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Mario Vargas Llosa passeia pelo mundo pontificando com aquela certeza típica dos arrogantes. Não titubeia ao apresentar o seu receituário de progresso a sociedades cuja realidade ele sequer se preocupa em estudar. Classifica seres humanos sob duas categorias, os perniciosos “populistas” e os ilustrados liberais, com a facilidade de um cozinheiro que separa o feijão sadio do podre. No máximo, concede que alguns dos “populistas”, como os brasileiros ou chilenos, são menos daninhos que outros, “radicais”, como os venezuelanos ou argentinos. Mesmo que lhe apontem o colapso do desregulamentado capitalismo financeiro estadunidense, o desastre das tentativas dos EUA de “levar democracia” ao Oriente Médio e o desmoronamento justo do país latino que seguiu o receituário — o México —, Vargas Llosa não hesita em sua crença na cantilena de que um mundo regido pelo Deus Mercado é o melhor dos mundos possíveis. Tem a certeza religiosa dos conversos. Reserva o termo “populista” para qualquer um que se atreva a questionar esse dogma e propor maior controle sobre as negociatas do andar de cima.
A 37ª Feira do Livro de Buenos Aires, que ocorrerá entre 20 de abril e 9 de maio, decidiu pela primeira vez convidar um escritor não-argentino, Vargas Llosa, para se dirigir a esse país de escritores. Mesmo que se conceda que méritos literários não lhe faltam (outra longa discussão, já que há tempos pouquíssima gente do meio toma o Prêmio Nobel como medida de excelência literária), alguma familiaridade com o contexto basta para entender que o convite não era inocente. A Fundação El Libro, organizadora da Feira, é uma entidade civil composta, entre outras, pela Federação Argentina da Indústria Gráfica, pela Câmara Espanhola de Comércio e pela Câmara Argentina do Livro, esta última responsável por um dos maiores escândalos jurídicos dos últimos tempos, o mandado judicial que obrigou o professor Horacio Potel a retirar da internet suas traduções de Jacques Derrida, de utilidade para milhares de alunos que não têm como comprar livros de teoria na Argentina. O convite a Vargas Llosa era uma clara cutucada no governo de Cristina Kirchner. É tradição que o chefe do Executivo argentino compareça à inauguração da Feira. A Fundação implicitamente obrigava a presidenta a comparecer a um evento cuja estrela seria um escritor que não se cansa de caracterizar o kirchnerismo como populista e autoritário.
Foi aí que Horacio González mordeu a isca. O diretor da Biblioteca Nacional, do grupo Carta Abierta, kirchnerista, enviou missiva ao presidente da Câmara do Livro, Carlos de Santos, em que manifestava estupefação ante o convite. A carta dizia que ele era “inoportuno”. Lembrava os ataques de Vargas Llosa aos “governos populares da região”, que “deformam muitas realidades e se prestam a justificar as piores experiências políticas do passado”. A carta conclui com um convite a que a conferência de Vargas Llosa, “que poderíamos escutar com respeito na dissidência" se realizasse “no marco da Feira, mas à margem de sua inauguração e que, para esse evento, como é de costume, se designe um escritor argentino”. Como se vê, não há “censura” a Vargas Llosa nem “veto” a seu nome, o que, aliás, o diretor da Biblioteca Nacional não está em condições de impor, posto que a Biblioteca nada tem a ver com a Feira.
Mas a carta deu, sim, o pretexto para que o escritor latino-americano com maior acesso à mídia do continente pudesse outra vez posar de censurado. Numa resposta publicada em El País — jornal de impacto infinitamente maior que os blogs que reproduziram a carta de González —, Vargas Llosa lembrava que só havia sido censurado na Argentina pela ditadura de Videla (observe-se a comparação!), distribuía epítetos de “piqueteiros intelectuais” ao Carta Abierta, apresentava a si próprio como representante da “cultura da liberdade”, repassava suas lições de terceira série sobre como o nacionalismo atravanca o desenvolvimento dos povos e avisava que, “diante da situação criada”, ele “não teria outra escolha” além de falar de política na Feira. Agora ele tinha que falar de política! Cristina Kirchner, cabeça política sagaz, percebeu a armadilha e solicitou a González a retirada da carta. González atendeu, mas o estrago já estava feito.
O debate tomou proporções enormes, como costuma ser o caso na Argentina. O blog coletivo Nación Apache contabiliza pelo menos duas dezenas de textos sobre o imbróglio, dos quais o mais agudo é o de Martín Kohan. Com a fina ironia dos grandes escritores, Kohan lembrou que, lamentavelmente, agora havia que se esmerar em amabilidades com Vargas Llosa: levá-lo a dançar tango, entupi-lo de carne argentina e comentar-lhe que San Martín, prócer da Argentina, também era o libertador do Peru. Os que deram o passo em falso, diz Kohan, tinham agora que fingir que algum debate civilizado e diplomático era possível com uma estrela midiática conhecida por não ouvir seu interlocutor.
O jornal, do grupo Prisa, de conhecidas ligações com Vargas Llosa, teve um papel lamentável. O fato é importante porque El País é frequentemente citado, entre círculos de esquerda brasileiros, como um bom antídoto às Vejas e Globos. El País mentiu aos seus leitores com a manchete “Diretor da Biblioteca Nacional veta Vargas Llosa”, como se González tivesse poder de veto sobre a Feira e como se a carta tivesse pedido isso. Elencou uma série de declarações de um único lado, como a do jornalista Jorge Fernández, que disse que se Borges [diretor da Biblioteca Nacional entre 1955 e 1973] “estivesse vivo, ele também não poderia abrir a Feira”, sem notar que o anti-peronismo é a única coisa que têm em comum Vargas Llosa e Borges — escritor que, aliás, nunca teve o menor interesse pela obra do peruano. Em outra matéria, “Presidenta intervém para frear o veto a Vargas Llosa”, o jornal falava de “perplexidade internacional” ante a ideia — falsa, como vimos — de que o peruano “pudesse ser vetado” na Feira. Com uma série de matérias editorializadas, El País foi um dos polemistas do imbróglio, de forma nenhuma um veículo equânime de informação sobre ele. Quem quiser um retrato do que foi essa polêmica, terá que visitar o Nación Apache. Ali estão os textos, de todos os lados que, não custa lembrar, são mais de dois.
Este artigo faz parte da edição 97 de Fórum.