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[caption id="attachment_319" align="alignleft" width="265" caption="Rosa Parks"][/caption]
Uma área de tempestade com grande chance de se tornar o primeiro furacão da temporada está tomando forma no Golfo do México e desviou a rota do avião que me trouxe até aqui, assim como o rumo desse texto. Moro em New Orleans há quase cinco anos e, Eparrei!, Iansã, aprendi a respeitar a natureza das tempestades, dos tornados e dos furacões. Em uma cidade que se deixou construir sobre o solo pantanoso e dançarino, e que tantas vezes se reergueu depois de ser arrasada por incêndios, descaso, vendavais, preconceito e inundações, a vida se confunde com a celebração quase histérica de um dia a mais, de uma última visita àquele restaurante onde se come o prato que vai ser tornar o preferido, até se experimentar o próximo.
O antropólogo Roberto daMatta disse certa vez que uma das coisas que mais o impressionava no estadonidense era que ele não conhece a pausa, o intervalo ocioso e bem-vindo entre um fazer e outro. Tenho a sensação de que New Orleans é a própria pausa, a musa sujeita – a nunca decepcionante – à admiração. No seu tempo, no seu corpo entregue ao jazz, ao blues e ao soul, a cidade vibra quando a pausa é necessária para se escutar aquele músico sensacional dando uma palhinha nas ruas do French Quarter, os sermões de domingo e o coro nas igrejas negras, os velhos rangendo as cadeiras de balanço nas varandas em frente às casas, o pisca-pisca das luzes nos inferninhos da Bourbon Street, a alegria genuína e respeitosa do povo seguindo os músicos em um jazz funeral, o atrito estridente entre os trilhos de ferro e as rodas do bondinho, os estalos fantasmagóricos das paredes das casas de madeira cobertas por camadas infinitas de tintas coloridas. É por isso e ainda mais que dizemos por lá que New Orleans, a musa decadente, uma das cidades mais negras das Américas – antes do Katrina – terra de vampiros, vodus, Scarletts O'Hara e princesas Disney, faz parte do Grande Caribe. New Orleans é uma pequena ilha que se enganchou nas pás que movem uma das barcaças que povoam o rio Mississipi e resolveu se infiltrar bem ali, desafiante, exótica e pecadora, no meio do sul conservador, racista e tradicional.
Há séculos a musa decadente resite a desastre naturais e descaso humano; e seu povo sabe disso. E sabe também da codependência que uma exerce sobre o outro, algo que se capta principalmente no bafejo quente do ar que respira a cidade nessa época do ano, com a temperatura chegando quase aos 40o e a umidade sempre muito próxima de 100%. É através desse ar, palpável e pegajoso, que a pausa maior se alastra, preparado-nos para a possível visita de um furacão. Os corpos, amolecidos, rendem-se à preguiça, e no coração da gente vai se dissolvendo um medo mal disfarçado que faz com que as pessoas se perguntem umas às outras: “Will we have the Big One, this season?”. Todas as gerações de neworlinianos já se fizeram essa pergunta; e para algumas, de fato, ele quase chegou – Betsy, Camille, Andrew, Georges, Ivan, Katrina. Todo mundo tem um tio, uma avó, um vizinho, uma prima, uma mãe, um filho, uma amiga que “did'nt make it”. E para o “Will we have the Big One?”, a única resposta possível é “I hope not, swettie”. Swettie ou babe, como os neworlinianos, homens e mulheres, se tratam, mesmo os desconhecidos; porque no fundo são todos íntimos e cúmplices no se deixarem seduzir ao mesmo tempo em que alimentam o poder de sedução da musa. “We can take it”, diz a musa. “We can take it”, responde o coro de súditos e amantes, de brothers e sistas. Porque são quase todos negros do sul, da brava raça que deu ao mundo Louis Armstrong e Martin Luther King, Marie Laveau, sacerdotisa vodu, e Rosa Parks, a subversiva de Montgomery.
Em 2008, fugindo do furacão Gustav, fomos parar em Memphis. Ao lado do hotel onde Dr. King foi assassinado, construíram o Civil Rights Museum, um dos lugares mais fascinantes que já visitei. Salas e mais salas com documentos, fotos, objetos e cenários representando toda a luta do negro estadunidense pela igualdade. Uma das salas do museu é dedicada a Rosa Parks, com a réplica do ônibus no qual ela se recusou a levantar. A cadeira do motorista é ocupada por um boneco automatizado que se move e fala. Um dos bancos da frente possui um mecanismo que, se ativado, faz com que o cenário pareça ainda mais real. Quem se senta nele recebe a atenção do motorista e o aviso de que aquele banco é reservado para brancos. Quando subimos no ônibus ali estava sentada uma senhora, de mais ou menos uns setenta anos, com os cabelos brancos divididos ao meio e formando duas tranças que davam a volta em torno da cabeça, muito bem vestida, com a bolsa e o chapéu apoiados no colo. Primeiro, achei que fizesse parte da encenação, uma boneca também; mas, sentada no outro lado do corredor, na fileira de trás, logo percebi que o peito respondia ao exercício da respiração; que os dedos, um tanto trêmulos, buscavam consolo na carícia à aba do chapéu; que os olhos tinham um brilho quase jubiloso, impossível de ser imitado por olhos que não tinham ido, visto e vencido o que aqueles tinham. Percebi, em choque e quase chorando, que aquele museu acabava de ganhar vida a poucos metros de mim; que aquela senhora, negra, pela idade que aparentava ter, era a prova de que tudo aquilo que tinha visto nas salas anteriores não era e nunca mais seria apenas história contada em museus temáticos, mas dolorosa experiência. A “minha” Rosa Parks mantinha os pés firmes no chão daquele ônibus, as ancas plantadas no assento, o tronco ereto dispensando o encosto, os olhos fixos no imaginário caminho a seguir, mas também enxergando anos atrás, aquele espaço assombrado pela voz do motorista que, em looping e num crescendo, dizia que ela tinha que se levantar, que ela era negra, que aquele lugar era somente para brancos. A dignidade da “minha” Rosa Parks colocava aquela interação em perspectiva: o motorista – máquina repetindo o que estava programada para repetir; ela- gente, despertando em nós, mudos ao seu redor, emoções para as quais não havíamos sido preparados, ejetados tão violentamente do banco de uma peça de museu para dentro de uma História que ainda não tinha acabado de acontecer, que ainda estava ali, real, dolorosa, pulsante e incômoda. Será que alguém de nós poderá, algum dia, ter noção de quantas vezes e com qual intensidade o corpo histórico que observamos, o corpo testemunha pelo qual ficamos hipnotizados, tinha sido dilacerado (“for white people, only”) e grampeado de volta à sua forma aparente e externamente original? (“I can take it!”) Eu nunca poderei sentir o que ela sentia, mas vi; e me lembrei imediatamente de quando comecei a me tornar negra. Porque sim, é uma identidade que não vem fácil, que não vem pronta, e que depende muito da maneira como o outro te vê.
Era também verão e era também New Orleans, com seu meio dia feito de vários sóis. Eu e meu marido estávamos de pé em uma tenda lotada de gente e de calor, quando ele me apontou duas senhoras que sinalizavam na minha direção. Havia apenas três ou quatro meses que eu tinha chegado à cidade e ainda me adaptava à perda da ambiguidade mestiça brasileira. Lá eu era inquestionável e definitivamente negra, e isso me dava tranquilidade para trabalhar essa questão identitária que eu havia me imposto, e que também começava a me chegar de várias fontes externas. Aqui, eu sempre tinha sido, e sido tratada como - a depender da situação e do interlocutor – morena, moreninha, mulata, mestiça, parda e, às vezes, até branca. Aquelas duas senhoras negras haviam colocado as bolsas no colo, dado bundadas pra lá e pra cá, e aberto um espaço para que eu me sentasse. Caprichei no sotaque sulista:
- Thank you, ma'am!
- You're welcome, sista!
Naquele momento, aquelas duas palavras fizeram todo sentido pra mim: welcome e sista. Talvez até tenham se arrependido ao verem minha cara de boba feliz olhando pra elas enquanto tentava perder a timidez e erguer a voz e as mãos para fazer coro ao Oh, Lord!, Oh, Lord!, em reposta ao gospel de Mahalia Jackson. Eu, elas, Mahalia, Oprah. a caixa do supermercado, a atendente da biblioteca, a fiscal de imigração, a secretária de estado, éramos todas sistas. Minhas duas novas irmãs cantavam e eu rezava baixinho, Thanks, Lord! Now I feel who I am!
Quando penso em duas palavras-chave desse Seminário, mulher e negra, é dessas três mulheres que me lembro: minhas primeiras sistas e "minha" Rosa Parks. Não apenas pela importância delas na minha história, mas principalmente pela importância do momento histórico que elas viveram: o movimento pelos Direitos Civis e a primeira onda significativa do movimento feminista estadunidense. Como mulheres negras, enfrentando o racismo e o machismo de maneira bastante singular, elas têm muito a nos dizer. Fazem parte da geração que primeiro estranhou quando as feministas diziam que as mulheres deveriam ir para as ruas procurar seus lugares no mercado de trabalho. Elas, suas mães e avós, muito provavelmente ex-escravas, já conheciam bem as ruas, pois trabalhavam nas fábricas, nas casas, nas plantações. Fazem parte da primeira geração de mulheres que denunciou e abandonou a exploração financeira e emocional do trabalho doméstico, recusando-se a se submeter a condições e a patroas que não consideravam ideais, e que eram as mesmas que, às suas custas, queriam promover a emancipação feminina - categoria na qual, muitas vezes, não se viam incluídas. Fazem parte de uma linhagem de mulheres que, liberadas da escravidão, tiveram que lidar com mitos que passariam a regular suas vidas. Como o mito da força incomensurável e da invulnerabilidade da mulher negra, importante para justificar sua presença desde sempre no mercado de trabalho. Mito que apaziguava as consciências de todos que, ao compararem sua imagem à imagem da mulher branca, podiam aceitar que essa negra forte não seria atingida pela perda ou pelo afastamento de seus filhos e maridos, mercadorias que, como ela, podiam ser vendidas ou eliminadas a qualquer momento, sob qualquer pretexto. A mulher escrava era emocional e fisicamente inatingível, muito mais forte do que a mulher branca, pois tinha que realizar certos trabalhos para os quais esta não havia sido talhada. Ela era também considerada promíscua, para que seu corpo pudesse ser usado para perpetuar mão-de-obra e destino.
Racismo e machismo. Dois "ismos" constantes na vida da mulher negra. Uma mulher branca não chama os homens brancos de irmãos. Uma mulher branca, ao se relacionar com um homem branco, não tem que pensar no impacto do racismo em suas vidas. A lealdade racial faz com que a mulher negra, ao se relacionar com seus pais, irmãos, primos, filhos e companheiros negros, geralmente não consiga simplesmente meter-lhes o dedo na cara e acusá-los de machistas. Há séculos elas tem observado o racismo ajudar a empurrá-los para o crime, a droga, a pobreza, o alcoolismo, a depressão e a violência, e muitas vezes são elas mesmas as válvulas de escape para tudo isso. Não é raro - they can take it! - que se vejam vivendo relacionamentos com homens cujas dores os torna abusivos, e precisem encontrar a distância a partir da qual ainda sejam capazes de aguentar o tranco e façam chegar ao coração do outro o amor incondicional - aquele que talvez tenha o poder de curar - do qual ele tanto precisa, mesmo que não mereça, mesmo que não retribua na mesma proporção. E tudo isso sem deixarem de ser feministas, pré-teóricas que são, porque assim aprenderam com suas mães, avós e bisavós, e ensinarão a suas filhas, netas e bisnetas. Por alguma razão que nem sempre é fácil de entender, elas acham que a luta é nobre e vale a pena. E eu estou com elas até onde elas aguentam ir, com o amor e contra o racismo e o machismo, porque elas são minhas sistas. E todos vocês são bem-vindos. Obrigada.
Ana Maria Gonçalves
XIV Seminário Nacional e V Seminário Internacional Mulher e Literatura
Mesa com Conceição Evaristo e Miriam Alves, sob coordenação de Constância Duarte
Brasília, 05/08/2011