Em audiência pública, entidades apresentam dados que demonstram a falência da política de internação compulsória no Rio de Janeiro
Por Leandro Uchoas, do Brasil de Fato
[caption id="attachment_24683" align="alignleft" width="300"] (Foto: Câmara dos Vereadores RJ)[/caption]Se algum desavisado, pouco versado nos debates intensos que o Rio de Janeiro vive, entrasse por engano na Câmara de Vereadores na manhã de 4 de junho, teria uma surpresa. A tal internação compulsória, elogiada por tantos “especialistas” nos veículos tradicionais de comunicação, era ali criticada ou questionada por cada entidade do setor. A audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Casa, presidida pela vereadora Teresa Bergher (PSDB), visava fazer algo que tem se tornado estranho na cidade nos últimos anos: colocar um assunto vital da administração municipal em debate.
Na mesa ou no plenário, estavam presentes as entidades e movimentos mais importantes na discussão de saúde no Rio de Janeiro. A política pública adotada para enfrentar a utilização, na cidade, de substâncias químicas, em especial o crack, foi criticada pela maioria das pessoas ouvidas. E a ausência da secretaria de saúde foi amplamente criticada.
“Ao todo, 46% das internações se dão na zona sul, 29% no centro e 15% na zona norte. Somando as três porcentagens, temos 90%. Isso confirma que temos um quadro de limpeza social, e não de tratamento de saúde”, afirma o promotor de Justiça Rogério Pacheco. No Rio de Janeiro, a zona sul, o centro e os bairros de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, na zona norte, formam a região mais rica da cidade.
Segundo Pacheco, de maio de 2010 a setembro de 2012 – pouco mais de dois anos –, houve 56,5 mil ingressos no abrigo de Paciência. Isso representa uma média de 65 internações por dia. O abrigo está superlotado, segundo detectou visita da própria Teresa Bergher na véspera. Com capacidade de 350 pessoas, estaria com 150 a mais. Abandonado, o abrigo teria sido invadido até por traficantes de drogas. A vereadora questionou a suposta ausência de servidores públicos no abrigo, sendo questionada em seguida por diversos presentes.
O vereador Renato Cinco (PSOL), integrante da Comissão, e que reivindica uma CPI da Internação Compulsória, também defendeu a tese da higienização. “Por que a rede de saúde mental é tão precária na cidade? Temos apenas seis CAPS-AD, e só três funcionam 24 horas. Mais de 40% da cidade não têm acesso. Como pode a internação acontecer sem laudo médico?”, disse Cinco. Ele lamentou a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 7663/10, de Osmar Terra (PMDB-RS), que redesenha sob viés punitivo a Política de Drogas no país.
O Ministério Público (MP) já ingressou com duas ações por improbidade administrativa relacionadas à política de internação compulsória. Em uma delas, chegou a pedir a cassação do mandato do prefeito Eduardo Paes (PMDB), e de Rodrigo Bethlem (PMDB), secretário de Governo do município, por abusos na remoção dos sem teto. Em abril, quando foi divulgada, a ação chamou a atenção dos militantes da saúde pela pouca visibilidade nos meios de comunicação, já que era o MP sugerindo a cassação do prefeito.
A defensora pública Juliana Moreira, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, apresentou dados surpreendentes. Após desenvolver um software de mapeamento da população de rua, e fazer mais de 35 visitas em unidades de tratamento, a entidade cruzou informações. Descobriu que a grande maioria dessas pessoas não é usuária de droga nem de álcool. “Enviamos uma série de questionamentos à Prefeitura. Recebemos em troca o silêncio. A falta de transparência é uma das maiores dificuldades”, lamentou.
Hilda Correia, do Fórum de População em Situação de Rua, foi ainda mais enfática. “Estamos chegando no limite. Nós todos estamos gritando que não cabe recolher pessoas a contragosto. Temos que efetivar políticas públicas que garantam serviços de qualidade. Criar um processo de restabelecimento de vínculo da população de rua com suas relações”, disse.
Um momento peculiar, durante a audiência pública, foi o discurso do vereador Carlos Bolsonaro (PP), vice-presidente da Comissão, e filho do folclórico deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ). Após chegar atrasado, afirmou que “as verdadeiras vítimas estavam sendo consideradas culpadas, e vice-versa”. O parlamentar também parabenizou a Prefeitura, por “ter política pública para quem usa drogas”, e disse acreditar que o usuário é tão culpado quanto o traficante. Foi vaiado pela plateia em coro.
O único representante do poder público presente era Rodrigo Abel, subsecretário de Desenvolvimento Social – pasta gerida por Adilson Pires (PT), também vice-prefeito. Embora tenha feito um discurso apaixonado, Abel não respondeu à maioria dos questionamentos colocados na audiência. “Abrigo deveria ser o último instrumento. Temos que ter menos e melhores abrigos”, disse, lamentando o orçamento da secretaria. “Que seu belo discurso seja colocado em prática”, respondeu Teresa.
A representante do Núcleo Estadual do Movimento de Luta Antimanicomial, Beatriz Adura, leu um contundente texto sobre as políticas em andamento no país e na cidade para o setor. Foi a mais aplaudida. Renato Cosentino, do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, apresentou fotos e artes gráficas que indicavam o rápido processo de elitização do espaço urbano no Rio de Janeiro.
Dados apresentados por Pacheco reforçam a ideia de que o problema está no projeto de cidade em implantação no Rio. Segundo ele, o orçamento da Guarda Municipal é superior ao das secretarias de Habitação, Fazenda, Trabalho e Esporte e Lazer, e apenas 10% inferior à de Desenvolvimento Social. “Esse dado é chocante”, concluiu. Chocado de verdade ficaria o eventual cidadão que entrasse, por acaso, na audiência pública. Perceberia a nada sutil dissonância entre o discurso dos veículos de mídia de massa e as opiniões ali apresentadas pelas entidades especializadas.