Segundo o ex-secretário de Desenvolvimento Territorial do MDS, Humberto Oliveira, é preciso políticas públicas para os municípios com menos de 50 mil habitantes, que são maioria no país
A desigualdade no Brasil não é novidade. Apesar do crescimento e avanço na distribuição de renda dos últimos anos, o país ainda está entre os 12 mais desiguais do mundo. O índice de Gini – que mede a desigualdade – caiu de 0,596, em 2001, para 0,519, em janeiro de 2012, mas ainda é alto. Em países como Canadá, Holanda e Suíça esse coeficiente está próximo a 0,30. Alcançá-los é um desafio e tanto. “O Brasil é conhecido por ser muito desigual, mas há uma desigualdade entre o rural e o urbano, que é tão forte como a de gênero ou racial”, afirma o coordenador da Associação de Orientação às Cooperativas do Nordeste (Assocene) Humberto Oliveira, ex-secretário de Desenvolvimento Territorial (SDT) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). “No Brasil, temos uma diferença entre a pobreza urbana e a rural.” Oliveira defende uma abordagem territorial para superar a pobreza das regiões rurais do Brasil. Idealizador do programa Territórios da Cidadania, lançado em 2008 pelo governo federal, ele destaca que essa desigualdade começa por uma questão conceitual. Segundo ele, dizer que o Brasil é um país urbano é um equívoco, pois se considera como rural apenas quem vive no campo. “As politicas públicas perdem importância para a maioria dos municípios, quando se fala que o país é urbano a prioridade é a região metropolitana”, diz. Segundo Oliveira, existe ainda um certo preconceito em relação ao mundo rural, como se fosse o não civilizado, não desenvolvido, quando, na verdade, é um mundo de muita sabedoria. “Os municípios de 10 mil habitantes estão perdendo população, continuamos empurrando o povo para o litoral, para os grandes centros. Continuamos ignorando esse mundo rural. Seria razoável que todos os municípios com menos de 50 mil fossem considerados rurais”, afirma. Um caminho possível, de acordo com Oliveira, é olhar para um conjunto de municípios que tem uma identidade e construir políticas públicas comuns. O ex-secretário falou sobre o tema durante o IV Encontro de Jornalistas do Nordeste da Fundação Banco Brasil, realizado entre os dias 16 e 18 de maio em Ipojuca (PE), onde concedeu a entrevista a seguir. Fórum – Por que o Brasil precisa da abordagem territorial? Humberto Oliveira – Em primeiro lugar, para reconhecer o mundo rural brasileiro. Uma abordagem territorial é muito necessária para municípios pequenos que têm pouca atenção das políticas públicas nacionais e estaduais. A abordagem territorial consegue dar escala. Você olhar para um conjunto de municípios e ver ali uma população de 500 mil pessoas, 400 mil pessoas, 600 mil pessoas, já é uma cidade de porte médio. O gestor público também tem que olhar para a quantidade, ele não pode atuar no varejo. Nós temos um país de 5.565 municípios, não dá para olhar cada um individualmente, porque se for olhar individualmente vai ter que olhar mais para São Paulo, para o Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou mesmo para Manaus, e vai deixar de olhar para o município que tem três mil, quatro, cinco mil habitantes. A abordagem territorial dá essa escala num conjunto de municípios, que ganha uma importância numérica para o gestor aplicar um conjunto de políticas públicas ali. Agora, para isso, ele precisa entender esse território como um conjunto de municípios que tem uma certa identidade e uma série de interesses comuns. Fórum – É isso o que define um território, essa identidade e esses interesses comuns? Humberto Oliveira – É, existem várias formas de ver o território, vários olhares sobre o território. O território pode ser visto do ponto de vista de como realizar um projeto com um conjunto de municípios, pode ser visto de um ponto de vista de um déficit social, por exemplo, municípios em situação de pobreza, com baixo IDH. Pode ser visto do ponto de vista ambiental, geográfico etc. Mas eu considero o mais referencial, não é que seja o mais verdadeiro, o mais correto, mas o que funciona melhor para uma política pública, o território que é reconhecido pela sua identidade, por um conjunto de elementos comuns que é resultado de um processo histórico, de construção social. Onde as pessoas num processo de relacionamento durante um espaço de tempo considerável, um processo de ocupação desse espaço físico transformou aquele território num lugar com uma identidade própria, em que as pessoas têm um sentimento de pertencimento muito forte, elas se consideram dali, têm orgulho de ser dali. Isso de certa forma gera compromisso com o lugar, gera vontade de trabalhar pelo seu lugar e se aliar às iniciativas de governo para fazer desenvolvimento. Isso é fundamental, juntar a autoestima das pessoas com os projetos que essas pessoas têm para o seu lugar, com o interesse do governo de fazer desenvolvimento do país e também daquele lugar.
Fórum – O senhor criou e esteve à frente da Secretaria de Desenvolvimento Territorial. O que avançou desde a criação dessa secretária e como está hoje? Humberto Oliveira – A secretária foi criada em função dessa política de desenvolvimento territorial. Tenho certeza, sem dúvida nenhuma, que essa secretaria avançou, ela conseguiu homologar ou reconhecer na sua ação 164 territórios em oito anos. Além desses 164 territórios, governos estaduais e mais as próprias organizações da sociedade civil ampliaram esse número para mais 250 territórios de identidade reconhecidos hoje no Brasil. A secretaria propôs um programa de governo que foi aprovado, o Territórios da Cidadania, que rodou durante dois anos com bastante intensidade, e continua porque tem muita atividade nos próprios territórios. Acredito muito nessa política, que foi criada para um período de 35 anos. Fiquei à frente da secretaria por oito anos e acho que vão passar vários secretários, vários ministros, presidentes da república e cabe, não só aos governos, às autoridades que vão assumir essa atribuição e essa responsabilidade com essa política na secretaria, na SDT ou no ministério, mas cabe também aos municípios, aos governos estaduais e a própria sociedade civil, em especial aqueles que estão nos territórios, organizados nos colegiados territoriais, a manter essa política ativa, viva, independente do ritmo que o governo federal dê a esses programas. Fórum – O senhor crítica o fato de o país considerar que 83% da população vive em área urbana. Porque isso não é verdade? Humberto Oliveira – O Brasil é um país onde quem circula por ele percebe que há uma imensa ruralidade rejeitada, digamos assim. Existe uma imensa ruralidade na maneira como os municípios se relacionam com o campo, com a cultura do campo, com uma certa predominância de paisagens naturais existentes na maioria dos municípios brasileiros, e diga-se de passagem, 90% deles têm não mais que 50 mil habitantes, o que significa que são municípios pequenos, que guardam uma relação muito intensa com as atividades agrícolas. Embora hoje, esses municípios não sejam exclusivamente agrícolas, nós temos indústrias nos municípios rurais do Brasil e ruralidade não significa agricultura, o significado de rural é mais amplo. Além da agricultura, que é a atividade principal, nós temos hoje, municípios que têm muitos comércios, que são polos de comércio, de prestação de serviços, equipamentos públicos à disposição da população e que têm essa forte relação com o campo, seja na atividade econômica, seja na atividade cultural, seja na atividade gastronômica, na música, na literatura, nas histórias que as pessoas contam, das relações de proximidade, do fato de que a sede dos municípios rurais do Brasil hoje, abriguem várias pessoas que trabalham no campo e residem nessas cidades. Elas se deslocam com a facilidade do transporte em ônibus escolares que fazem transporte das crianças e, muitas vezes, das pessoas que trabalham. Há também o uso de motocicletas, enfim, existe uma variedade e qualquer observador pode perceber isso nos municípios do interior do Brasil. Temos uma ruralidade que em outros países é reconhecida e é valorizada. Essa valorização tem impacto sobre o olhar do governo para esses lugares. Nós precisamos que um gestor público enxergue uma ruralidade para que ele dê prioridade e desenhe políticas públicas adequadas a esse ambiente. Acho que existe uma ruralidade que precisa ser enxergada pelo gestor público para que ela possa dar a contribuição exata ao desenvolvimento do país. O país precisa dessa contribuição que não é só de produção, não é só grãos, só de carne, só de gado, mas de gente que tem talento, tem condição de oferecer soluções para os seus lugares, manter populações em seus lugares, evitando essa concentração excessiva de populações de cidades de médio e grande porte no Brasil e nas regiões metropolitanas, que criam problemas insolúveis do ponto de vista do tratamento de políticas públicas. Muitas dessas soluções estão exatamente no processo mais distributivo da população pelo imenso território brasileiro que tem mais de oito milhões de quilômetros quadrados e que pode ter uma população vivendo com satisfação, com felicidade, com cidadania nesses espaços rurais.
(Entrevista publicada no site da Revista Fórum)