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Ezequiel Martínez Estrada (1895-1964), ensaísta, poeta, contista e crítico literário, nasceu na província de Santa Fé e morreu em Bahía Blanca, província de Buenos Aires. Como a esmagadora maioria da intelectualidade de sua geração, foi anti-peronista. Durante os dois primeiros mandatos de Perón (1946-1955), foi privado de seu emprego em La Plata. Depois do golpe militar conhecido como “Revolução Libertadora”, foi nomeado professor extraordinário na Universidade Nacional do Sul, em Bahía Blanca. Em duas ocasiões, foi presidente da Sociedade Argentina de Escritores. Apesar das origens anti-peronistas, aproximou-se da esquerda depois da Revolução Cubana, e durante dois anos dirigiu o Centro de Estudos Latino-Americanos de Casa de las Américas, a principal instituição de política cultural da Revolução. Mas Martínez Estrada entraria mesmo para o cânone como o autor do principal ensaio de interpretação do ser argentino, Radiografia do Pampa, publicado em 1933.
É interessante comparar os mais celebrados ensaios de interpretação das identidades brasileira e argentina, publicados no mesmo ano. O contraste com Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, não poderia ser maior. Radiografia do Pampa recorre, com frequência, à figura do pecado original: qual seria a queda originária dos pampas? Qual é a origem da inautenticidade? Martínez Estrada arma sua resposta a partir da noção de vazio. A terra vazia seria o índice do desarraigo, da falta de raízes, da ausência de princípios e de ideais. Os pampas estariam marcados, de antemão, pelo signo do erro e da mentira: o artesão sem pão e o fidalgo empobrecido, ao ouvir relatos fabulosos, já mentiam no próprio ato de escutar.
A viagem originária foi feita sem nenhum ideal ou propósito em si. Não havia um projeto de povoar ou colonizar; a conquista mais se assemelhou a um saqueio. Os que vinham supunham que um dia regressariam à Europa e construíam suas viagens a partir de uma ilusória transitoriedade. Martínez Estrada apelida de “Trapalanda” esse país fictício imaginado pelos colonizadores. Trata-se do El Dorado dos tesouros ocultos, que nunca se concretiza. Na medida em que a realidade o lembra que ele está nos pampas, e não em Trapalanda, o homem americano adentra o rancor. Inaugura-se o ressentimento.
Enquanto que, na Europa, a posse da terra implicava emparentar-se com a história, nos pampas, para Martínez Estrada, ela significava apenas a posse de um bônus de crédito. Possuir, nos pampas, era possuir algo que seria preenchido. O valor era uma pura virtualidade, puro título, crédito, honra. Instalava-se aí o conflito e a contradição com a terra, posto que o colono vivia na projeção de uma Trapalanda futura, enquanto os pampas reais não têm tempo, história ou futuro. Vivem num presente perpétuo. Daí a consolidação da tradição bacharelesca, pois em vez de construir, o homem dos pampas fazia leis, preenchia papeis, enviava petições. Formulava um valor puramente jurídico e teológico, descolado da realidade.
O coitus interruptus funciona, para Martínez Estrada, como alegoria da fundação: as leis de Índias proibiam a formação de famílias com as indígenas, mas implicitamente incentivavam o concubinato. O ato é realizado de maneira incompleta, com pressa e desgosto. Os pouquíssimos que trouxeram mulheres também possuíam amantes, com frequência na própria casa. O desprezo pela mulher seria componente chave da história da América.
Os partidos políticos, para Martínez Estrada, não escapam a esse quadro. Buenos Aires estabelece laços com a Europa antes de enxergar o interior. O Estado se forma antes do povo, e os governos também são filhos da inautenticidade, já que suas origens estariam no espírito de rapina dos soldados da independência, condicionados a saquear, possuir, dominar. A ausência de pacto possível entre o colonizador e o índio geraria a desconfiança constitutiva do mestiço, treinado para farejar intenções e perseguir, suspeito, os rastros do não-dito por baixo das frases.
Toda a interpretação de Martínez Estrada da história argentina deriva desse diagnóstico. Rosas, o caudilho demonizado pela tradição liberal, seria apenas um sistematizador da barbárie, enquanto os democratas se divorciavam de todo o mundo real a sua volta para perseguir uma ideia abstrata. Terminaram sendo eles os bárbaros, buscando ideais de justiça, democracia e liberdade que não tinham qualquer solo comum ou possibilidade de diálogo com a realidade existente. A nossa barbárie, diz Martínez Estrada, foi sempre fomentada pelos sonhadores de grandezas.
Algumas das principais inspirações de Radiografia do Pampa—especialmente O Declínio do Ocidente, de Spengler—já não exercem a mesma influência de antes. Outras, como Totem e Tabu, de Freud, continuam sendo lidas e estudadas numa série de disciplinas. A retórica pessimista de Martínez Estrada pode soar anacrônica, mas resistem muitas de suas teses como, por exemplo, sobre o caráter hipertrofiado do Estado, construído a partir da ausência de lastro na realidade.
Para uma visualização parcial de Radiografia do Pampa, clique aqui. Para uma breve entrevista com o autor, clique aqui. Para ler na íntegra e no original Diferenças e semelhanças entre os países da América Latina, escrito já na época da aproximação do autor com a Revolução Cubana, clique aqui.
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