Adaptado do livro homônimo do escritor nigeriano Uzodinma Iweala, Beasts of no nation é o primeiro filme inteiramente produzido e lançado pela Netflix (que só agora chegou a Portugal).
Em um país não identificado do oeste africano, uma pequena vila de refugiados civis se vê no meio do conflito entre governo e rebeldes. Para proteger a terra e a propriedade dos saques de ambos os lados, os homens da vila decidem não fugir. Identificados como membros do grupo rebelde, são presos e executados pelos soldados do governo. Agu, um menino de onze anos, consegue escapar da chacina e sobrevive para contar sua história.
No filme, vemos o processo violento de transição do menino Agu para o soldado Agu. Levado primeiro pelo instinto de sobrevivência, e depois por um desejo de vingança conta o governo que destruiu sua família, Agu aprende entre os rebeldes a ser o melhor deles. O seu mentor é o Comandante, personagem sem nome, cruel mas idealista, violento mas carismático, ambicioso mas também ingênuo diante das forças políticas que decidem a guerra enquanto ele trava batalhas.
O discurso aliciante do Comandante reúne toda a força dos argumentos que já conhecemos de outros filmes de guerra: a luta é justa, pela soberania do povo, para se vingar do governo assassino, corrupto e usurpador, em nome da honra e do valor de cada soldado. Esses valores, pouco a pouco, substituem os que Agu aprendeu de sua mãe, cristã, que o ensinou a rezar, ser bom e pedir a ajuda de Deus nos momentos difíceis.
A cada confronto, a cada homem morto, a cada mulher estuprada, Agu se pergunta se deus sabe o que se passa ali. Entre o remorso e a descrença, Agu cresce como homem e como soldado. Já não é o menino bem criado de sua mãe, já é capaz de matar a sangue frio um homem desarmado que implora por misericórdia.
O que destaca Beasts of no nation entre outros filmes do gênero, como os inspirados na guerra do Vietnã, é que não há a oposição herói branco/ocidental versus vilão corrupto africano/asiático. Soldados, políticos, missionários, professores, bons e maus, ambíguos principalmente, todos são negros, evidenciando que há mais de uma forma de se ser africano.
É diferente também a ênfase na inutilidade e no absurdo da guerra civil – essa guerra de emboscadas, de soldados esfarrapados e miseráveis, em que a fome, a desidratação e a doença matam mais do que as balas e explosões – em tempos de plutocracia. A guerra não é decidida em campo de batalha. Honra, vingança, força, toda essa virilidade, todo esse discurso sobre ser um "homem de verdade", essa encubadora de heróis de cinema, tudo isso é suplantado por jogadas diplomáticas. A diplomacia se alimenta das vidas de Agus e suas famílias. Os números de mortos servem como cartas políticas a serem jogadas no veludo verde da mídia. Mais um menino morto, mais uma mulher estuprada ou prostituída, as vidas perdidas em si são indiferentes, o que interessa são as manchetes nos jornais que formam a opinião do Ocidente. E enquanto isso acontece em salas fechadas de pequenos palácios, oásis de fartura num deserto onde tudo falta, menos o sol e a chuva, a guerra civil torna-se ainda mais estúpida porque simplesmente não pode ser vencida por nenhum dos lados, é apenas uma fábrica de notícias.
O cinema transforma tudo isso em uma experiência estética incrível. As locações em Gana de maneira muito sensível ressaltam a grandiosidade da natureza em face à pequenez humana, o drama da luta diária pela sobrevivência, as pequenas nuances dos sentimentos humanos nas condições mais adversas. E, então, paramos de pensar na bestialidade desse tipo de conflito, que está acontecendo agora na Síria, na Somália, no Iraque, nas nossas periferias urbanas, para falar da qualidade da fotografia, da excelente direção de Fukunaga, da atuação brilhante de Idris Elba ou do talento promissor dos jovens estreantes Abraham Attah (Agu) e Emmanuel Nii Adom Quaye (Strika). E então começamos a falar de cinema. Tamanho é o poder de sedução da arte. Tamanha é a capacidade de alienação da beleza.
A Netflix está na TV, no celular, no computador, em todos os lugares. Mas a guerra, a fome, a sede de sangue e vingança, tudo isso continua longe, em uma selva sem nome, em um continente distante. Derramamos algumas lágrimas, sinceras, mas inúteis, diplomáticas.
Ao fim do filme, Agu, bem alimentado e com abrigo, se pergunta como conseguirá agir de novo como um menino de onze anos, como poderá ter uma "vida normal" depois de ter visto o que viu, feito o que fez. O seu grande problema é estar curado para sempre da hipocrisia, dessa mesma hipocrisia que nos permite dormir em paz depois de conhecer a sua história.