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Relançado depois de 40 anos, Expresso 2222, primeiro álbum do artista após a volta do exílio britânico, revela uma tentativa de harmonização entre opostos, que inspirou parte substancial dos mais consistentes artistas brasileiros
Por Pedro Alexandre Sanches
A matéria abaixo faz parte da edição 118 de Fórum, compre aqui.
Estamos em território da mais pura tradição sertaneja nordestina. Estamos em Pernambuco, na companhia da Banda de Pífanos de Caruaru, ou então num disco ou concerto do Quinteto Armorial, ou de algum projeto de salvação das tradições nordestinas à maneira de Ariano Suassuna.
Não, não estamos. Estamos num disco de Gilberto Gil, Expresso 2222, lançado pela primeira vez em 1972, na volta do artista baiano do exílio britânico, e reeditado agora, nos 70 anos do artista, em versão remasterizada em Abbey Road, com o projeto gráfico original circular, concretista, preservado na miniatura em CD.
[caption id="attachment_34429" align="alignleft" width="182"] (cpfl cultura / Flickr)[/caption]
É a Banda de Pífanos de Caruaru que executa a faixa instrumental de abertura, toda ela bordada em sopros nordestinos e tradição. A impressão de pureza é falsa: a faixa leva o título tropicalista de “Pipoca moderna” e é assinada por Caetano Veloso, em dupla com Sebastião Biano, um dos membros da banda-família de Caruaru. Três anos mais tarde, seria regravada por Caetano, em versão dotada de letra ultraconcretista, “porém parece que há golpes de pê, de pé, de pão, de parecer poder”.
A tradição é quebrada na segunda faixa, um rock sambeado denominado “Back in Bahia”, na ponte aérea Londres-Salvador, ao final de um período de quase três anos “que afinal passou depressa como tudo tem de passar”. A banda é bem rock, é meio Gal Costa em fase Fatal (1971), é toda tropicalista: Lanny Gordin (guitarra), Bruce (baixo), Tuti Moreno (bateria), mais Perna Fróes (piano).
Em voz gritada, Gil se manifesta de volta à Bahia: “Lá em Londres vez em quando me sentia longe daqui/ vez em quando, quando me sentia longe, dava por mim/ puxando o cabelo/ nervoso, querendo ouvir Celly Campello pra não cair/ naquela fossa/ em que vi um camarada meu de Portobello cair.” O camarada londrino de Portobello deve ser o baiano Caetano, cuja depressão no exílio, célebre, tem sido contada e cantada em verso e prosa. A saudade de Gil é tropicalista, nostalgia do “som universal” que a tropicália quisera ser: não se remete ao samba anos 1930 de Noel Rosa ou Aracy de Almeida, mas ao rock’n’roll colonizado da bonequinha Celly, que cantava “Estúpido cupido” e “Banho de lua” 12, 14 anos antes de “Back in Bahia”.
Isso nunca foi falado publicamente por nenhum general, marechal, coronel ou empresário das comunicações, mas o orgulho negro latejante de Gil em 1968 fora uma das razões de sua expulsão do país da “democracia” racial. O Brasil não suportou vê-lo de bata africana e postura de Jimi Hendrix nos festivais da canção do pré-AI-5. “Puxando o cabelo” – os laços de fita, as trancinhas, os rolinhos do reggae que mal acabava de nascer para o mundo –, esse era o máximo de citação racial que Gil podia ou queria fazer no retorno ainda desconfiado e temeroso. De volta ao Brasil, o artista comentava a saudade do país quando no exílio, “como se ter ido fosse necessário para voltar/ tanto mais vivo/ de vida mais vivida, dividida, pra lá e pra cá”.
Na faixa 3, o pêndulo de vida dividida volta para a tradição: “O canto da ema”, de Ayres Viana, Alventino Cavalcanti (pernambucano) e João do Vale (maranhense), fora sucesso na voz do gênio paraibano Jackson do Pandeiro por volta de 1956, não muito tempo antes de Celly Campello e João Gilberto convulsionarem os rumos da canção popular brasileira.
“A ema gemeu no tronco do jurema/ foi um sinal bem triste, morena, fiquei a imaginar/ será que é o nosso amor, morena, que vai se acabar?/ Você bem sabe que a ema quando canta traz no meio do seu canto um bocado de azar”, profere o mote sertanejo convertido a roupagens de guitarra, baixo, piano e bateria. Mais que samba ou rock, “O canto da ema” se estende por seis minutos e meio, toda enfeitada de trechos instrumentais jazzísticos, forrozeiros. Desde antes de 1º de abril de 1964, a ema não parava de gemer no tronco do jurema brasileiro. Gilberto estava com medo do canto da ema – da tradição?, da repressão? –, mas cá estava ele, frente a frente com a ema.
“Chiclete com banana”, a seguir, complica a equação tradição-novidade. A canção do baiano Gordurinha com a pernambucana Almira Castilho fora celebrizada por Jackson do Pandeiro em 1959, já depois do advento da bossa nova (1958). Injetava bebop no samba paraibano, mas exigia em troca ao “Tio Sam” que se munisse de tamborim, pandeiro e zabumba. Nem os tempos de Jackson, nem os áureos de Gil veriam tal façanha: só neste século XXI, via revalorização de Luiz Gonzaga, tem gringo pegando na sanfona brasileira para testar experimentos retropicalistas.
O lado A do velho vinil terminava com “Ele e eu”, balada climática-concretista de reflexão sobre as relações Caetano-Gil: “Ele vive calmo e na hora do Porto da Barra fica elétrico/ eu vivo elétrico e na hora do Porto da Barra fico calmo/ [...] e na hora do Porto da Barra fico aflito.” Portobello, Porto da Barra, aflição, calmaria – Gil parecia dizer que sabia que a barra estava por continuar; em 1976, não muito tempo depois daqui, estaria preso e condenado por porte e uso de maconha.
O lado B
Adiando as aflições, o lado B começava em festa “forrock”, com “Sai do sereno”, do pernambucano Onildo Almeida, gravada em 1965 pelo sanfoneiro paraibano Abdias dos Oito Baixos e cantada, nessa nova versão, a duas vozes com a conterrânea baiana Gal Costa. “Sai, sai do sereno, menino/ sereno pode fazer mal/ vem logo pra dentro, menino, que esse forró tá gostoso pra danar”, limitam-se a solicitar versos mais que diretos. A ema não parava de gemer, convinha o menino não sair no sereno.
Da tradição regional de “Sai do sereno”, Expresso 2222 pula diretamente para o cosmopolitismo da faixa-título, uma viagem-fuga de trem, espaçonave, drogas, neurônios: “Dizem que tem muita gente de agora/ se adiantando, partindo pra lá/ pra 2001 e 2 e tempo afora/ até onde a estrada do tempo vai dar.” Parece um papo de morte, mas essa não viria assim tão cedo, embora um signo mortal esteja impresso para sempre em Expresso 2222: Pedro Gil, filho do artista retratado ainda bebê na capa do álbum, morreria em 1990, aos 19 anos, num acidente de carro.
Se “O canto da ema” e “Chiclete com banana” contrastam no lado A, “Expresso 2222” e “O sonho acabou” fazem algo parecido no B. Ao sonho-alucinação-viagem da primeira, segue-se o comentário ao “the dream is over” de John Lennon na segunda: “O sonho acabou/ foi pesado o sono pra quem não sonhou.” Tropicália à moda primeiro-mundista, o movimento hippie-flower-power-LSD-etc. é pranteado por Gil: “O sonho acabou/ dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross na barriga de Maria.” Escapar via drogas ou não?, estava ali a questão.
No balanço entre tradição e modernidade, resta a Expresso 2222 terminar ao som de “Oriente”, talvez a mais importante canção de juventude de Gil. Conversando consigo próprio, ele pede a si próprio o melhor para si próprio: “Se oriente, rapaz, pela constelação do Cruzeiro do Sul”, “considere, rapaz, a possibilidade de ir pro Japão”, “determine, rapaz, onde vai ser seu curso de pós-graduação.” Não estava apenas se auto-orientando: a tentativa de harmonização entre opostos de que esse álbum é feito inspiraria parte substancial dos mais consistentes artistas brasileiros (e até estrangeiros) pós-Gilberto Gil.
A pós-graduação de Gil se dividiria em muitas. Passaria pela reconscientização racial paulatina e suave a partir de Refavela (1977). Pela estadia revolucionária no Ministério da Cultura do Brasil durante parte do governo Lula. Por “Não tenho medo da morte” (2008), seu mais importante e impactante tema de maturidade: “Não tenho medo da morte/ mas sim medo de morrer/ [...] a morte já é depois/ já não haverá ninguém/ como eu aqui e agora/ pensando sobre o além/ já não haverá o além/ o além já será então/ não terei pé nem cabeça/ a morte é depois de mim/ mas quem vai morrer sou eu.” Mesmo findas as aflições da ditadura, da repressão e da juventude, a ema nunca cessaria de gemer. F