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Acompanhando por unanimidade um voto contundente, por vezes emocionante, e sem dúvida histórico do relator Ministro Celso de Mello, o STF ontem pôs um fim à possibilidade de que juízes brasileiros se utilizem do artigo 287 do Código Penal (“fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de crime”) para proibir a marcha da maconha – ou para proibir qualquer manifestação pacífica em defesa da descriminalização de qualquer substância ilícita. A arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 187 foi ajuizada pela Procuradora-Geral da República em exercício, Dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira. Compareceram, como amici curae, a Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos (ABESUP) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). A ADPF 187 recebeu em seu favor um sonoro 8 x 0 do plenário do STF. É o fim daqueles famosos mandados de segurança de sexta-feira à tarde, impetrados com o intuito de proibir manifestações pacíficas sem tempo hábil para o exercício do contraditório. Acabou, Reinaldinho. Acabou, TJ-SP. Acabou, Sr. Teodomiro Mendez. Ainda temos Carta Magna e há juízes em Brasília.
A fundamentação da Procuradora foi brilhante:
No espaço público brasileiro, assim como em diversos outros países, discute-se cada vez mais um tema de inequívoco interesse social: a criminalização das drogas. Em tão importante debate público, há um lado que defende a legitimidade e a eficiência da estratégia criminal no combate às drogas, enquanto outro pugna pela legalização, ou, pelo menos, de algumas delas.
Na presente ação, não se objetiva questionar a política nacional de combate às drogas adotada pelo legislador brasileiro. Almeja-se, isto sim, afastar uma interpretação do art. 287 do Código Penal que vem gerando indevidas restrições aos direitos fundamentais à liberdade de expressão (art. 5º, incisos IV e IX, e 220 CF) e de reunião (art. 5º, inciso XVI, CF).
(...)
Uma ideia fundamental, subjacente à liberdade de expressão, é a de que o Estado não pode decidir pelos indivíduos o que cada um pode ou não pode ouvir. (...).
Daí por que o fato de uma ideia ser considerada errada ou mesmo perniciosa pelas autoridades públicas de plantão não é fundamento bastante para justificar que a sua veiculação seja proibida. A liberdade de expressão não protege apenas as ideias aceitas pela maioria, mas também - e sobretudo - aquelas tidas como absurdas e até perigosas. Trata-se, em suma, de um instituto contramajoritário, que garante o direito daqueles que defendem posições minoritárias, que desagradam ao governo ou contrariam os valores hegemônicos da sociedade, de expressarem suas visões alternativas.
Mas foi o voto do Ministro Celso de Mello, de 58 páginas, que marcou a tarde com uma verdadeira aula de Direito Constitucional. Baseando-se num habeas corpus concedido pelo STF a Ruy Barbosa em 1919, que lhe assegurou o direito amplo e irrestrito de reunião em sua campanha presidencial, passando por decisão mais recente do STF, que julgou inconstitucional o Decreto 20.089/99, editado pelo Governador do Distrito Federal (proibindo manifestações em determinados lugares públicos, como a Praça dos Três Poderes), Celso de Mello enfatizou a vinculação de caráter instrumental entre a liberdade de reunião e o direito de petição. Ou seja, é a irrestrita liberdade de reunião que permite o próprio exercício da cidadania. Nenhuma interpretação enviesada do crime de apologia pode limitar esse direito.
A todos é lícita a reunião pacífica, sem armas, em qualquer lugar público, sobre qualquer assunto, sendo necessário apenas o aviso prévio (atenção: aviso, não pedido) a autoridade competente, disse o Ministro num dos momentos mais contundentes do seu voto. Não cabe à polícia limitar esse direito. A Carta da República é clara.
Aos opinólogos do jornalismo nacional, como Dora Kramer, que disseram que a decisão de ontem impediria o STF de criminalizar a homofobia, recomenda-se a leitura da página 48 do voto do Ministro:
É certo que o direito à livre expressão do pensamento não se reveste de caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico. É por tal razão que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, povo ou grupo social não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão.
Mesmo as limitações expressas pelo Ministro Luiz Fux ao acompanhar o relator --- de que o STF estipulasse que as manifestações devem ser pacíficas ou de que não se devem levar crianças – foram educadamente desconsideradas pelos veteranos da Corte, a primeira por óbvia, a segunda por ser, ora bolas, problema do foro íntimo de cada família.
Foi uma tarde-noite histórica para o Supremo Tribunal Federal.
Como disse o tuiteiro Emanuel Colaço, em linguagem simples e compreensível, e em resposta aos opinólogos da laia de Kramer e Reinaldinho Azevedo: Não entendo esse pessoal: como algo poderia vir a deixar de ser crime se tentar debater o crime for crime também?!?! Antes do início do julgamento no STF, eu comentava no Twitter que qualquer coisa menos que a unanimidade em favor da ADPF 187 seria vergonha. O jurista Túlio Vianna corroborava.
É o óbvio do óbvio. Mas, mais uma vez, precisamos do STF para firmá-lo em definitivo. Obrigado, Celsão.