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Em 1993, um garoto filipino de 12 anos foi entregue pela mãe a um estranho que ele jamais havia visto, e que lhe disseram ser seu tio. Esse senhor o levou ao Aeroporto Internacional Ninoy Aquino, para uma viagem aos EUA, onde o garoto encontraria seus avós. Lá chegando, os avós o matricularam na sexta série de uma escola pública na região de San Francisco, na Califórnia. Daí ele começou a rotina de qualquer imigrante: aprender a língua, tentar adaptar-se, imitar os sotaques, vestir-se da forma menos conspícua possível. O primeiro grande choque aconteceu aos 16 anos, quando seus colegas já tiravam carteiras de motorista. Ele se dirigiu ao Departamento de Veículos Motorizados e entregou seu green card [cartão de residência permanente] ao atendente. Recebeu um petardo como resposta: “Isso é falsificado. Não volte aqui de novo”.
Atônito, ele foi buscar explicações com o avô e sentiu a vergonha e a humilhação no rosto do velho filipino. Os avós eram estadunidenses naturalizados; ele, segurança, ela, balconista de lanchonete. Mas não tinham como regularizar a situação do neto. “Não mostre isso a ninguém”, disse o avô, e o garoto começou a sua vida dupla: guardando fotos da mãe em caixas de sapatos, em vez de porta-retratos, para que ninguém perguntasse pelo resto de sua família; recusando excursões ao México com todas as despesas pagas pela escola, sem nenhum motivo compreensível para os colegas; tapando com uma fita adesiva a frase “válido para emprego somente com autorização do serviço de imigração” no cartão da Seguridade Social, do qual ele passava a usar então uma fotocópia. Assim, ele conseguiu acesso a uma bolsa para a universidade e uma sequência de empregos, começando como atendente no Subway, depois balconista na Y.M.C.A. e office-boy no jornal da cidade.
O jornalismo era sua paixão e, já na universidade, ele foi conseguindo abrir algumas portas. A vida continuava agônica, porque o mascaramento da ilegalidade lhe custava cada vez mais caro. Com o tempo, deixou de marcar o quadro correspondente a “residente permanente” nos formulários e passou a se declarar cidadão dos EUA. Era mais fácil e lhe rendia menos dores de cabeça. Já em seu primeiro ano como universitário, conseguiu um emprego no San Francisco Chronicle, jornal tradicional e respeitado. Sua obrigação era cuidar da correspondência, mas ele teve a oportunidade de escrever alguns artigos como free lancer, que se tornaram linhas preciosas no seu currículo, servindo-lhe para um primeiro emprego real como jornalista, no Philadelphia Daily News.
Na Filadélfia, cobriu o casamento da mega estrela do basquete profissional, Allen Iverson. Quando o Seattle Times lhe ofereceu um estágio, havia duas ou três pessoas, além de sua família, que conheciam sua situação migratória. Cansado de escondê-la, ele abriu o jogo com o jornal e recebeu uma negativa. Não, se ele não era um residente legal do país, ele não poderia trabalhar lá. Um dos membros de seu círculo de apoio decidiu pagar um advogado, mas a consulta terminou sendo das mais frustrantes. A única forma de ele resolver legalmente sua situação seria voltar para as Filipinas, esperar os dez anos de punição e enviar os formulários com a petição migratória. Era uma saída que estava, evidentemente, fora de questão. Nesse meio tempo, ele recebeu um convite para estágio num dos jornais mais importantes do país, o Washington Post. O problema é que se exigia a carteira de motorista.
O jovem passa horas e horas na biblioteca estudando os requisitos de cada estado para uma carteira de motorista, documento universal e quase substitutivo de qualquer outro nos EUA. Descobre que as exigências em Oregon não são tão complicadas. Seu círculo de apoio se faz presente e um amigo cede o endereço para que lhe enviem cartas ali e ele possa, assim, “provar” sua residência no estado. Com sua carteira de estudante, essas cartas, uma xerox do cartão de Seguridade Social adulterada e um contracheque com seu pagamento no San Francisco Chronicle, ele chega a Portland. Com o amigo, aprende a fazer retornos em U num carro hidramático. Consegue a carteira. Corria 2003 e ela seria válida por oito anos. Venceria no seu trigésimo aniversário, 3 de fevereiro de 2011. Desde que não saísse do país, ele tinha agora oito anos para resolver seu problema ou testemunhar uma reforma migratória que o salvasse.
Trabalhando no ambiente competitivo de um dos maiores jornais do país, o jovem passou a se sentir cada vez mais paranoico. Sabiam o seu segredo, pensava ele. Agoniado, ele procurou um superior seu que havia elogiado suas primeiras matérias. Revelou sua condição migratória irregular. Recebeu apoio e recomendação de que primeiro se firmasse no trabalho, para que pudessem, depois, revelar a situação aos diretores executivos do jornal. Nesse ínterim, aconteceu o massacre na Universidade Virgínia Tech, em que um jovem aluno coreano foi ao campus armado até os dentes e abriu fogo contra dezenas de colegas. O jovem pega a estrada para a curta viagem que separa Washington da cidadezinha universitária de Blacksburg. Com sua equipe, produz uma série de reportagens sobre a tragédia para o Washington Post. A série recebe o Pulitzer, o mais importante prêmio dado pelos EUA à palavra escrita, em qualquer campo ou disciplina. É o mais honroso prêmio que você pode ganhar escrevendo, simplesmente.
O vencedor do Pulitzer era um imigrante ilegal.
Fortalecido com essa situação, enquanto o país passa por uma crescente histeria anti-imigratória, ele procura cada um dos personagens de sua trajetória e lhes pede autorização para que fossem citados numa matéria que revelaria toda a verdade. Vai ao New York Times e, no dia 22 de junho deste ano, escreve uma coluna apresentando-se: meu nome é Jose Antonio Vargas e eu sou um imigrante ilegal. O texto “Minha Vida de Imigrante sem Documentos” conta, em essência e com muito mais detalhes, a história narrada acima. Foi um ato de tremenda coragem, porque, independentemente de qualquer reforma migratória que possa regularizar sua situação (e isso parece cada vez mais utópico, dado o clima atual), ainda assim ele é culpado de alguns crimes, incluindo-se o falso testemunho e a falsificação de documentos. Os dois lados do debate migratório estão acostumados a pensar nos imigrantes ilegais como lavadores de pratos, jardineiros, babás e trabalhadores da construção civil. O vencedor do Prêmio Pulitzer lhes esfregou na cara outra realidade e o país reagiu com estupefação.
A população latina, em particular, vive hoje, em várias comarcas, agruras bem piores que as vividas por Jose Antonio. O governo de Barack Obama deportou mais imigrantes que a administração Bush. Foram nada menos que 800 mil deportações. Os defensores do governo argumentam que o foco tem sido imigrantes que cometeram crimes violentos e que precisamente por isso o número aumentou. Do ponto de vista de quem sofre a violência — em sua maioria, a população latina —, isso importa pouco, pois ajuda a criar um clima em que mesmo imigrantes legais e cidadãos estadunidenses de aparência hispana passam a ser vítimas de constante escrutínio xenofóbico. Pelo menos dois estados, Arizona e Alabama, aprovaram leis de imigração que vão além do draconiano e entram no terreno pura e simplesmente kafkiano.
No Arizona, a nova lei obriga os imigrantes a portar documentos consigo todo o tempo, transforma em criminosos aqueles que albergarem ou ajudarem imigrantes ilegais (mesmo sem saber de seu estatuto migratório) e confere à polícia local o direito de parar qualquer pessoa sobre a qual possa existir “suspeita razoável” de que não seja cidadão dos EUA ou imigrante legal. O direito de exigir documentos se transforma em dever policial caso a pessoa seja parada por outro motivo. Se ela não tiver documentos migratórios ou de cidadania consigo, será encarcerada. Sabemos o que quer dizer, no mundo real, essa “suspeita razoável” em termos étnicos e raciais: latinos e árabes.
Para todos os efeitos, institucionaliza-se um apartheid legal. Houve protestos em todo o país e, em Los Angeles, 60 mil pessoas saíram às ruas com bandeiras mexicanas, número nada notável para padrões brasileiros ou europeus, mas impressionante para a letargia estadunidense pós-1968. O governo Obama, através do Advogado-Geral da União, Eric Holder, foi à Justiça argumentando inconstitucionalidade e interferência em atribuições do governo federal. Em primeira instância, uma juíza bloqueou alguns dos termos mais polêmicos da lei, mas o estado do Arizona recorreu e a briga jurídica continua.
No Alabama, a lei aprovada é ainda mais bizarra, pois transforma os professores de ensino fundamental em policiais. A nova legislação exige, de todas as escolas, informação acerca do estatuto migratório ou de cidadania de todas as crianças matriculadas. Mesmo que sejam filhas de pais ilegais, as crianças nascidas em solo estadunidense são sempre cidadãs dos EUA, segundo a 14ªemenda à Constituição, que os republicanos hoje adorariam revogar. Segundo a lei do Alabama, caso o professor não relate ao serviço migratório a situação irregular de alguma família, ele mesmo, professor, se transforma num criminoso. É a república do apartheid e da delação institucionalizada. Revoltadas, as associações de professores apontaram a consequência óbvia que advirá da lei: as crianças de famílias migrantes vão se afastar da escola.
A fúria antimigratória tem pouquíssima sustentação nos fatos. Os imigrantes não são responsáveis por uma parcela desproporcional de crimes. A criminalidade violenta, aliás, está em baixa nos Estados Unidos. O número de cidadãos de outros países tentando migrar para os EUA caiu vertiginosamente nos últimos anos, por motivos óbvios. O país está em bancarrota, tomado pelo fanatismo comum ao crepúsculo dos impérios e não é exatamente um destino atrativo hoje. Mas uma taxa de desemprego formal de 10% (levando a real, claro, para quase o dobro disso) facilita a consolidação de discursos do ódio baseados em bodes expiatórios. Tem sido uma receita de sucesso para os republicanos, com a cumplicidade medrosa dos democratas.
Com a exceção da comunidade cubana, que apoia a direita em peso (e não tem problemas migratórios, porque qualquer cubano que chega aos EUA está imediatamente qualificado para residência permanente), os latinos sempre tenderam a votar nos democratas. O George Bush pré-11 de setembro, explorando a imagem de “conservador com compaixão” e a habilidade de balbuciar algumas palavras em espanhol, reverteu parcialmente esse quadro em 2000, contra Al Gore. Obama, em 2008, recuperou o terreno e conseguiu uma margem histórica entre a população latina, mesmo concorrendo contra John McCain, que é do Sudoeste (região de forte concentração hispânica) e era, até então, associado à ala mais razoável do Partido Republicano em questões migratórias. Dada a direitização delirante dos republicanos no tema da imigração, o mais provável é que Obama mantenha a dianteira nas próximas eleições. Mas há enorme frustração, bem menos entusiasmo e a única certeza é que o comparecimento às urnas será menor.
Seja qual for o resultado das eleições, os EUA parecem fadados a produzir cada vez menos Joses Antonios.
Este texto é parte da Edição 101 da Revista Fórum.