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Sucesso do filme O som ao redor lança luz sobre uma nova geração de cineastas pernambucanos
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Por Júlio Delmanto
[caption id="attachment_23566" align="alignright" width="288"] Cena do filme O som ao redor[/caption]
“Em seu primeiro longa, Mendonça, um ex-crítico de cinema, narra os ritmos da vida diária em um complexo de apartamentos afluente da cidade costeira brasileira de Recife. O que emerge é um retrato sutil de uma sociedade em vias de uma rápida transformação social, ainda assombrada pelas crueldades de seu passado feudal.” Essa seria apenas mais uma das inúmeras críticas bastante animadas com o filme O som ao redor, dirigido por Kleber Mendonça Filho, se não fosse por seu simbolismo. Afinal, vinha acompanhada de uma indicação entre os dez melhores filmes de 2012 feita pelo respeitado crítico estadunidense A.O. Scott nas páginas do The New York Times. Ao lado dos novos trabalhos de Quentin Tarantino, Michael Heneke e Steven Spielberg nessa lista, o filme era o único latino-americano citado.
Filmado em 2010, O som ao redor estreou no circuito comercial em 4 de janeiro de 2013, trazendo consigo uma enorme aceitação em festivais nacionais e internacionais. Desde sua primeira exibição, no Festival de Cinema de Roterdã, no qual já recebeu prêmio da crítica, obteve 14 prêmios, entre eles os principais da Mostra de Cinema de São Paulo e do Festival do Rio. No caminho inverso do habitual, estreou em 13 salas e viu esse número aumentar para até 18, cruzando a marca de 70 mil espectadores, fato notável para uma produção de R$ 1,8 milhão de orçamento e anos-luz distante da estrutura de um blockbuster sobre vampiros como Amanhecer– parte 2, lançado em 1.228 cinemas pelo Brasil.
“O som ao redor é um dos melhores filmes brasileiros de sempre. É um dos melhores filmes feitos recentemente no mundo”, exaltou Caetano Veloso em sua coluna no jornal O Globo. “Com o novo cinema pernambucano, a luta de classes volta ao cinema brasileiro”, sentenciou o crítico e professor Jean-Claude Bernardet na revista Teorema, numa análise que transparece um dos efeitos do sucesso da obra de Kleber Mendonça Filho: lançar luz sobre o restante da produção cinematográfica de diretores pernambucanos que têm em comum não só o fato de serem praticamente novatos, mas também a disposição de utilizar as telas para refletir seriamente sobre o Brasil contemporâneo.
Formado em jornalismo e por muitos anos crítico de cinema em jornais e na internet, tendo inclusive realizado o documentário Crítico, discutindo exatamente este ofício, Kleber Mendonça tem 44 anos e produziu seu primeiro curta em 1997, chegando só 15 anos depois ao lançamento de seu primeiro longa ficcional. Cinéfilo declarado, o cineasta vê agora seu filme revelar para um maior público colegas pernambucanos seus, que já causam burburinho em festivais especializados há alguns anos, como Gabriel Mascaro, de 29 anos, e Marcelo Pedroso, de 33.
[caption id="attachment_23555" align="alignleft" width="358"] Cena do filme Doméstica, de Gabriel Mascaro (Divulgação)[/caption]
Para o crítico e estudioso do cinema pernambucano Heitor Augusto, filmes de grande potencial como Doméstica, de Mascaro, e Pacific, de Pedroso, deixam de chegar ao público que não é do “gueto” dos especialistas em cinema não por sua qualidade, “mas pelo sistema de distribuição esquizofrênico existente” hoje no País. Apesar de não haver um “movimento” propriamente dito, essa geração tem questões bastante próximas: “São filmes bem preocupados com o que é o cinema, não são filmes que se importam apenas com a mensagem, eles têm no horizonte uma vontade de ser algo a mais. Quase como o encontro de duas ideias marcantes no cinema brasileiro: enfrentar a realidade, como propunha o Cinema Novo, junto com a proposta de reconstruir o cinema, propor outras linguagens, uma certa ironia, como propunha o Cinema Marginal. Não que esses filmes fiquem citando Gláuber e Sganzerla, mas eu vejo nesse grupo de filmes uma vontade que me parece vir tanto daqui quanto dali”, analisa Heitor, ressaltando sua relutância em soar “herético”.
Documentos de uma época em que ainda era possível fazer alguma coisa
“Para mim, a questão não é a presença ou a ausência de política na obra de arte. O que me interessa muito é a potência política que emana a partir dela como experiência e processo”, afirmou Gabriel Mascaro em entrevista concedida à Fórum, de Paris, onde participa há alguns meses de uma residência artística em uma universidade francesa. Em seu mais recente filme, o documentário Doméstica, Mascaro entregou câmeras de vídeo para sete adolescentes, que filmaram o cotidiano de suas empregadas domésticas por uma semana antes de entregar o material bruto para o diretor, que a partir daí brinda o espectador com um poderoso e bem engendrado retrato das relações de poder, cordialidade e desigualdade vividas no cotidiano de famílias de classe média.
Segundo Mascaro, o que mais lhe interessou no filme “foi a capacidade de fabular sobre a negociação da imagem empreendida entre os jovens e as empregadas, cada um a seu modo”. “Se os jovens aproveitaram uma relação de poder dada para adentrar na intimidade da empregada, ou se as empregadas usaram esse artifício audiovisual na relação para se autoficcionalizar, o que me deixa feliz é a potência dessa imprecisão política e ética que emana no filme do início ao fim”, apontou.
Classe média que também é o alvo de Pacific, de Marcelo Pedroso, documentário que se utiliza apenas de registros feitos por passageiros de um cruzeiro – gravações realizadas antes que eles recebessem a proposta de cedê-la ao filme – para refletir sobre “um certo tipo de felicidade”, como resumiu Heitor Augusto. Entre aulas de ginástica nas piscinas e coquetéis de gala com o comandante do navio, cada imagem diz mais do que mil palavras não só sobre os desejos e ambições desses personagens que sonharam com o momento de passar o ano-novo em um navio, como também sobre a sociedade do espetáculo, sobre a consolidação da tecnologia e da imagem como mediadoras das relações sociais mais diversas, cotidianas e íntimas.
“Havia primeiramente uma inquietação sobre a classe média brasileira, uma vontade de problematizá-la – reconhecendo-me eu mesmo nela”, relatou Pedroso à Fórum. “Mas as questões em torno da imagem, da subjetividade presente nelas, da relação com o consumo e do próprio padrão de felicidade buscado pelas pessoas se tornaram muito importantes – em igual proporção ao reconhecimento do afeto, de uma dimensão singela das relações interpessoais, da própria fragilidade humana presente no desejo bulímico de tudo registrar”, continuou.
Além de retratar as classes médias e superiores e sua mediocridade intelectual e ética, como explicita também o polêmico Um lugar ao sol, no qual Mascaro entrevistou moradores de cobertura nem sempre sendo sincero com eles, O som ao redor condensa outros elementos em comum com essa geração de realizadores, como a reflexão sobre a cultura do medo e o consumismo, o olhar sobre a desigualdade social com base no contexto urbanístico, a crítica à especulação imobiliária e ao racismo, a busca pela experimentação e o requinte formal.
“Os filmes serão documentos para o futuro, talvez de uma época quando, em visão retrospectiva, ainda teria sido possível fazer alguma coisa”, apontou Mendonça em artigo publicado na revista online Continente, prosseguindo: “De fato, o problema é menos a cidade e bem mais o que estão fazendo com ela.” “A demolição e a alteração do espaço urbano subtraem obrigatoriamente o que existia antes. A cada novo projeto anunciado e aprovado pelos que deveriam proteger o Recife, vemos sumirem cada vez mais as possibilidades de um espaço público mais sensível, mais inteligente, mais humano”, complementa o diretor.
“Os filmes se voltam para o que seria uma violência seminal: uma investigação em torno do cisma social brasileiro, sua origem e permanência”, resumiu Marcelo Pedroso, ressaltando também um outro aspecto importante do caráter crítico dessas diversas produções: a busca por um tom distante do panfletário e doutrinário que permeou boa parte da cinematografia “engajada” brasileira. “O que faz sentido nos filmes, o que os justifica é a capacidade que eles podem ter de articular um pensamento crítico do mundo. Essa é a política que lhes cabe”, apontou.
Heitor Augusto qualifica O som ao redor como “espetacular”, vendo nele a importância para o cinema brasileiro contemporâneo que tiveram Terra estrangeira, de Daniela Thomas e Walter Salles, para a produção da década de 1990, e Cidade de Deus, para os anos 2000. Ressalta, ainda, a compreensão da diferença de tom em relação à abordagem política como fundamental não só para o entendimento do filme de Mendonça Filho, como para o de uma parte relevante da produção pernambucana recente.
“A gente sempre teve um cinema bem didático, bem marcado, dos anos 1980 pra cá, os filmes do Sérgio Bianchi, da Lucia Murat, nos quais você percebe uma dramaturgia inteiramente engessada, colocando sempre a mensagem e sempre a nobreza do tema do filme acima de qualquer coisa”, analisa o crítico, colaborador de publicações como Interlúdio, Rolling Stone e Valor Econômico, que diz não ver essa postura nos trabalhos dessa nova geração pernambucana, que seria responsável inclusive por aprofundar as proposições dos cineastas pernambucanos da geração anterior, composta por nomes como Claudio Assis, Adelina Pontual, Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Marcelo Gomes e Hilton Lacerda cuja expressão primeira foi o filme Baile perfumado, lançado em 1997.
Para Augusto, essa geração anterior teria perdido “o protagonismo e a capacidade de estar na frente para falar sobre o que estamos vivendo e também a capacidade de fazer filme bom”. “O som ao redor dá muito mais conta de pensar sobre como fazer uma inserção política na pós-modernidade do que, por exemplo, A febre do rato, do Cláudio Assis, que a meu ver não ajuda a pensar o presente”, avalia.
Por que Recife?
Gabriel Mascaro define como “orgânica” a conexão entre seus trabalhos e os produzidos por seus colegas pernambucanos contemporâneos, mas ressalta: “A parceria e a admiração é real e sincera. Mas não saberia dizer ao certo se estamos em curso num ‘movimento’. A aproximação temática ou estética é mais acidental que planejada.” Questionado sobre o porquê de esse grupo surgir exatamente em Recife, Marcelo Pedroso supõe que “deve haver uma série de fatores que ajudaram a criar uma base consistente de produção. Vejo sempre com muito carinho a importância que tiveram, e ainda têm, as atividades do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco”, que tem curadoria de Luiz Joaquim em parceria exatamente com Kleber Mendonça Filho. “Nos últimos dez anos, foi um dos mais importantes espaços de formação em cinema da maioria do pessoal que está fazendo filmes hoje. Era lá que víamos os filmes, que os debatíamos, que nos encontrávamos. Lá e nos cineclubes das faculdades. Hoje é diferente, todo mundo consegue ver os filmes que quiser simplesmente baixando-os pela internet. Mas o cinema da Fundaj ajudou a despertar em muitas pessoas o interesse por audiovisual.”
Para o crítico Heitor Augusto, não é fácil encontrar uma resposta que indique o porquê do surgimento dessa cena em Recife. Ele ressalta o surgimento e a difusão do movimento manguebeat, liderado por Chico Science, como importante nesse processo, por haver ali uma “retomada de um protagonismo, mas um protagonismo de jovem, o que ajuda a constituir uma cena”. Ele lembra também de outro aspecto, a forte especulação imobiliária em curso no Recife, que tem mudado a cara da cidade. “Em muitos desses filmes fazer cinema político e pensar a realidade estão completamente ligados a um modelo de cidade. Talvez eles estejam mais dispostos a tocar nesses temas porque essa cidade está mudando com mais força na cara deles agora.”
Mascaro destaca um outro fator: o apoio estatal. “Acho que em Pernambuco existe uma importante cena que possibilitou não só a realização dos meus projetos com fundos estaduais, mas também a continuidade dessa pesquisa. Isso envolve a organização dos realizadores e artistas e também o fortalecimento das políticas públicas locais.” Do orçamento total de O som ao redor, R$ 550 mil foram provenientes do fundo para o audiovisual do governo do estado de Pernambuco, por exemplo. Augusto concorda com a importância desse fator, lembrando que “talvez do Nordeste inteiro, Pernambuco seja o único estado que tem uma política de incentivo no nível de São Paulo e do Rio de Janeiro”. “Então, além de inquietação estética, de cineastas talentosos, existe ali uma questão de política cultural, uma produção regular e constante”, salienta, antes de concluir: “Mas acho que ninguém tem essa resposta, até mesmo os realizadores de lá não têm; em debates, eles chegam a brincar dizendo que ‘deve ser algo que tem lá na nossa água’.”
Tanto Augusto quanto Pedroso fizeram questão de destacar, em suas entrevistas, que mesmo que esteja em evidência e apresente bons nomes e novos valores, o cinema pernambucano não detém a exclusividade do cinema de qualidade no Brasil atualmente. Citaram como exemplos interessantes a recente produção cearense ou o filme vencedor do último Festival de Tiradentes, A cidade é uma só, que fala sobre a formação de Ceilândia, na periferia de Brasília.
Pedroso, no entanto, acha que a repercussão de O som ao redor não é suficiente para resolver os problemas do cinema brasileiro: “É uma grande surpresa. Do jeito que o mercado está, o filme ter chegado a essa quantidade de público é algo realmente animador. Mas, de modo geral, acho que estamos no caminho errado”, afirmou, vendo no atual cenário um “problema estrutural mesmo, não é só do mercado ou de divulgação”. Para o diretor, a sociedade brasileira como um todo precisaria se repensar em termos de cultura (arte em geral, cinema etc.) e criar mecanismos que viabilizem um outro tipo de consumo”. F