Escrito en
NOTÍCIAS
el
O Movimento Passe Livre iniciou o maior ciclo de manifestações de ruas da história recente do País. Entenda como ele surgiu e conheça a luta que trava há quase uma década
Por Paulo Cézar Pastor Monteiro
Esta matéria está na edição 124 da revista Fórum. Nas bancas ou compre aqui
A sociedade é um espaço repleto de catracas. Visíveis ou invisíveis, essas catracas impõem quem tem e quem não tem direito de acessar determinados espaços e serviços, limitam o acesso a saúde, educação, lazer e ao contato entre as pessoas. É contra a catraca dos transportes coletivos, talvez a mais visível dessas barreiras, que o Movimento Passe de Livre de São Paulo (MPL-SP) luta e, a significativa novidade, começa a vencer.
O grupo, que se organiza nacionalmente, conseguiu pela primeira vez na capital paulista revogar o aumento das passagens de ônibus, trens e metrô, que tinham passado de R$ 3,00 para R$ 3,20. Ficou evidente, ao longo do processo, que os impactos da luta iniciada pelo MPL-SP havia gerado impactos que iam muito além da redução dos 20 centavos.
Por enquanto, ainda há mais perguntas do que respostas para o que tem acontecido no Brasil e para onde as coisas podem ir. Nenhum partido político, analista, sociólogo ou filósofo tem uma interpretação segura do processo. Contudo, há uma certeza: a pauta do transporte e o MPL não foram protagonistas desse momento por acaso. O coletivo, ou organização, existe oficialmente desde de 2005, quando foi fundado no Fórum Internacional de Porto Alegre, fruto da união de comitês e grupos que lutavam, nas suas respectivas cidades, contra os aumentos da passagens.
Conhecedor do MPL de longa data, o professor de Políticas Públicas da USP Pablo Ortellado faz a seguinte análise para as perguntas: Por que o MPL? Por que o aumento das passagens? “Há dez anos, tem ocorrido grandes revoltas em diversas cidades contra o aumento das passagens dos ônibus. Nenhum partido ou político percebeu ou dialogou com isso. Essa insatisfação acumulada e a falta de resposta para ela contribuíram para a formação desse cenário.”
[caption id="attachment_28341" align="alignleft" width="350"] (Foto: http://www.flickr.com/photos/grmisiti/)[/caption]
Revoltas cruciais
O próprio MPL coloca duas dessas revoltas, citadas indiretamente por Ortellado, como os momentos históricos iniciais do grupo. Em 2003, Salvador, Bahia, viveu o episódio conhecido como a “Revolta do Buzu”. O movimento nasceu contra o aumento da tarifa de R$ 1,30 para R$ 1,50.
Sem nenhuma liderança ou organização que convocasse os protestos, um número incontável de pessoas, em sua maioria estudantes, tomavam as ruas de Salvador para protestar contra o aumento. O sentimento de revolta tomou a cidade de tal forma que, hoje, todos que viviam na cidade têm orgulho de dizer “Eu participei da Revolta do Buzu”.
Após o impasse colocado diante do prefeito Antonio Imbassay (PSDB), que já não era capaz de conter a insatisfação popular, entidades estudantis, que não tinham inicialmente influência direta na revolta, se colocaram como líderes dos manifestantes. Essas entidades, entre elas a UNE, apresentaram uma lista com dez pontos que cobririam “demandas históricas” do movimento estudantil ligadas ao transporte. Nove pontos foram atendidos, menos o da revogação do aumento.
Apesar de a principal pauta que gerou o movimento de revolta não ter sido contemplada, a negociação, combinada com a repressão aos manifestantes, acabou levando a desmobilização e ao fim da “Revolta do Buzu”. Caio Martins, integrante do MPL-SP, aponta que esse episódio em Salvador deixou importantes heranças. “A forma de luta da Revolta do Buzu com sua característica radical e massiva é uma fonte de inspiração. Ao mesmo tempo, o final das reivindicações não ter alcançado a principal meta deixou o alerta da necessidade de uma estrutura que impedisse a intervenção de terceiros”, pondera.
Outro episódio embrionário da história do MPL foram as Revoltas da Catraca de Florianópolis, ocorridas em 2004 e em 2005. Martins explica que elas adotaram o mesmo sistema de luta iniciado em Salvador, com “a diferença positiva de que eles barraram o aumento”.
Integrante do MPL do Distrito Federal, Caique Duques lembra que foram os militantes que participaram das revoltas de Florianópolis que convocaram para o Fórum Social Mundial, por meio do Centro de Mídia Independente (CMI) um encontro de grupos que tinham o transporte público como bandeira. Foi a partir dessa reunião que o MPL começou a se estruturar como um movimento organizado.
Para Duques, uma característica importante, presente desde o início, é que o MPL não é uma organização que visa à autoconstrução. “Os militantes que fundaram o movimento tinham uma ideologia de luta não institucionalizada, não há um interesse de fortalecer a própria entidade, e sim de conquistar a sua bandeira”, avalia.
Isso permite, explica, que o movimento tenha mais autonomia para impor sua pauta, já que ele “não tem o que ganhar” com a negociação do Estado” a não ser aquilo que defende, além de também não precisar se alinhar ao poder público para viabilizar sua existência.
A vitória da revogação
Entre o dia 13 junho, quando a Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo reprimiu, sem ser atacada ou ameaçada, 20 mil manifestantes que tentavam chegar à Avenida Paulista, até o dia 17 junho, quando mais de 100 mil pessoas tomaram as ruas da capital de São Paulo, novos e complexos elementos foram adicionados às manifestações.
O que no início era tratado pela mídia tradicional como um “movimento de vândalos”, os quais na primeira manifestação teriam ido às ruas com o único intuito de depredar parte da cidade, dias depois se transformou em uma “festa de democracia”, como classificaram alguns veículos de comunicação. O “Gigante que acordou”, “orgulho de ser brasileiro”, o “muda brasil” e outros slogans se espalharam pelas ruas, cartazes e redes sociais.
Em meio a esse novo cenário, no dia 19 de junho, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e o prefeito Fernando Haddad (PT) anunciaram a revogação do aumento, visivelmente acuados pela situação criada em torno deles.
Após a notícia da redução, o MPL-SP optou por manter o ato do dia 20 de junho, mas informou que suspenderia a convocação de atos, ao menos momentaneamente. A resposta a essa declaração despertou uma série de reações contrárias ao grupo que teria “se vendido por 20 centavos” ou estava abandonando o “povo” e deixando de “lutar contra a corrupção” e “contra os políticos”.
Se ainda não há uma resposta precisa para o que acontece ou que vai acontecer no País, a resposta para o que é o MPL, o que ele defende e como atua está na “Carta de Princípios” do movimento, escrita no ano da sua fundação e disponível nas páginas do movimento pelo país.
“O MPL não tem fim em si mesmo, deve ser um meio para a construção de uma outra sociedade. Da mesma forma, a luta pelo passe livre não tem um fim em si mesma. Ela é o instrumento inicial de debate sobre a transformação da atual concepção de transporte coletivo urbano, rechaçando a concepção mercadológica de transporte e abrindo a luta por um transporte público, gratuito e de qualidade, como direito para o conjunto da sociedade; por um transporte coletivo fora da iniciativa privada, sob controle público [dos trabalhadores e usuários]”, explica Martins.
Para ele, mais do que a vitória real de impedir o aumento de 20 centavos, os atos convocados pelo movimento e o seu consequente sucesso colocaram no horizonte político da sociedade a ideia do transporte como um direito da população, e não mais como algo que só pode ser acessado pelo pagamento da tarifa.
A “Carta de Princípios” estabelece que todos os MPLs devem existir de acordo com os seguintes elementos: autonomia, independência, horizontalidade e apartidarismo. Duques esclarece que a combinação desses princípios, ausentes na maioria das entidades, tem como justificativa não reproduzir estruturas organizativas da sociedade capitalista. “Esses quatro princípios existem para evitar problemas antigos das organizações sociais como a burocratização ou a personalização. Eles não são apenas questões de métodos, são bandeiras políticas”, esclarece.
Segundo o documento, a autonomia diz respeito a autogestão financeira. Todos os MPLs devem buscar maneiras de se financiarem sem depender de outras entidades. Por sua vez, o conceito de “independência” concede a cada grupo organizar a sua estratégia de atuação de acordo com sua realidade local, sem a necessidade de recorrer ou contar com a aprovação do movimento em outras cidades, desde que essas ações não desrespeitem a carta de princípios.
A horizontalidade é uma das formas encontradas para evitar a personalização, todos têm o “mesmo poder de decisão, o mesmo direito à voz e a liderança nata”, como diz o texto. Já o apartidarismo reforça a ideia da autonomia do MPL, que deve definir a sua atuação política de acordo com seus interesses, e não de interesses externos. Isso não significa que os integrantes do movimento façam oposição aos partidos políticos.
Desde de que foi escrita há sete anos, a alteração mais importante, de acordo com os militantes, é a troca da defesa da bandeira do passe livre estudantil para a defesa do passe livre irrestrito. “Quando faz essa escolha, o MPL deixa de de considerar um movimento estudantil, com uma pauta voltada para esse setor. O movimento se abre para o debate da discussão ampla ligada ao modo de gestão do transporte público”, avalia Duques.
Bandeiras e futuro
Após conseguir barrar o aumento em São Paulo e colocar a mobilidade urbana no centro de debate político, o próximo passo da luta do MPL deve ser pautar a implementação da tarifa zero.
“Antes, falar da tarifa zero era coisa de maluco, parecia um absurdo. Agora que conseguimos a revogação do aumento, as pessoas mudaram a forma de enxergar o transporte. Até economistas de ‘direita’ têm se manifestado sobre mecanismos que viabilizariam o sistema”, observa Matheus Preis, integrante do MPL-SP.
Mesmo já parecendo um projeto ousado, integrantes do MPL deixam claro que a tarifa zero não é, por assim dizer, a “bandeira final” do movimento. “A tarifa zero é uma bandeira emergencial, que precisa ser aplicada urgentemente para, em um período curto de tempo, se organizar uma outra lógica de transporte”, define Duques.
Na mesma linha, Martins complementa: “Está na nossa Carta de Princípios, queremos um transporte gerido pelo interesse dos trabalhadores. Não são as empresas, os políticos ou os técnicos que devem definir como deve funcionar. Quem tem autoridade para dizer como o sistema de transporte vai ser administrado é quem o utiliza todo dia”, finaliza. F
Esta matéria está na edição 124 da revista Fórum. Nas bancas ou compre aqui