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Superando preconceitos e tragédias pessoais, cantora segue inovando em sua carreira e relembra momentos importantes de sua trajetória
Por Glauco Faria e Igor Carvalho. Fotos de Guilherme Perez
A matéria abaixo faz parte da edição 119 de Fórum, compre aqui.
“A carne mais barata do mercado é a carne negra/Que vai de graça pro presídio/ E para debaixo de plástico/ Que vai de graça pro subemprego/ E pros hospitais psiquiátricos”. Quando canta o refrão da música composta pro Marcelo Yuka e Seu Jorge, Elza Soares, mesmo debilitada por conta de uma operação na coluna feita em 2011, levanta e eleva ainda mais a sua potente voz.
A música diz muito a ela e a muitos brasileiros. Elza teve sua admissão negada em uma gravadora por ser negra, além de ter sofrido com o racismo em outras ocasiões. Mas não foi o único preconceito do qual foi vítima. Quando casou com um dos maiores astros do futebol brasileiro de todos os tempos, Mané Garrincha, foi hostilizada por boa parte de uma sociedade machista que a acusou de ter “acabado” com o matrimônio anterior do craque. Justo Elza, que esteve sempre ao lado do companheiro e sofria com seu alcoolismo, tendo que se sacrificar e até mesmo parar com sua carreira para cuidar dele.
Mas ela sobreviveu. Aliás, desde a infância, aprendeu na marra como superar obstáculos. Casou-se com 12 anos, obrigada pelo pai; aos 13, já era mãe e, aos 21, viúva, e com quatro filhos.
Um episódio que marcou sua vida e que ela costuma contar em seus shows, foi quando se apresentou em um show de calouros comandado pelo célebre compositor Ary Barroso. Vestida com a roupa de sua mãe por não ter outra para se apresentar, foi motivo de chacota por parte do apresentador e da plateia. Ao perguntar de forma jocosa à caloura de que planeta ela tinha vindo, Elza não titubeou: “Do mesmo que o seu. O planeta Fome.”
Na entrevista a seguir, feita depois de uma apresentação sua no tradicional Bar Brahma, no centro de São Paulo, a cantora fala a respeito dos seus percalços, mas também dos motivos que sempre a fizeram seguir em frente. “A gente já chegou no futuro. E ainda tem mais.”
Fórum – Na hora de cantar “A Carne” você se levantou, bateu no peito. Como o racismo afetou a sua carreira?
Elza Soares – A gente sabe que ele existe, está escondido, infiltrado nas paredes, você não sabe quando ele vai encontrá-lo, mas o racismo está por aí. Quando chega a Elza Soares, que hoje ganha grana, às vezes não olham a cor da minha pele, mas minha carne é negra. Quando canto “A minha carne é negra”, lembro do Seu Jorge e do Marcelo Yuka, é uma música muito forte.
Fórum – No começo da sua carreira, a RCA não quis lhe contratar porque você era negra.
Elza – A RCA não tinha cantor negro. Mas, na época, não senti nada, eu tinha tanta vontade de descer aquele morro, de comer melhor... Tinha filhos, precisava trabalhar e ganhar dinheiro, mas eu queria cantar. Quando a RCA não quis, a Odeon quis. Te juro que nem doeu. Eu me lembro que foi o Aldacir Louro que me levou pra RCA, eles viram e disseram: “Ah, que pena, ela canta muito, mas é negra”. Isso não me diz porra nenhuma, passei por isso. É bom quando você consegue passar por cima dessas coisas pequenas, porque isso é muito pequeno e idiota.
Fórum – Você passou por cima, mas teve gente que você conheceu que acabou sendo prejudicada por conta do racismo no meio musical.
Elza – Tive um grande professor que foi o Grande Otelo, me formei como atriz com ele. E sempre dizia o seguinte: não veja a cor da sua pele, vai embora, vai pelo seu talento, se você parar pra ver a cor da sua pele, você não vai dar dois passos porque vão esbarrar em você. Por ele falar assim, acho que tem muita gente que não conseguiu chegar. Existem tantas Elzas por aí, por que que não chegam? Muitas não chegaram por medo.
Fórum – Você já falou que muitos a consideram rainha dos gays...
Elza – Me consideram não, eu sou [risos].
Fórum – … e falou que isso se dá por eles serem minoria como você.
Elza – São minoria como eu e me ajudaram muito. Quando começou a surgir esse negócio da aids, existia muito preconceito, e eu dizia para alguns amigos: “Traz a receita que eu mando fazer o remédio e vem pra minha casa”. Não vou te citar nomes, mas muitos vieram pra minha casa. É minoria, cara, e eu sou minoria. Mas acho que nem somos minoria na verdade.
Fórum – Falando em preconceito, você foi a primeira mulher a interpretar um samba na avenida. Como isso foi recebido na época, houve reclamação dos intérpretes masculinos?
Elza – Pelo contrário, eles ficaram até sem graça. A voz feminina é muito mais fácil pra todo mundo cantar, e quando cheguei na avenida cantando com a voz rouca, gritando, parecendo o Louis Armstrong, foi uma abertura. E está faltando hoje mulher pra puxar samba, no carnaval. Aliás, no samba em geral faltam mulheres. Temos a Alcione, a Beth Carvalho... Estamos precisando de mulheres no samba, há um buraco muito grande. Tem muita mulher no funk, por exemplo, mas no samba existe uma lacuna.
Fórum – Em uma declaração sua há algum tempo, você falou que o que mais empolgava você era a música eletrônica e o hip-hop...
Elza – Completamente, ela entra, penetra em você. Fico louca quando vejo um ritmo picante, porque é picante, como a salsa. E o samba tem essa pegada, mas falta um trabalho... Não sei se é um preconceito, mas quando você vai lá fora, as pessoas associam o samba só ao carnaval... Falta muita coisa...
Fórum – Falta renovação?
Elza – Falta. Quando operei a coluna, pensei em fazer um trabalho menor, menos empolgante, porque não consigo ficar muito em pé. Escolhi fazer um trabalho mais lento, até um pouco morno, para dar tempo de ficar bem, mas não estou aguentando, não. Montei “Deixa a nega gingar”, mas danço na cadeira como uma louca, fico de pé.
Se criarem um novo modelo de música, eu quero, porque tudo que está aí eu já fiz. Imagina, sou apaixonada por Chet Baker, quando termino um show quero ouvir um CD do Chet Baker antes de dormir. Ouvir aquela voz meiga, doce, que é algo totalmente diferente do que eu faço. Fiz tudo, não sei o que falta fazer. Ou talvez falte fazer tudo ainda, quem sabe.
Fórum – Você também conheceu alguns dos grandes nomes da música internacional, como foi seu encontro com Louis Armstrong, na Copa de 1962, no Chile?
Elza – Ele me chamou de “my daughter”, mandaram eu chamá-lo de “my father”, pensei que estava chamando ele pra fazer outra coisa [risos]. Falaram: “Vai lá e chama ele de “my father”, falei: “não, não vou fazer isso, tá louco. E se ele aceitar, se ele gostar, o que eu faço?”. Pensei que estava falando “me fode”, eu entendia isso [risos]. Mas cheguei perto do negão e ele: “yeah, my daughter”, e eu ainda entendia que ele estava me chamando de “doutora, [doctor] e eu pensando: “Pô, o cara me chamando de doutora o tempo todo, meu nome é Elza, Elza Soares”. Aí me explicaram que ele estava me chamando de “filha”, apesar do som parecer “doutora”, e falaram também o que era “my father”... Depois a gente se encontrou no México, mas paguei um mico muito feio ali.
Fórum – Você já tinha escutado Louis Armstrong antes?
Elza – Nada, nada. Escutei na Copa do Mundo, nem sabia o que era Louis Armstrong, pra mim era o nome de um prato caro demais pra comer. Quando ouvi, foi maravilhoso... E paguei um outro mico, pior, quando o conheci, porque me mandaram olhar pra trás, vi, e ele parecia o Monsueto [Menezes] Falei: “O que é que tem, é o Monsueto”.
Fórum – Mas o timbre da voz, o jeito de interpretar de vocês dois às vezes se assemelha. Como você começou a trabalhar a voz desse jeito?
Elza – Cada vez que eu pegava a lata d’água na cabeça, fazia esse barulho [faz uma inflexão com a voz, simulando rouquidão]. Deu certo e pensei: “Já que deu certo, vou continuar fazendo”. Meu pai tinha pavor, ficava apavorado quando eu fazia isso. Daí vi Louis Armstrong fazendo aquela voz e pensei: “Tá me imitando, o cara tá querendo me imitar. Será que pegou lata d’água que nem eu, não é possível”. Só que ele falava assim também, tanto que esperava que, como eu cantava dessa forma, falaria do mesmo jeito. Mas não tem nada a ver. Quando brinco com o contrabaixo, até dou uma nota que não existe [faz um som grave], as pessoas pensam que é algo eletrônico, mas não tem nada eletrônico lá dentro, não.
Fórum – Sobre isso, como é aquela história de que você teria uma corda vocal a mais...
Elza – Não existe, mas minha corda vocal é toda torta. Que nem as pernas do Mané [Garrincha], deu certo, né. Já estudaram minha garganta, tem uma pessoa aqui de São Paulo, Vanessa Medina, está fazendo um trabalho, um estudo, e ficou apavorada. Disse que nunca viu uma coisa tão torta, e tão certa.
Fórum – Sobre o Garrincha, você brigou com o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, quando quiseram mudar o nome do novo estádio de Brasília, tirando nome dele...
Elza – Claro, tá louco! Um nomezinho tão pobre, ainda vão tirar... Não vão tirar, não. O Pelé virou rei e outros tantos viraram reis por causa dele, e ele, nada? Fui pra Brasília, pedimos muito, e graças a Deus ficou conservado, o nome dele está lá. Agora, dia 20 de janeiro, fez 30 anos da morte dele, também briguei bastante para que falassem a respeito.
Fórum – Você não viu o filme sobre o Garrincha...
Elza – Não, sofrer duas vezes é burrice. Já sofri uma vez, vou sofrer outra? Já sei tudo como é, voltar ao passado... Não gosto de ouvir, de ver, nada. Passou.
Fórum – Dentro desse universo de preconceitos que enfrentou durante sua vida, o machismo também foi severo com você quando se casou com Garrincha.
Elza – Foi terrível, mas eu dizia pro Mané que um dia as minhas lágrimas seriam recompensadas, porque eu chorei muito. Protegia o Mané e esquecia de mim. Mané era uma criança, um passarinho, e precisava de mais cuidado do que eu. Parei com tudo. Até de andar na rua, as pessoas queriam me pegar, me matar.
Fórum – Mas hoje essa visão que as pessoas tinham sobre você naquele momento mudou.
Elza – Muito. E devo isso a Ruy Castro [autor de uma biografia sobre Mané Garrincha]. Eu não queria falar com ele para o livro Estrela Solitária, não queria dar entrevista, porque tinha medo de falar do Mané, mas ele acabou me convencendo a falar, e fez um trabalho muito lindo, mostrou o outro lado.
Fórum – No livro, ele ressalta que o declínio do Garrincha coincide com o período em que vocês se separaram, mas você já disse que isso seria culpa do Botafogo.
Elza – Lógico que não é culpa minha. Deixavam o Garrincha sem salário, não sabia quando ia receber. Eu que segurava tudo. Ele merecia muito mais. A Copa do Mundo está chegando, quando vi criarem aquele bonequinho [o mascote da Copa], pensei: “Pô, porque não criaram um bonequinho com as pernas tortas, o Drible do Mané?”. Criaram um boneco que não sei nem o nome.
Fórum – Fuleco...
Elza – Que nome feio, parece até outra coisa [risos].
Fórum – Desses períodos em que você ficou sem cantar, o lançamento de Do Cóccix até o Pescoço foi a sua maior virada?
Elza – Ah, foi. Pra mim, tem de procurar outro cóccix daquele, esse aqui agora está operado [risos]. Aquilo foi uma virada, uma guinada de mestre. José Miguel Wisnik, Carlinhos Brown, Gonzaga... aquele disco tem muitos padrinhos, foi maravilhoso.
Fórum – E como recebeu a premiação da BBC de “cantora do milênio”?
Elza – Também foi maravilhoso, recebi e pensei: “Por que eu?”. Com tantos cantores, pensei na Gal [Costa], na [Maria] Bethânia. Logo eu, que não faço tanta televisão e nem tenho tanta divulgação. Foi uma surpresa boa, mas dobra a responsabilidade, “cantora do milênio, bota a garganta pra funcionar, mulher”. Não tem cóccix nem pescoço, vai direto [risos].
Mas estou muito feliz com meu show atual, “Deixa a nega gingar”, que tem DJs e é um show audacioso, que vem tendo um público muito jovem, que é a minha cara, um público bem louco. As novas gerações estão me descobrindo, e eu descobrindo elas também, é uma troca.
Fórum – Em termos de novas gerações, qual sua opinião sobre compartilhamento de músicas na internet?
Elza – Hoje não sei mais o que significa gravar um disco. A internet está aí, a pessoa escuta, já não tem tanto interesse em comprar... Gosto de ver capa de CD, de disco, com a internet já ficou uma coisa mais estranha. Mas acho que é ótimo, a divulgação está aí.
Fórum – Nesse contexto, a atuação de um órgão arrecadador como o Ecad fica totalmente ultrapassada.
Elza – Completamente. A gente já chegou no futuro. E ainda tem mais. Mas nunca baixei um disco, eu compro, tenho prazer em comprar, o cara faz aquilo pra ganhar a vida...
Fórum – Teve um período que você ficou fora do Brasil, durante pouco mais de nove anos, como foi isso?
Elza – Perdi meu filho, o Garrinchinha... Fui embora pra América, muito louca, muito louca... Pra mim, tinha acabado a vida, perder um filho com 8 anos de idade, e você pensa no futuro daquela criança. Depois, fui morar na Itália, em Paris, fui circulando, rodando até botar a minha cabeça no pescoço. Foi muito difícil.
Trabalhei com música, mudei de religião, comecei a virar crente, usei saia comprida, sandália, com a bíblia embaixo do braço. Gente, devia ter tirado uma foto. Quando perdi meu filho virei uma coisa que nem eu entendia. Mas precisava disso, gosto de me ausentar às vezes, ficar meio escondida.
Foi ali que substituí Ella Fitzgerald. Naná Vasconcelos me indicou na época em que ela gravou Ella canta Jobim, tinha de fazer uma operação de catarata e parar com os shows. Ela foi a Roma e me fez o convite para fazer alguns shows que faltavam.
Morei fora do país muito tempo, achava que o Brasil não me entendia. Carregava lata d’água, mas botaram muita coisa dentro dessa lata. Música você pode mexer, pode brincar, e fui muito criticada por isso, por mexer na música. Quando criei esse show “Deixa a nega gingar”, teve aquela crítica: “A Elza Soares está cantando samba com DJ”. Lancei esse show na Alemanha, operada, depois fui pra Londres, Paris...
Fórum – Mas, então, quando diz que o Brasil não entendia você, se refere à música?
Elza – Não só, acho que por eu ser diferente, sei lá. “Quem é você que não sabe o que diz”, mas querendo dizer muita coisa...
Fórum – Você teve alguns períodos nos quais se afastou da música, o Cetano Veloso a “resgatou” em um desses momentos...
Elza – Com a música “Língua” [1984], o Caetano quis me resgatar. Ia deixar de cantar, queria parar de cantar e ia trabalhar em um orfanato com meu filho, vim pra São Paulo pra isso. Daí vi uma faixa anunciando o Caetano Veloso, e, na época o Bineco trabalhava com ele, conversei e ele me falou: “Não, vamos falar com o Caetano, você não pode parar de cantar.” Fui pro hotel, caí nos braços dele, chorava em desespero. E ele falou: “Você não vai deixar de cantar, não, como vai abandonar sua colmeia? Volta pro Rio de Janeiro que eu tenho uma surpresa pra você.” Foi quando ele gravou “Língua”. Foi tudo, cara, ali foi um resgate, Caetano me resgatou.
Fórum – E o que significou pra você o encontro com Lupicínio Rodrigues?
Elza – Dele, gravei “Se acaso você chegasse”, mas passei vergonha com ele também. Eu cantava em uma boate, Texas Bar, e veio aquele homem com um buquê de flores, rosas, me olhando, e eu pensei: “Que merda é essa?”. Tinha um medo, saía pra cantar, voltava e minha mãe nem falava comigo. Não achava que ia cantar, mas que estava sendo “cantada”. Veio aquele cara me olhando, dizendo: “Trouxe rosas para outra Rosa.” Respondi: “não me chamo Rosa, e detesto rosas”. Ele respondeu: “Eu sei, meu nome é Lupicínio.” “Lupicínio o quê?”, perguntei. “Lupicínio Rodrigues.” E eu: “seo Lupicínio! Por que o senhor não falou antes...”. Que vergonha...
Tenho umas gafes feias. Nesse mesmo Texas Bar, apareceu a Silvinha Teles, e aquela mulher dançava e ficava olhando pra mim, de longe, e eu pensando o porquê de aquela mulher não parar de me olhar. Daí ela chegou e falou: “Meu bem, queria que você desse um pulinho ali naquela mesa pra conversar comigo.” Eu disse: “Olha, a senhora tá muito enganada, não vim aqui pra sentar na mesa com ninguém, vim aqui pra cantar. A senhora me desculpe”. E ela foi ficando vermelha: “Eu sei que você tá aqui pra cantar,
estou convidando você pra sentar à mesa porque acho que vou te convidar pra gravar, sou Silvinha Teles.” Era gafe atrás de gafe, aliás, era “garfo”, espetava demais [risos].
Fórum – Pra encerrar, você também já falou, antes de tudo, que gosta muito de blues...
Elza – Sou muito “blueseira”. Gosto de blues porque dói, né? Apesar de toda essa alegria, tenho um lado que dói, é onde entra o blues. Onde dói minha carne negra. F