Notas sobre um pensador marxista que alertou: a força das metrópoles está na reinvenção permanente da vida social, não na matemática dos planejadores
Por
João Telésforo em
Brasil em desenvolvimento
Em Brasília, admirei.
Não a niemeyer lei,
a vida das pessoas
penetrando nos esquemas
como a tinta sangue
no mata borrão,
crescendo o vermelho gente,
entre pedra e pedra,
pela terra a dentro.
Em Brasília, admirei.
O pequeno restaurante clandestino,
criminoso por estar
fora da quadra permitida.
Sim, Brasília.
Admirei o tempo
que já cobre de anos
tuas impecáveis matemáticas.
Adeus, Cidade.
O erro, claro, não a lei.
Paulo Leminski,
Ruinogramas, anos 1980
O “direito à cidade” foi pioneiramente concebido como tal por Henri Lefebvre, na obra-manifesto
Le droit à la ville, publicado poucos meses antes de maio de 1968. Lefebvre repudia a postura determinista e metafísica do urbanismo modernista: tem ciência de que os problemas da sociedade não podem ser todos reduzidos a questões espaciais, muito menos à prancheta de um arquiteto.
A crítica ao urbanismo positivista, porém, não se reduz à questão de que ignora os limites da capacidade de o planejamento racionalista abstrato transformar a realidade. Mais do que apontar a falência do resultado, Lefebvre repudia o caráter alienante da própria pretensão de tornar os problemas urbanos uma questão meramente administrativa, técnica, científica, pois ela mantém um aspecto fundamental da alienação dos cidadãos: o fato de serem mais objetos do que sujeitos do espaço social, fruto de relações econômicas de dominação e de políticas urbanísticas por meio das quais o Estado ordena e controla a população.
O Estado autoritário planificador pode até eventualmente resolver necessidades materiais como moradia e transporte, mas também priva as pessoas da condição de sujeitos da construção da sua própria cidade. No livro
Contra os tecnocratas, de 1967, Lefebvre critica inclusive os regimes do “socialismo real”, por se calcarem numa concepção produtivista que ignora que o direito à cidade não se realiza simplesmente pela construção de moradias e outros bens materiais, mas de uma sociabilidade alternativa à da sociedade burocrática – seja a de consumo, seja a planificada –, dominada por uma racionalização automatizadora que torna a vida cotidiana trivial, desprovida de sentido e autenticidade, mutiladora da personalidade.
Em oposição a essa perspectiva administrativista, Lefebvre politiza a produção social do espaço: assume a ótica dos cidadãos
[1] (e não a da administração), assentando o direito à cidade na sua luta pelo direito de criação e plena fruição do espaço social. Avança numa concepção de cidadania que vai além do direito de voto e expressão verbal: trata-se de uma forma de democracia direta, pelo controle direto das pessoas sobre a forma de habitar a cidade, produzida como obra humana coletiva em que cada indivíduo e comunidade tem espaço para manifestar sua diferença.
Sua realização só pode acontecer quando, confrontando a lógica de dominação, prevalece a
apropriação do espaço pelos cidadãos, sua transfomação para satisfazer e expandir necessidades e possibilidades da coletividade. Apropriação não tem a ver com propriedade, mas com o uso, e precisa acontecer coletivamente como condição de possibilidade à apropriação individual. Lefebvre verifica que é essa a forma de uso da cidade em períodos nos quais ocorre
produção do povo pelo povo, como na experiência da Comuna de Paris, quando os trabalhadores se reapropriaram do centro da cidade, após terem sido jogados para a periferia pelo planejamento haussmanniano.
Em vez da ciência e da técnica, Lefebvre propõe, assim, outro ator como protagonista do processo de transformação do espaço urbano: “[a] classe trabalhadora deve ser agente dessa luta. Aqui e ali ela nega e contesta, aqui e ali, a estratégia de classe dirigida contra ela”
[2]. O novo urbanismo idealizado por ele é o da utopia experimental, que parte dos problemas de lugares concretos, onde se desenvolvem relações sociais, e os submete à crítica e à imaginação de novas possibilidades. O papel da ciência é auxiliar, cabendo-lhe fazer a
crítica da vida cotidiana por meio da
análise do ritmo da vida diária das pessoas, e estudar as implicações e consequências das novas formas de apropriação inventadas pelos cidadãos.
Lefevbre pensa o espaço como “a inscrição do tempo no mundo”: os ritmos da população urbana definem o cotidiano, formado por uma multiplicidade de momentos, com diferentes durações: trabalho profissional, voluntário, descanso, arte, jogo, amor, luta, conhecimento, lazer, cultura… A nova sociedade urbana nascerá da alteração dos seus ritmos, de modo a propiciar o uso completo dos lugares, com plena fruição de direitos. Para tanto, é preciso contrariar o
status quo de segregação e uniformização do cotidiano (com hipertrofia dos momentos de trabalho alienado), por meio da contestação e da vivência concreta de experiências alternativas, mais espontâneas e autênticas, propiciadas, por exemplo, pela arte e por atividades lúdicas comunitárias, como festas e jogos no espaço público. Para Lefebvre, por meio dessas formas de contracultura, de primado da imaginação sobre a razão, da arte sobre a ciência, da criação sobre a repetição, é possível restaurar a cidade como
obra dos cidadãos.
Lutar pelo direito à cidade é romper com a sociedade da indiferença e caminhar para um modo
diferencial de
produção do espaço urbano
[3], marcado pelo florescimento e interação igualitária de diversos ritmos de vida, expressão das diferentes formas de apropriação do espaço. Avesso às “impecáveis matemáticas”, ao planejamento metafísico que pretende resolver em definitivo os problemas sociais e declarar o fim da história, a intervenção transformadora desse espaço é ciente de sua historicidade, procurando no tempo sua reconstrução cotidiana pelas tensões entre as experiências do real e as utopias construídas a partir delas.
Como no poema de Leminski, a luta – inclusive contra a lei, ou à margem dela – e a pluralidade das vidas das pessoas vão subvertendo os esquemas de redução da complexidade social, minando, aberta ou clandestinamente, a estratégia dominante de sufocar o aparecimento de diferenças autênticas e sua integração igualitária.
[1] Lefebvre distingue
citadins (todos os habitantes da cidade) de
citoyens (aqueles a quem o Estado reconhece a cidadania política), esclarecendo que o direito à cidade é de todos os seus habitantes, independentemente de seu reconhecimento legal como cidadãos. Nossa compreensão de cidadania extrapola o aspecto formal e estatal: reivindicamos a plena cidadania para todos os habitantes da cidade, e é por isso que aqui os chamamos todos de cidadãos, independentemente de serem ou não, em maior ou menor extensão, reconhecidos assim pelo sistema jurídico formal (ao qual tampouco reduzimos o direito).
[2] LEFEBVRE, 1996: p. 158.
[3] BETTIN, 1982: p. 118
*Este texto corresponde ao fragmento de um artigo escrito em co-autoria com Gabriel Santos Elias, disponível
aqui.