Escrito en
NOTÍCIAS
el
Como a estratégia de associar posições contrárias às políticas israelenses ao ódio contra judeus é utilizada para desqualificar quem se opõe ao governo de Israel
Por Felipe Rousselet
A matéria abaixo faz parte da edição 119 de Fórum, compre aqui.
Em dezembro de 2012, o Centro Simon Wiesenthal, organização de direitos humanos voltada para a questão do Holocausto e sediada em Los Angeles, incluiu o cartunista brasileiro Carlos Latuff na lista dos dez maiores antissemitas do mundo no ano passado. Conhecido mundialmente por seu trabalho com movimentos sociais, ele ficou na terceira posição do rol, uma posição à frente do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, e uma atrás de torcedores de times de futebol europeus que entoam cânticos nazistas contra a equipe do Tottenham Hotspur, sediada em um tradicional bairro judeu de Londres.
Os motivos para a inclusão de Latuff na lista de maiores antissemitas de 2012 foram suas charges que criticam a operação Pilar Defensivo, investida militar de Israel contra a Faixa de Gaza, realizada em novembro passado. Durante a operação morreram 175 palestinos. De acordo com o Ministério do Governo do Hamas, dois terços deles eram civis. Pouco antes da divulgação de sua escolha, o cartunista publicou uma charge em que o líder israelense Benjamin Netanyahu espreme uma criança palestina morta e dela caem votos (pág. ao lado). A imagem faz alusão às possíveis motivações políticas de Netanyahu, em campanha para a eleição legislativa israelense, no ataque ao território palestino. Porém, a charge não faz nenhuma menção ao judaísmo.
Para Latuff, o fato de seu nome figurar como antissemita na lista do Centro Simon Wiesenthal foi quase um ato de vingança por parte do fundador da organização. “O fundador da organização, rabino Marvin Hiers, declarou por meio de um blogue pró-Israel que eu era ‘quase pior que antissemita’ por ter feito uma charge do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu espremendo votos do cadáver de uma criança palestina, durante os bombardeios a Gaza, em novembro de 2012. A charge foi publicada no blogue de maior visitação da internet, o Huffington Post. O rabino, na ocasião, exigiu que o site retirasse o desenho do ar. Como isso não foi feito, ele me adicionou a essa infame lista, quase como que por vingança”, afirmou.
Latuff diz não ter sido surpreendido com a sua inclusão na lista. “Sem surpresas, não é a primeira e nem será a última vez que serei acusado de antissemitismo por organizações que defendem as políticas do Estado de Israel. Trata-se de uma estratégia manjada associar crítica a Israel como ódio aos judeus”, acredita.
Após a inclusão do cartunista na lista, ocorreram diversas manifestações de solidariedade ao artista. Entre elas, o documentarista Silvio Tendler, autor de filmes como Jango e Os anos JK, que divulgou uma carta em defesa de Latuff. “Um centro criado para caçar criminosos nazistas, que perseguiram, mataram, deportaram, torturaram judeus durante a Segunda Guerra, agora é utilizado, de forma equivocada, para embaralhar sionismo com semitismo. Te consideraram como o terceiro maior antissemita da atualidade. Depois de você vem um clube inglês que, num bairro judeu de Londres, louva Hitler e as câmaras de gás; partidos efetivamente antissemitas na Grécia e na Ucrânia vêm depois do nome de um cartunista que usa sua arte para defender suas ideias. Antissionista, sim; antissemitas, não. Até porque, de descendência árabe, você também é semita, e afinal somos todos igualmente circuncisos. Tuas charges não são mais antissemitas que um artigo de Ury Avnery, Amira Haas ou de Gideon Levy, todos judeus, israelenses”, escreve Tendler na carta.
Antissionismo x antissemitismo
Reginaldo Nasser, professor do Departamento de Ciências Políticas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em Relações Internacionais, também defende que antissemitismo e antissionismo são termos que designam conceitos diferentes, mas que às vezes são confundidos de acordo com determinadas conveniências.
“O termo sionismo, de modo geral, refere-se a um movimento político que defende a constituição de um Estado nacional judaico. Dentro do chamado sionismo, há dissidência entre eles. Existem posicionamentos mais religiosos e outros, mais laicos. Agora, o semitismo é uma categoria que se refere à questão étnica. São coisas diferentes. Você pode dizer que uma pessoa é antissionista, mas não é antissemita. O antissemitismo é uma negação, uma aversão contra os judeus como grupo étnico e religioso”, explica. “Pela etimologia, é isso, agora cada um empresta o significado que a palavra terá quando estiver dentro de um embate.”
Já de acordo com Bernardo Kucinski, cientista político, jornalista, escritor e professor da Universidade de São Paulo (USP), o termo antissionista é aplicado para pessoas com posições diversas em relação ao Estado de Israel, e ao menos parte delas pode ser considerada também antissemita. Para ele, existem aqueles que são chamados de antissionistas por não concordarem com a “implantação e existência do Estado de Israel”; outros são chamados assim por “não gostarem de Israel, por seu passado, sua história e suas políticas, assim como muitas pessoas se declaram antiamericanistas por não gostarem dos Estados Unidos, por seu passado, sua história e suas políticas”.
Kucinski diz ainda que existem pessoas que se declaram antissionistas por serem contrárias à atual política expansionista e de ocupação de territórios por Israel, que, pelo acordo de Oslo, deveriam ser alocados no Estado da Palestina. Por último, ele diz que também existem os antissionistas que definem o sionismo como “o opressor, o fascista, o mal, o colonizador, ao passo que o antissionista é o antiopressor, o antifascista, o libertário, o bem”. De acordo com o professor, sionistas que são contrários à atual política expansionista e de ocupação de territórios por Israel não são nem antissionistas e nem antissemitas. “Não é antissemita e nem é antissionista, só que ele não sabe disso porque deixa se classificar pela palavra errada”, afirma o professor.
Já no caso daqueles que definem o sionismo como “o opressor”, Kucinski defende que estes, além de antissionistas, são também antissemitas. Nesses casos, ele prefere considerá-los antissemitas até que se prove o contrário, seguindo a tese do ator judeu Kirk Douglas. Quando lhe perguntaram se teria se deparado com muitos antissemitas durante sua carreira, o ator deu a seguinte resposta: “Eu adotei a regra de considerar todos antissemitas até prova em contrário.”
Sobre a inclusão de Latuff na lista do Centro Simon Wiesenthal, Kucinski afirma não ter uma posição definida por não conhecer o cartunista, assim como os critérios para a organização da lista, e por não ter acompanhado o caso em detalhes. “Importa muito o contexto da charge. Por exemplo, essa charge na mídia israelense hoje, em plena campanha eleitoral, na qual a questão palestina se tornou central, poderia ser vista como crítica feroz, mas aceitável à candidatura Netanyahu; mas num contexto não israelense, e sim cristão ocidental, a mesma charge pode alimentar o mito antissemita medieval de que os judeus usavam o sangue de criancinhas não judias para fazer o pão ázimo do Pessach. Concluindo, não tenho opinião definitiva sobre a decisão do Centro Wiesenthal, mas não gostei da charge”, declarou.
Por sua vez, Lattuff acredita que confundir o antissionismo com o antissemitismo é uma estratégia para blindar o Estado de Israel das críticas. “Essa máxima só funciona com Israel. Ninguém que critique as posturas da Arábia Saudita, Irã ou mesmo Afeganistão, que são repúblicas islâmicas, é tachado de antimuçulmano ou anti-Islã. Criou-se a ideia de que antissionismo é antissemitismo, como forma de blindar o estado de Israel de qualquer crítica”, defende o cartunista.
Apesar de ter declarado que não gostou da charge feita por Latuff, Kucinski reconhece que a direita israelense usa a confusão entre o antissemitismo e o antissionismo para deslegitimar seus críticos. Entretanto, defende que a mesma estratégia também é utilizada pelo “outro lado”. “Sim, isso tem sido uma tática da direita israelense. Mas o contrário também acontece. Ao vincular críticas às políticas do governo atual de Israel a uma ontologia do sionismo, caracterizado como mal em si mesmo, esses críticos, em determinadas instâncias e em determinado vocabulário, ultrapassam a linha vermelha do antissemitismo e certamente a da deslegitimização do Estado de Israel”, declarou.
Nasser compartilha da tese de que a confusão entre os termos é utilizada com fins políticos por organizações sionistas. “A questão da linguagem, seu emprego e o seu sentido, traduz o debate político. Se você faz uma crítica ao Estado de Israel, ou a ações do Estado de Israel, é uma crítica evidentemente política, como você pode fazer a qualquer Estado ou qualquer governo. Por vezes, quando acontece isso, existe uma movimentação para rotular de antissemita, que é o mais forte dos termos. Como antissionista não, uma vez que tem gente que critica, com toda razão, não como o Hamas, que quer eliminar Israel, mas que tem críticas ao movimento sionista. Por exemplo, o nazismo foi antissemita, então, de repente, você [crítico do sionismo] é colocado no mesmo campo que os nazistas”, defende.
Para Waldo Mermelstein, ex-integrante do movimento socialista sionista, que esteve por um ano em um kibutz e hoje declara-se antissionista e socialista, a responsabilidade por um eventual recrudescimento do antissemitismo é dos sionistas e do próprio Estado de Israel.
“Na verdade, os sionistas querem confundir a opinião pública dizendo que todo aquele que queima a bandeira de Israel é antissemita. Quem colocou o símbolo de uma religião em uma bandeira foram os sionistas. Na minha opinião, o Estado de Israel é um estado racista, não é um estado que é igualitário com todos os seus cidadãos, extraindo aqueles que não foram expulsos, os 20% que não são de origem judaica. E o Estado é feito para os judeus. O que existe, e que pode haver pela atuação dos sionistas em nome dos judeus, é um recrudescimento do antissemitismo, mas isso é responsabilidade do Estado de Israel”, avaliou.
Segundo ele, os sionistas, quando não podem atacar as críticas, afrontam aqueles que as fazem. “Do ponto de vista da opinião pública, o famoso ‘ganhar os corações e as mentes’, Israel nunca esteve tão enfraquecido. Por isso, essas acusações. É uma típica tática sionista. Se não podem atacar o que dizem, atacam as pessoas”, disse Mermelstein.
Latuff afirma que a sua inclusão na lista de maiores antissemitas é um indício de que seu trabalho está no caminho certo, e deixa uma mensagem para aqueles que militam por causas sociais: “Não é à toa que existe o ditado ‘ninguém joga pedra em árvore que não dá fruto’. Os rótulos, as campanhazinhas de difamação, se dão quando se pisa em calos. Se você apoia direitos humanos nas favelas, você ‘defende bandido’; se defende a descriminalização das drogas, você é ‘maconheiro’; se defende o marco regulatório da imprensa, é ‘a favor da censura’; se critica Israel é ‘antissemita’, e por aí vai. Cabe a quem milita numa causa estar preparado para enfrentar estes rótulos com coragem e determinação.” F