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“Cultura” é daquelas palavras escorregadias, aparentemente simples, que com frequência são usadas com sentidos não só diferentes, mas antagônicos. Mais produtivo que estabelecer qual é a definição “correta” de cultura seria observar quais os sentidos adquiridos pela palavra ao longo do tempo e o que eles nos dizem sobre os seus referentes no mundo real. É o que tento fazer na coluna deste mês.
Palavras-Chave, do marxista britânico Raymond Williams, obra publicada no Brasil pela Boitempo, é um ótimo guia do assunto. “Cultura” vem do verbo latino colere, que combinava vários sentidos: cultivar, habitar, cultuar, cuidar, tratar bem, prosperar. Do sentido de habitar derivou colonus. Têm, portanto, origens comuns as ideias de colonização, culto e cultura. Já em Cícero (106 a.C. - 43 a.C.) aparece o sentido de cultura como “cultivo da alma”, mas é mesmo a partir do Renascimento que se consolida a analogia entre o cultivo natural e um desenvolvimento humano. É nesse sentido que Thomas More, Francis Bacon ou Thomas Hobbes, nos séculos XVI ou XVII, falam de “cultura da mente” ou “cultura do entendimento”. É uma metáfora derivada da analogia com o sentido material, agrícola do termo.
A naturalização dessa metáfora fez com que se cristalizasse o sentido de cultivo humano, e nos séculos XVIII e XIX o termo “cultura” começa a aparecer como autossuficiente, dissociado do objeto desse cultivo. Até o século XVIII, tratava-se sempre da cultura de alguma coisa, fossem plantações, animais ou mentes. A partir daí, segundo Willliams, “o processo geral de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético foi aplicado e, na prática, transferido para as obras e práticas que o representam e sustentam”. Em outras palavras, firma-se ali o sentido de “cultura” como um bem que alguns possuem e outros não. Esse sentido permanece conosco, quando dizemos que alguém é “culto” ou “tem cultura”. É uma acepção excludente da palavra, que com frequência ganha contornos, inclusive, aristocráticos.
Com a antropologia, no final do século XIX e, especialmente, no século XX, volta-se às raízes materiais do conceito de cultura, mas agora com ênfase na sua universalidade humana. “Cultura” passa a ser entendida como o conjunto de valores, crenças, costumes, artefatos e comportamentos com os quais os seres humanos interpretam, participam e transformam o mundo em que vivem. Nenhuma comunidade humana está excluída dela, embora, também com a antropologia, solidifique-se o processo que faz de “cultura” um adjetivo passível de ser usado no plural. As culturas humanas são múltiplas, diferentes, irredutíveis entre si e, acima de tudo, não são hierarquizáveis. Na acepção antropológica do termo, não há sentido em se falar de mais ou menos cultura, ou de culturas superiores ou inferiores a outras. Há uma veia radicalmente relativista na concepção antropológica de cultura, que se realiza em sua plenitude na obra de Franz Boas, mestre de Gilberto Freyre.
Nos debates sobre política cultural, é sempre instrutivo observar com qual sentido cada interlocutor usa o vocábulo “cultura”. Do ponto de vista antropológico, não teria sentido dizer, por exemplo, “levar culturapara o povo”, posto que qualquer povo está inserido em sua cultura—ele não seria povo sem ela. Mas é frequente que assim se designe a função dos Ministérios ou das Secretarias da cultura. Tampouco teria sentido, exceto na acepção excludente e aristocratizante apontada acima, falar de “produtores de cultura” como uma classe aparte, diferente daqueles que seriam seus meros consumidores. Mas não é incomum, em discussões sobre política cultural, a desqualificação de interlocutores como sujeitos que supostamente estariam “fora” da cultura ou que não seriam “da área” da cultura. Ora, não há seres humanos vivendo em sociedade que estejam fora da cultura.
O uso excludente do termo se reproduz quando se igualam os “produtores de cultura” à chamada “classe artística”. Essa é a sinédoque—redução do todo a uma de suas partes—que me parece mais daninha nas discussões sobre política cultural. A cultura é a totalidade das formas em que um povo produz e reproduz suas relações com os sentidos do mundo. Reduzi-la às indústrias cinematográfica, teatral e fonográfica é reeditar a exclusão segundo a qual alguns produzem cultura e outros a consomem. Implicitamente, é ignorar e desprezar o fazer cotidiano de milhões de brasileiros. Não há por que um pequeno conjunto de profissionais das citadas indústrias, concentrados principalmente em duas cidades brasileiras, se apresentarem como os representantes da área de responsabilidade do Ministério da Cultura. Essa redução atende a interesses nada republicanos e é incompatível com uma concepção democrática de cultura.
Um Estado que tivesse democratizado completamente sua concepção de cultura seria então, no limite, um Estado em que cineastas, atores e compositores não fossem percebidos como sujeitos da culturamais que pedreiros, domésticas ou camponeses. Seria um Estado em que a conversa jamais incluísse expressões como “pessoas que não são da área da cultura”. Seria um Estado onde a ideia de “levarcultura ao povo” não fizesse sentido. Seria um Estado que soubesse encontrar, valorizar e construir pontes entre os muitos fazeres culturais que já estão acontecendo em seu território. Seria um Estado onde fosse impensável que um agente do poder público se apresentasse como representante dos “criadores de cultura”, a não ser que com essa expressão o agente se referisse à totalidade dos que vivem sob a égide desse Estado. Seria um Estado que genuinamente captasse a cultura como a totalidade dos sentidos do fazer humano.
Mais que nomes, cargos, tendências, correntes e conchavos, os acalorados debates em torno do Ministério da Cultura que têm tido lugar no Brasil nos últimos meses são uma oportunidade para que se repense essa questão de fundo: qual é a compreensão de cultura que queremos, quais são as visões e conceitos de cultura que fazem justiça à nossa experiência como povo.
Este artigo é parte integrante da edição 99 da Revista Fórum.