monocultivo do eucalipto do Projeto Jari.
A escola local atende a cerca de 20 alunos até a quarta série, os demais são obrigados a estudar fora, na comunidade de São Miguel, 60 quilômetros distante em estrada de chão batido. No verão enfrentam a poeira do inclemente trópico úmido. No inverno a lama. Não existe serviço de energia elétrica. As famílias com melhor poder aquisitivo garantem energia graças a um pequeno gerador movido a diesel ou gasolina. Na sede da comunidade árvores frutíferas circundam as casas, entre elas o cupuaçu, manga, açaí e carambola.
O abastecimento de água segue a mesma lógica da energia, construção de poço individual e bomba que ajuda a encher as caixas d’água. O igarapé tem reduzido a cada ano por conta do assoreamento produzido pela cultura homogênea do eucalipto e o intensivo uso de herbicida de acordo com as comunidades espalhadas pela região. Segundo a engenheira florestal do IEB, Wandréia Baitz, a monocultura de eucalipto provoca também o afugentamento de espécies e a redução da biodiversidade, da flora, fauna e microfauna, e, para alguns pesquisadores, déficit hídrico.
A população de Pilões não conhece saneamento básico, e o lixo é queimado individualmente em buracos. Uma igreja evangélica, outra católica e um campo de futebol compõem os espaços coletivos, algumas bodegas comercializam gêneros de primeira necessidade. O tempo corre lento, com vizinhos proseando nas portas das casas de madeira cobertas por telhas de amianto. O rádio continua sendo a principal fonte de informação; a TV é ligada somente no período da noite, nos horários de telejornais e novelas.
Visitamos outras comunidades nos ramais, como são chamadas as estradas vicinais na Amazônia, sob a fina chuva que caía sobre a floresta. O condutor da moto explicou que todo dia chove pelos menos umas três vezes. O clima é suave por causa da proximidade da floresta, e o solo escorregadio, cheio de poças de lama.
Água Azul – Ramal da Família Batista
Um igarapé corre no quintal de dona Francisca Batista. Galinhas ciscam no terreiro. O porco passeia, enquanto dois homens produzem farinha. Filhos, noras, genros e netos estão na casa. Umas oito pessoas ao todo. No dia anterior, dona Francisca havia prometido uma galinha caipira para o almoço. Mas, serviu carne de caça cozida num fogão à lenha feito de barro. Por mais pobre que seja a família da roça, sempre há algo a oferecer. Ela trabalha numa área de 100 hectares. É a média da região.
Francisca é evangélica, como a maior parte da família, dona de traços indígenas e estatura pequena. Está no segundo casamento – o primeiro foi aos 18 anos de idade, quando ainda morava na comunidade de Pimental, no mesmo perímetro. A mãe de cinco filhos já trabalhou em terceirizada do projeto Jari. É uma espécie de líder do ramal que abriga as 13 casas dos Batistas. Ela e o atual companheiro, Jacinto, sobrevivente de uma picada de cobra comboia, relatam ter sofrido inúmeras ações de coerção da empresa.
O casal chegou a ser expulso dali e reassentado na comunidade de São Miguel. Ameaçados por um morador, os dois decidiram voltar ao ramal de origem, na localidade de Água Azul, uma espécie de loteamento popular. Estão lá desde 2005.
A família conta que sob as ordens de um senhor que atendia pelo nome Almeida, ligado à Jari, teve a casa derrubada em cinco ocasiões. Em junho de 2013, pessoas ligadas ao Projeto Jari entraram à noite com trator e derrubaram 36 hectares de roça dos Batistas para plantar 15 mil pés de mogno, detalham. Além de Almeida, a família cita os nomes dos senhores Gilberto e Nilson, do setor de segurança da empresa, como seus perseguidores. E explica que só conseguiu fazer boletim de ocorrência com a intervenção do Ministério Público do Estado (MPE). “Quando a gente chegava para fazer ocorrência contra a empresa, o delegado se negava”, contam. Dados divulgados pela assessoria jurídica da Jari Florestal revelam que 95 ações de reintegração de posse em favor do empreendimento foram realizadas na última década.
Na manhã do dia 14 de janeiro de 2015 um ônibus que faz linha para o Loteamento Sarney, em Laranjal do Jari, adentrou a área em litígio da comunidade. Carregava 40 operários da prestadora de serviço NDR, que realiza manejo de madeira de lei. Jacinto interveio, alegou que área estava na justiça. Nela o agricultor cultivava mandioca, melancia, feijão e milho. O coordenador da equipe acatou o pedido do camponês.
Marcos Batista da Silva, filho de Francisca, mora há 10 anos no lugar. Ele e a mãe receberam o título de posse do Iterpa. Mas teme perder a terra. “A empresa chega aqui com liminar. A gente não sabe de nada. Já tive a minha casa derrubada três vezes, e o meu roçado destruído umas duas. Saí para trabalhar fora, cheguei tava tudo no chão. Deixei um monte de maniva. Eles chegaram de caminhão e levaram tudo. Na outra vez foi o açaí. A gente vive ameaçado e com medo. A gente não trabalha sossegado. Isso ocorre desde 2007 pra cá,” relata Marcos.
Ele conta que faz poucos dias o pessoal da segurança o visitou: “O Gilberto veio aqui. Ofereceu emprego, terra em outro lugar. Falei a ele que não trairia a minha família. Sou evangélico”. Apesar do receio em ser expulso, mantém um viveiro de mudas de açaí. Sonha cultivar um açaizal em paz. “A gente é coloneiro. Tem de fazer várias coisas pra viver”, explica o extrativista.
A família paráucha
Carlos Gotardo, filho do gaúcho Eugênio, vive na comunidade de Pilões. A família morava no município de Medicilândia, no sudoeste do estado. Lá cultivava cacau. O pai, senhor Eugênio, avaliou que a cidade estava muito agitada. Ela fica perto de Altamira, onde está sendo erguida a hidrelétrica de Belo Monte. A especulação tomou conta do lugar. O patriarca resolveu mudar para Repartimento de mala e cuia. Os quatro filhos nasceram no Pará, dois homens e duas mulheres.
Conseguiu área para trabalhar em 2005, ano em que iniciou o pagamento do Imposto Territorial Rural (ITR). Desmatou no ano seguinte, e foi multado em cem mil reais por isso. A família recorreu da multa, e fez o replantio de cacau, que é nativo da região. Em 2007 tinha 25 mil pés de cacau plantados, cinco mil pés de banana, três mil pés de mamão Havaí. E cultivava pepinos, tomate e outros hortifrutigranjeiros.
Em 2010, no dia de 31 de novembro a família teve todo o trabalho destruído por força de liminar expedida em favor do grupo Jari pelo juiz da vara civil do estado. Cem homens armados de foices sepultaram em algumas horas a labuta de cinco anos. A ação era movida contra o pai de Carlos, mas, os peões devastaram também as plantações dele. A área ficou um capoeirão. O processo continua na justiça.
A empresa Jari Celulose acusa os moradores de ocupar uma área de cinco quilômetros. Segundo Carlos e outros moradores, a empresa usa como prova de direito ao território um título da fazenda Santo Antônio da Cachoeira, que é questionado na Justiça. “Minha família e os demais camponeses somos perseguidos de todo jeito: polícia, Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Pará), e por aí vai”.
O repórter enviou email à assessoria de imprensa da Jari, que não se manifestou sobre as acusações.
Grileiros x extrativistas
Investigações do jornalista Pinto, nos arquivos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), sublinham que a Jari possuía, em 10 de outubro de 1977, uma área total de 1.006.261 hectares, dos quais 576.222,3 hectares no estado do Pará e 430.039,6 no Amapá; já o Grupo Jari assegura que a área oficial era de 1.632.121 hectares, porém menos de um terço teria título definitivo. Alguns de seus diretores e advogados chegaram a declarar que a empresa teria até mais de 3 milhões de hectares.
Aqui reside o principal nó da questão, não somente no caso do Projeto Jari, mas, em toda a região. O caos fundiário, nublado por grilagem de terra de toda ordem e sorte. 6.102 títulos de terra registrados nos cartórios estaduais do Pará possuem irregularidades. Somados, os papéis representam mais de 110 milhões de hectares, quase um Pará a mais, em áreas possivelmente griladas. Os dados resultam de três anos de pesquisa dos órgãos ligados à questão fundiária no estado, através da Comissão Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões Ligadas à Grilagem (Tribunal de Justiça, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Advocacia Geral da União, Ordem dos Advogados do Brasil, Federação dos Trabalhadores na Agricultura, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, Comissão Pastoral da Terra e a Federação da Agricultura do Estado do Pará). O documento foi apresentado em 30 de abril de 2009 no auditório do Ministério Público Federal (MPF).
Conforme o Ministério Público do Estado (MPE) existem 104 documentos fundiários que compõem a área que a empresa diz ter o domínio, cerca de 956 mil hectares. No entanto, parecer da Procuradoria Geral do Estado (PGE) de 2005\6, aponta que uma parte dessa área pretendida é terra pública. A PGE ingressou com ação judicial para reconhecer que a Fazenda Saracura, com aproximadamente 255 mil hectares é de domínio público do Estado, e não propriedade da Jari. A empresa recorreu da decisão do juiz da Vara Agrária, que reconheceu o domínio público da área da fazenda. Cabe ao Tribunal de Justiça do Estado (TJE) a confirmação ou não da sentença.
O Iterpa realiza estudos e georreferenciamento na área do Jari, e existe um grupo inter-instituicional (composto pelo Iterpa, Sema, MPE e Defensoria Pública com o objetivo de equacionar a situação fundiária A situação de conflito é acompanhada pela Ouvidoria Agrária Nacional.
Vitória no Empate
No dia 15 de janeiro de 2015, a Vara Agrária de Santarém proibiu a Jari Florestal de extrair madeira de lei do território da comunidade de Repartimento dos Pilões. A sentença em favor dos extrativistas da Comunidade de Repartimento dos Pilões foi assinada pelo Juiz André Luiz Filo-Creão G. da Fonseca, e publicada no dia 13 deste mês do processo de número 0000205-84.2015.8.14.00.
A medida foi tomada por temer um conflito entre as partes envolvidas. Assim a empresa Jari Florestal está impedida em explorar os recursos da comunidade. Agora resta decidir sobre o destino que será dado a madeira que já foi extraída. Nos dias seguintes o acampamento foi desfeito, mas, conforme a associação de moradores do lugar, um grupo fiscaliza o local em sistema de revezamento.
Na mesma semana, em Monte Dourado, no bairro do Matadouro, moradores enviaram a este repórter vídeos e fotos da ação de seguranças e policiais expulsando famílias de área ocupada. Por sua vez, por causa de salários atrasados, operários das empresas terceirizadas Leão Transportes e NDR realizaram paralisações.
No fim de janeiro, porém, o desembargador Noronha Tavares suspendeu liminar do Juiz André Luiz Filo-Creão G. da Fonseca. Noronha justificou a decisão alegando que a empresa tinha apresentado farta documentação que comprovaria a posse da terra, entre elas Certidão de Autenticidade nº 101, expedida pelo Instituto de Terras do Pará (ITERPA), em março de 2012.
Na sentença o desembargador avalia que Fonseca foi induzido ao erro, e que os documentos anexados ao processo são insuficientes. Ele defende que o Cadastro Ambiental Rural (CAR) dos extrativistas, datado de 2015, é recente. O cadastro foi criado no ano de 2012, e necessita de uma série de procedimentos até ser expedido.
O desembargador parece desconhecer que o ITERPA ainda não apresentou os resultados dos trabalhos iniciados em 2006. A peleja no Jari ganha mais um capítulo em sua vasta história de incertezas nas terras jamais regularizadas do Pará.