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Biografia escrita por Manning Marable magnetiza não só por preencher lacunas da trajetória de um dos líderes mais importantes da História, mas também por mostrar as nuances e estruturas de uma nação racista
Por Allan da Rosa
Esta matéria faz parte da edição 127 da revista Fórum.
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“Mano, o que gosto nas biografias são mais o cheiro de peido embaixo das cobertas do que os perfumes das fotografias oficiais!” - Felipe Choco, Sarau do Fórum do Hip-Hop - ABC, São Paulo
A irradiante biografia do grande líder negro Malcolm X, que sai agora no Brasil, mescla o fervo da paixão e as minúcias do raciocínio. O autor, Manning Marable, baila justamente nas lacunas da clássica autobiografia de X, assinada também por Alex Haley, que depois ficaria famoso por sua obra Negras Raízes. Os buracos no clássico livro de Haley foram a motivação para décadas de pesquisas do historiador Marable e seus estudantes, nos vários centros de estudos da diáspora africana que criou ou coordenou. Sua versão biográfica, Malcolm X – Uma vida de reinvenções, mantém o brilho da figura que canalizou o autoreconhecimento e a raiva de milhares de mentes jovens nos EUA, no Brasil e no mundo, rapaziada que viveu o livro de Haley com as veias, arquitetando o futuro, muitos deles banhados também na cultura política hip hop nos últimos 30 ou 40 anos.
O livro magnetiza pelas nuances e estruturas de uma nação racista, pela vida fulgurante de Malcolm e também por encontrarmos uma atmosfera de cumplicidade de luta na escrita, que ao mesmo tempo não o exime de suas posturas infelizes e erros crassos. Ou seja, é reflexão com afeto e senso crítico num livro que tem cara de romance, daqueles que até sabemos o final, mas mergulhamos em sua força e mistério. A profundidade da pesquisa nos detalhes genealógicos e biográficos de Malcolm cruza-se aos contextos de humilhação, de combate e de dignidade conquistada pelos negros dos EUA, enquanto esse país regia conflitos externos e definia destinos no que qualificou como seus quintais pelo mundo.
Com maestria, Marable entrelaça também considerações específicas sobre preceitos muçulmanos, heresias da Nação do Islã e poder religioso. Esmiúça o aparato da mídia oficial e a constituição de práticas policiais e investigativas dos EUA, apresentando também os percalços das independências nacionais e espinhosas questões pós-coloniais no então chamado terceiro mundo, com quem Malcolm X buscou se alinhar nos seus últimos meses de vida após abandonar a nação do islã, num equilibrismo de gênio político, anunciando que a questão negra nos EUA já havia muito superava a alcunha de luta por direitos civis, sendo uma batalha por básicos direitos humanos em tempo de extermínio. Vemos como, reverenciado em vários países africanos, recebido como chefe de Estado em algumas capitais e equilibrando-se entre muitas rivalidades árabes e muçulmanas, Malcolm estabeleceu uma postura que em nada rima com a imagem de demagogo destemperado que vigorou até os anos 1990, orquestrada pela CIA e FBI (que ainda não abrem seus arquivos sobre ele) e também pela mídia oficial, imagem regenerada e consertada com o rapto de sua figura pelo hip-hop, quando ele renasce como líder negro que também atende apelos multiculturais.
[caption id="attachment_36434" align="alignleft" width="401"] Malcolm X em uma conferência nos Estados Unidos, em 1964: uma das muitas das quais ele participou em suas vertiginosas viagens para debater com negros sedentos por guias e com brancos desconfiados da perda de seus privilégios e do que chamavam de ódio racial que vinha com as variadas plataformas negras (Herman Hiller / World Telegram)[/caption]
Dentre a enorme coerência de seu projeto e trajetória, foram muitas as contradições de Malcolm. As encruzilhadas fulminantes do seu caminho compassado às farpas do povo preto se deram em diferentes contextos de segregação violenta, seja no sul das forcas e linchamentos, no Harlem miserável, organizado e festivo ou em outras capitais, industriais como Detroit ou mais tranquilas como Boston, unificadas num racismo virulento que carimbou marcas na mente e nos corpos de milhões de pessoas. Demonstrando o quanto o conhecimento adquirido nas esquinas, bares e cortiços urbanos o levava a ser reconhecido pela massa pobre e à desconfiança dos moderados, destacando o medo que vogava nos campos do Sul, apresentando os desejos das famílias negras consideradas de classe média e suas pouco melhores condições de estudo, Manning explora melhor a compreensão das diferenças polarizadas entre Martin Luther King e Malcolm X, inclusive trazendo às páginas o único encontro por acaso entre as duas figuras, apesar de um frequentar o discurso e as entrevistas do outro, nem sempre marcados pela cortesia.
No decorrer do livro de Marable, que não conseguimos largar, sentimos cada pontada dos dilemas de Malcolm, o ministro mais famoso e grande orador da Nação do Islã, em meio a urgência dos debates da questão racial nos EUA, passeatas e ações comunitárias trazidas pelos febris movimentos por direitos civis que cobravam definições e ações que o seu então líder religioso Elijah Muhammad não tomaria, interessado em dólares, poder imobiliário, comercial e em arrebanhar fiéis. Manning Marable, em ritmo de romance, traz as muitas desavenças internas e a fidelidade interessada da alta cúpula da seita que escondia os muitos casos de abuso sexual e filhos ilegítimos de Elijah enquanto apostava em uma suposta imparcialidade política que também evitaria problemas com a Justiça federal e manteria mornos os escândalos morais que depois teriam seus segredos arriados. As páginas centrais do livro mostram como essas divergências teológicas e programáticas da seita com as diretrizes do Islã ortodoxo pesaram, dilacerando e ao mesmo tempo fortalecendo Malcolm, até que se tornou impossível para ele continuar na casa obedecendo à ordem de manter a “separação entre espiritualidade e política”, já visado e combatido por outros “irmãos”, e ser jurado de morte.
Essas passagens delicadas, que aconteciam no mesmo momento em que ele se encontrava com Alex Haley para tecer a autobiografia, assim como o que vem depois de sua saída da Nação, inclusive com o fracasso de manter novas organizações funcionando, não poderia surgir no livro assinado pelos dois. Mas Manning Marable, auxiliado por cartas, trechos de programas de rádio, arquivos pessoais de fiéis e depoimentos colhidos décadas após a turbulência dos anos 1960, mostra como foram muitas as berlindas que acuaram Malcolm em sua trajetória crescente dentro da Nação do Islã. Encontros dos líderes da seita inclusive com a linha de frente da Ku Klux Klan, na intenção de frisar o separatismo total, foram duros de aceitar, porém, ainda pesou mais a contínua posição fincada pela seita de manter sua versão singular de surgimento do mundo, de seus profetas iluminados, e não tomar partido ou sequer se pronunciar nas marchas e movimentos políticos perante assassinatos coletivos e debates sobre integração racial de forma contundente, como o espírito de Malcolm exigia.
Insustentável para ele, que atravessava o país em vertiginosas viagens para debater com negros sedentos por guias e com brancos desconfiados da perda de seus privilégios e do que chamavam de ódio racial que vinha com as variadas plataformas negras. Desde a propalada “legítima defesa”, sempre presente nos microfones de Malcolm X, até a incipiência das ideias de ação afirmativa e de exigência por empregos, além do direito de votar, tudo latejava no medo branco e escorria em forma de apoios quase sempre tímidos ou de repressão policial ou mesmo paramilitar.
As fases e os diferentes nomes
[caption id="attachment_36435" align="alignleft" width="238"] (Ed Ford / World Telegram)[/caption]
Marable destaca entre a grandeza excepcional de Malcolm os escorregões e saltos entre uma fase e outra de sua vida, às vezes marcados por nítidas mudanças de hábitos e de posicionamento, mas em outras passagens equilibrados entre a ambiguidade e a dificuldade de manter a coerência consigo mesmo e o rumo da luta negra. A escrita fluente e arrebatadora do biógrafo, envolvendo tantas idades e os seus muitos nomes (Malcolm Little, Detroit Red, Satan, Malcolm X e El-Hajj Malik El-Shabazz ), junto às imagens e feitos públicos enfatizados por Malcolm com cada uma dessa alcunhas, demarcam bem os limites e as quebras das fronteiras dos territórios físicos e mentais do seu passo e também dos EUA e do mundo. A biografia destoa do sensacionalismo e do celebritismo oco, apresentando um Malcolm X que as fotos felizes e as narrativas recorrentes não abordam ou preferem não comentar. Apenas chega a ser cansativo o imenso leque de dados exposto ao final da obra sobre as muitas possibilidades do assassinato de Malcolm. Nesse trecho, o livro parece se voltar aos historiadores, apresentando inúmeros motivos, possibilidades e pessoas envolvidas com a Nação do Islã e, diretamente ou não, com a morte de Malcolm.
O livro reacende polêmicas sobre a homossexualidade do jovem Malcolm, quando ele ainda era o autobatizado Detroit Red. As artimanhas do rapaz em Detroit, para ganhar dinheiro agradando idosos ricos, bate de frente com o silêncio que até então conduziu a questão. Além disso, uma misoginia realçada pelo ascetismo, que propagava num comportamento exemplar como ministro da Nação do Islã, é letra forte no livro e emerge tanto nos encaminhamentos dentro das mesquitas da Nação do Islã como na intimidade de seu casamento. Contrário ao personagem desenhado por Spike Lee e colorido por Denzel Washington no cinema, o Malcolm descrito por Marable se casou praticamente por evidentes necessidades políticas. Nada haveria de harmonia no casamento com Betty Shabazz desde as primeiras noites. O abandono de Betty, enquanto Malcolm traçava seus itinerários constantes e suas viagens diárias por anos atravessando os EUA e o mundo, é realçado na fadiga que derruba os dois em vários momentos. Daí as muitas chacotas orquestradas internamente por seus rivais sobre sua impotência sexual e a incapacidade de controlar um casamento, galhofas crescentes dentro de um universo drasticamente machista como a Nação do Islã, que buscava extrair das fofocas toda sua força moral com intenção de controlar o crescimento de Malcolm perante o país e solapar sua liderança dentro da seita, já que ele se tornava nitidamente o “segundo” da casa, nome mais forte a herdar o poderio de Elijah Muhammed.
São de espetar as passagens referentes ao nascimento de cada filha e a fuga de Malcolm após cada parto, ainda mais quando hoje se vê circular como imagem de bandeira as fotos dele sorridente com suas crianças. Se essas questões já foram bastante propagadas até em algumas entrevistas de suas filhas, o livro de Marable, ainda destoando da autobiografia famosa, mostra também como as pelejas com racistas brancos, adversários dos movimentos negros e desafetos da Nação do Islã aconteciam enquanto endurecia a sempre delicada condição das finanças do casal. São trechos comoventes os da luta por moradia que acomete a família, após o desligamento de Malcolm da Nação do Islã e o processo de expulsão da residência que ocupavam, propriedade da seita.
O famoso incêndio da sua casa em Nova Iorque, em meio a um processo jurídico sobre os direitos de sua ocupação após anos de devotos ofícios de Malcolm que não abriam espaço para nenhum outro tipo de trabalho e renda, reflete o episódio de sua infância em Michigan que tanto marcaria a sua vida e a degeneração mental de sua mãe, quando brancos queimaram sua casa antecipando o desmoronamento de sua família, marcado ainda pelo provável assassinato do pai, caso não investigado por uma polícia nem um pouco interessada em desvendar o caso da morte suspeita de um negro desobediente e seguidor do pan-africanismo de Marcus Garvey, que ainda era forte referência e rastilho aceso em muitos bairros e associações de cidades distintas. O incêndio, a morte do pai, a debilidade psíquica da mãe, que passaria muitos invernos em sanatórios quase sem ver Malcolm e todas as duras condições de sobrevivência dos irmãos Little, mais as passagens de deslumbramento em Boston abrigado pela meio-irmã Ella, que o influenciaria durante toda sua vida, seja arrumando confusões ou mesmo bancando a última viagem ao continente africano, é detalhada por Manning Marable também com muito mais clareza que no livro assinado com Alex Haley. Aliás, outro mérito saboroso da obra é mostrar a intensa dificuldade de Haley, um integracionista convicto que tentava equacionar as opiniões radicais de Malcolm com as exigências e prazos editoriais. Muitas versões trazidas pelo biografado para sua vivência na cadeia e nos guetos nova-iorquinos não resistem à árdua pesquisa conduzida por Marable e hoje parecem se entrosar perfeitamente à necessidade de Malcolm ocultar certos vexames e passagens nada grandiosas, forjando (ou aumentando) uma imagem de si como grande campeão diante das muitas adversidades, o que não é de todo inverdade.
Mesmo após a volta das peregrinações no Oriente Médio e na África, que causaram tanta transformação em sua noção espiritual e política do mundo, quando mergulhou em prática e estudo de sua fé convivendo com diversos teólogos e com o povo muçulmano, ao rever a fala de que os brancos seriam demônios, Malcolm mantinha e propagava também a convicção que não seriam eles que poderiam conduzir o processo antirracista nos EUA nem em nenhuma outra parte do planeta. Com profunda desconfiança da autopercepção e da pretensão dirigista dos brancos, ao fim de sua vida o Malcolm que declarou ser possível a quebra das hierarquias raciais e o convívio pacífico interrracial não aceitava que o racismo fosse aniquilado a não ser pela primazia negra.
O livro detalha contextos dos discursos célebres de Malcolm X, os “A bala ou o voto” e “Mensagem às bases”. E hoje, 50 anos após o notório discurso “Eu tenho um sonho”, de Martin Luther King, que bradava para 250 mil pessoas na Marcha para Washington a bandeira da integração do povo negro em plena luta por direitos civis, se a questão eleitoral já se parece resolvida, ainda é berrante a disparidade ainda vigente entre a baixa renda dos negros e os ganhos da população branca nos EUA, o que, com o encarceramento em massa e a obstrução de direitos civis básicos aos pretos, apresenta a triste condição humana dos negros dos EUA de Barack Obama. Se Martin Luther King pronunciava a insignificância da raça, Malcolm centrava sua voz no diferencial de ser negro, inclusive frisando o papel de estopim eleitoral que seu povo teria diante das divisões dos votos dos brancos entre republicanos e democratas. Provocava outras bases para a distribuição da moeda e do poder nos EUA. Enfatizava suas críticas e mesmo um desprezo à classe média negra, à qual acusava de não se irmanar com os negros pobres contra o colapso das famílias afro-americanas nos guetos.
Em tempos em que se advoga a tese de uma época “pós-racial” nos EUA, principalmente balizada pelas eleições de Barack Obama, as novas faces e sequelas do escravismo estão aí vívidas na maciça abordagem policial, no acesso precário à educação e à saúde, quando desigualdades seguem intocadas e privilégios ainda são constrangedores em diversas esferas sociais com números trágicos banhados a lagrimas e sangue. Hoje, os EUA veem a sua mortalidade infantil diminuir mas se manter gritante entre as crianças negras. Os estereótipos continuam cavalares nas vitrines, nas listas de procurados e nas telas, marcados pelo hedonismo do sexo e da violência que impera nas imagens massificadas, como ressalta o grande sociólogo Cornell West. Respeitados os contextos e a demografia gelada, sabe-se que os EUA têm hoje mais negros presos do que negros escravos no século XIX. E 80% dos réus não conseguem pagar por sua defesa nos tribunais.
Malcolm sempre se apresentava efusivo, satírico, elegante. Sua potência como orador foi esplendorosa, mesmo num país de memória marcada por grandes advogados e pregadores, locutores e líderes populistas. Ele eletrizava comícios, estralava programas de rádio e abalava plateias, mesmo as discordantes. Discursos preparados com antecedência ou improvisados, com uma gama enorme de temas abordados, somavam-se à sua presença sedutora, carismática e misteriosa. Porém, Manning Marable nos enreda mostrando como o perfil e o histórico de Malcolm encaixava-se também em outro dos tipos lendários, quase estereótipos, da cultura negra popular dos EUA: além de orador, ele traçou para si (e carregou nas tintas, quando conveniente) um passado como cafetão. Assim, lidando com uma autoconstrução e uma exposição de si mesmo como exemplo pelo histórico e pela postura inabalável, quase santificada em vida, suas ações remexiam as feridas mais purulentas do país e conseguiam abalar a estima negra, trazendo motivos para celebrarem a si mesmos e pensarem em autonomia. O livro comove e instiga por mostrar a luta de Malcolm tentando conciliar a sua luta específica e absolutamente sincera pelo povo negro com um humanismo radical. Se ele, desde o princípio, se afirmava primeiro como negro, um africano nascido nos EUA, e apenas depois como um “americano”, essa identidade apresenta suas divergências, buscas e reinvenções. O Malcolm ascético, disciplinado, rígido e até cruel na manutenção do grupo que liderava, que angariava seguidores fiéis e também rancores e desafetos assumidos, foi também capaz de gestos de extrema generosidade com divergentes mais fracos, além da condução de milhões de negros a uma nova visão de si mesmos e da amplitude de seus destinos, influenciando em todos os movimentos negros que se seguiram em qualquer canto do mundo, como embrião dos Panteras Negras ou como referência primeira aos movimentos sociais em qualquer barraco latino-americano. F