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[caption id="attachment_165" align="alignleft" width="267" caption="José Enrique Rodó"][/caption]
Ariel, do uruguaio José Enrique Rodó, talvez seja o texto mais influente de toda a história do aparato educacional latino-americano. Na primeira metade do século XX, dificilmente se encontrará, na América Hispânica, prática pedagógica na área de ciências humanas intocada, de alguma forma, pelo breve opúsculo de Rodó. Dirigido à “juventude” da América, o título tem como mote A Tempestade, de Shakespeare. O escravo de Próspero, Calibán, seria o personagem preso aos interesses materiais, enquanto Ariel seria a figura espiritual, capaz de ir além dos interesses pragmáticos. A operação central do texto de Rodó é associar aquele ao materialismo anglo-saxão e este à vocação “cultural” da América Latina.
O conceito de cultura é chave em Ariel, e é compreendido de uma forma bem particular. Trata-se de uma concepção aristocrática de cultura como esfera do belo, da experiência estética e da atividade intelectual desinteressada. Para Rodó, os povos anglo-saxões teriam se enclausurado num materialismo estreito, num cálculo pragmático e instrumental. Os povos latino-americanos estariam em condições de contrapor a isso a herança genuína das civilizações clássicas. Rodó desenvolve um conceito aurático de cultura, ligado à “experiência verdadeira” da arte, por oposição à brutalidade massificada do cotidiano capitalista.
Há, portanto, uma crítica ao capitalismo em Rodó, mas ela é feita de um ponto de vista aristocratizante e culturalista. Rodó tem horror à “multidão” e à “vulgaridade”. Seu grande adversário é o utilitarismo, que ele via encarnado nos Estados Unidos. O texto é uma nítida reação à modernização, uma tentativa de determinar um novo espaço para o intelectual “desinteressado” e “estético”, em meio à massificação moderna. Daí os insistentes chamados de Rodó a uma existência total, na qual o indivíduo fosse um exemplar não mutilado da humanidade, em que nenhuma faculdade do espírito ficasse obliterada. Reitera-se, sistematicamente, a crítica conservadora à divisão do trabalho. Contra a “mísera sorte do operário”, Rodó evoca uma Grécia que “fundou sua concepção de vida no concerto de todas as faculdades humanas”.
Uma das máximas de Ariel--“quem distingue o feio do belo distingue o mal do bem”--denota uma clara escolha por Schiller, para quem a educação estética é um estímulo a todas as faculdades humanas, sobre Kant, que separava radicalmente a ética da estética, conferindo a esta uma autonomia absoluta. O que Rodó chama de “racional”, em Ariel, seria a possibilidade de recomposição dos trabalhos manual e intelectual, separados pela sobre-especialização moderna. Essa seria a verdadeira cultura, que permitiria ao indivíduo uma existência genuinamente “desinteressada”.
Como não poderia deixar de ser, Rodó mantém uma relação de profunda suspeita com a democracia. Ela reforçaria o “desconhecimento das desigualdades humanas” e a “substituição da fé no heroísmo” , em troca de uma “concepção mecânica de governo”. A crítica ao utilitarismo norte-americano passa também por aí: a “desorganização” e “caos” da democracia utilitarista nos levaria à “brutalidade abominável do número”. A importação dos padrões estadunidenses representaria, para Rodó, uma ameaça aos povos, à “originalidade insubstituível do seu espírito”.
Mesmo que claramente anti-democrático, Ariel também inspirou, durante décadas, uma linguagem anti-imperialista na América Latina. Ao contrário do que possa se pensar, a crítica ao imperialismo não passou sempre e necessariamente pelo vocabulário marxista. Publicado num momento em que os EUA acabavam de impor uma derrota militar à Espanha no Caribe e consolidavam uma política de invasões e interferências nos países latino-americanos, Ariel expressou, de forma meio tortuosa, uma resistência anti-imperial. O texto inspirou uma tendência poderosa no pensamento latino-americano, o arielismo, e constituiu a base de praticamente todas as Faculdades de Letras (e também de outras disciplinas) fundadas naquele momento na América Hispânica. Lido hoje, parece muito mais velho do que realmente é--os textos do cubano José Martí sobre “Nossa América”, por exemplo, anteriores a Ariel em uma ou duas décadas, nos parecem muito mais contemporâneos. Mas respingos de arielismo persistem em incontáveis comarcas do pensamento latino-americano e seus ecos se fazem ouvir em muitos usos atuais, por exemplo, do termo “cultura”. É um livro básico, inicial, para se entender a história da universidade latino-americana.
Para ler Ariel, de José Enrique Rodó, na íntegra, em edição da Biblioteca Ayacucho, clique aqui.
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A Biblioteca Latino-Americana da revista Fórum é uma coleção de introduções às principais obras do pensamento de nossos vizinhos, um acervo de referência sobre os grandes clássicos latino-americanos. A cargo de Idelber Avelar, a Biblioteca incluirá breves resenhas, compreensíveis para o leitor não-especializado, de textos clássicos de historiografia, teoria política, literatura e outras áreas. Quando possível, ofereceremos também o link à própria obra e a outros estudos disponíveis sobre ela.
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