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Fernando Ortiz (1881-1969) é o fundador dos estudos afro-cubanos e um dos maiores antropólogos da América Latina no século XX. Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar (1940), um primo de Casa-Grande e Senzala, permanece como o mais ilustre ensaio de identidade nacional de Cuba. Através de um jogo alegórico entre os dois principais produtos agrícolas da ilha, Ortiz vai tecendo uma imagem das oposições que atravessam a vida cultural do país. Como a trilogia de Freyre, o Contraponto de Ortiz faz uma antropologia ensaística, narrativa e cheia de atenção ao cotidiano. Mas também narra partes substanciais da história do país no processo.
Contraponto é conhecido, principalmente, por ter introduzido uma palavra no vocabulário das ciências humanas: transculturação. Por oposição ao termo “aculturação,” já então em voga na antropologia de língua inglesa, a teoria da transculturação não pressupõe que as culturas politicamente dominadas simplesmente se adaptem aos ditames da cultura dominante. Elas não se aculturam passivamente. Ao receber seu impacto, elas também influenciam o dominador. Inicia-se um processo de dinâmico, de trocas mútuas, no qual nenhuma das culturas envolvidas permanece idêntica. Pode parecer óbvio, mas não o era em 1940. Durante décadas, a antropologia colonialista havia trabalhado com o conceito de aculturação como modelo explicativo dos contatos culturais. É Ortiz quem rompe esse paradigma na América Latina, e o conceito de transculturação teria, depois dele, longa vida em várias disciplinas. Na crítica literária, por exemplo, Angel Rama escreveria um célebre livro sobre a transculturação, no qual estudou como José María Arguedas, Guimarães Rosa e Roa Bastos “transculturam” matrizes indígenas (Arguedas, Roa) ou orais mestiças (Rosa) em formas literárias sancionadas pela cultura letrada ocidental.
Mas é no contraste entre o tabaco e o açúcar que o livro demonstra sua grande originalidade. Trata-se de um jogo de oposições alegórico que funciona como fórmula poética para descrever um povo. Traduzidos aleatoriamente de vários trechos do livro, aí vai uma amostra. Observe-se como o tabaco e o açúcar se antropomorfizam, adquirem características que podem também ser extrapoladas para designar partes do povo. Para melhor compreensão do jogo, mantenha-se em mente que azúcar, em espanhol, é substantivo feminino.
"O tabaco nasce, o açúcar se faz. O tabaco nasce puro, como puro se fabrica e puro se fuma; para conseguir a sacarose, que é o açúcar puro, há que se percorrer um longo ciclo de complicadas operações fisioquímicas, só para eliminar impurezas de sumos e bagaços. O tabaco é escuro, de negro a mulato. O açúcar é claro, de mulato a branco. O tabaco não muda de cor, nasce moreno e morre com a cor de sua raça. O açúcar muda de coloração, nasce pardo e se branqueia. É mulata melada que, sendo preta, se abandona ao sabor popular e se empalidece e refina para passar por branca, chegar a todas as bocas e ser melhor paga, subindo às categorias dominantes da escala social.
O açúcar não cheira; o tabaco vale por odor e oferece ao olfato uma infinidade de perfumes. Do açúcar se assimila tudo, do tabaco muito se exala. O tabaco é desnecessário para o ser humano e o açúcar é indispensável para seu organismo. No entanto, o supérfluo tabaco chega a motivar um vício que atormenta se não é satisfeito e o necessário açúcar se resigna com menor dificuldade a aludir a sua presença.
No açúcar não há rebeldia nem desafio, e sim gozo calado, tranquilo. O tabaco é audácia sonhadora e individualista até a anarquia. O açúcar é prudência pragmática e socialmente integrativa. O tabaco é atrevido como uma blasfêmia; o açúcar é humilde como uma oração. Açúcar e tabaco foram filhos das Índias; mas aquele nasceu nas de Oriente, este nas Ocidentais. O açúcar teve seu nome do sânscrito, o tabaco ainda conserva seu nativo nome selvagem."
O primeiro capítulo de Contraponto cubano do tabaco e do açúcar, de onde retiro essas antinomias alegóricas, funciona como base para um ensaio sobre a história do país. Os traços encontrados nos dois produtos operam como dispositivos de interpretação dos encontros de raças e culturas, do sistema econômico, das quizumbas políticas. É antropologia da mais fina, que também se deixa ler como poesia.
Para ler, em português, o capítulo do Contraponto onde Ortiz desenvolve o conceito de transculturação, clique aqui. Para um estudo comparativo entre Ortiz e Gilberto Freyre, clique aqui.
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