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Se lições podem ser tiradas dos dois primeiros anos da presidência de Barack Obama, uma das principais terá que ser esta: é impossível dialogar com um surto psicótico coletivo. Obama tem pago um altíssimo preço político por se eleger e governar baseado num projeto de diálogo com esse surto, estratégia que se ancora na tentativa de um debate racional e razoável (ao modo sonhado pela 'ética comunicativa' do pensador liberal Jürgen Habermas) com um interlocutor imaginário, sujeito político que não quer ser interlocutor, mas inimigo encarregado de aniquilar, eliminar, destruir o adversário. Os oito anos de governo de extrema-direita, a manipulação midiática dos ataques de 11 de setembro de 2001, a violenta crise econômica que explodiu em 2008 e a irrupção, mais forte que nunca, do racismo e da xenofobia contribuíram para a configuração de um quadro político verdadeiramente assustador nos Estados Unidos de hoje, do qual não há saída imediata à vista. O ataque terrorista no Arizona, em que seis pessoas foram assassinadas e a deputada democrata Gabrielle Giffords saiu ferida na cabeça, foi o mais recente capítulo desta macabra narrativa.
Até mesmo o leitor da Fórum deve ter se surpreendido com meu uso do termo “terrorista” na frase anterior. Apesar de consistente com o sentido que a palavra classicamente teve —matança indiscriminada, por motivos políticos, de uma população civil desarmada, com o objetivo de disseminar o medo —, o uso do termo “terrorista” para designar eventos como os de Tucson tenderá a provocar estupefação hoje em dia, por um motivo dos mais simples e prosaicos. A manipulação a que foi submetido esse termo nos EUA ao longo da última década nos levou a uma situação em que a violência de extrema-direita, tão estadunidense como a torta de maçã, já não cabe sob a alcunha do terrorismo. Esta se encontra definitivamente reservada para o “outro” — em especial para o outro árabe.
Enquanto isso, uma retórica delirante se fortalece em setores dos meios de comunicação de massas e no Partido Republicano. A partir das assembleias populares (town hall meetings) propostas por Obama para a discussão da reforma do sistema de saúde, em 2009, a retórica de extrema-direita encontrou terreno fértil. A caracterização de Obama como nazista, bolchevique e islamista — para ficarmos em três definições obviamente contraditórias entre si — já é parte da paisagem, do discurso político aceito como normal e razoável nos EUA. Os questionamentos ao patriotismo de Obama, nos quais um visível racismo não deixa de cumprir seu papel, também são matéria cotidiana na TV e no rádio dos EUA. O discurso do ódio ao diferente, tão típico dos impérios em declínio, pavimenta o caminho para tragédias como a de Tucson.
Em abril de 2009, Richard Poplawski, um extremista antigoverno, assassinou três policiais e feriu outros dois em Pittsburgh. Ainda em abril do mesmo ano, no condado de Okaloosa, na Flórida, Joshua Cartwright matou um policial, movido pela alucinação de que o governo de Barack Obama estava conspirando contra ele. John Patrick Bedell, outro crente em teorias da conspiração, feriu dois policiais em março de 2010 antes de ser abatido. Em fevereiro de 2010, Joseph Stack, com ódio do governo federal, lançou seu jatinho particular contra o prédio da Receita em Austin, matando a si próprio e duas outras pessoas. Limito-me aqui a listar alguns incidentes envolvendo ataques a funcionários do governo e delirantes teorias acerca de seu funcionamento.
É verdade, como apontaram Paul Krugman, no New York Times, e também Maurício Santoro, em seu excelente blog (http://todososfogos.blogspot.com), que não se pode traçar uma simples relação de causa e efeito entre a retórica da extrema-direita e da mídia americanas e os atentados terroristas como o de Tucson. Mas dizer isso não é dizer muito, pois quando se trata de fatos sociais, não se pode estabelecer uma relação simples de causa e efeito entre nada e nada. O fato é que ao longo dos últimos oito anos, foi se criando nos EUA um clima de intolerância, demonização do outro (particularmente do outro árabe/muçulmano), patriotismo cego e beligerante que, aliado à tradicional fetichização das armas no país, colocaram o antagonismo político sem condições de se expressar na pólis, a não ser como guerra. Apesar de concordar com Krugman e Santoro, não posso deixar de observar que o Tea Party organiza e canaliza o velho fanatismo salvacionista norte-americano, e o dirige contra Obama. Não há relação causa-efeito, mas um clima político em que a demonização e os chamados à eliminação do outro são discurso aceitável termina criando um solo fértil para ataques como o de Tucson.
Como notou Maurício Santoro, a ironia do caso é que a deputada está bem longe de ser uma liberal esquerdista. Ela é defensora do porte de armas e divergiu de Obama em várias questões, inclusive na reforma do sistema de saúde. Mas sua oposição às novas, draconianas leis antiimigração no Arizona foi suficiente para que fosse percebida por setores da direita antigoverno como inimiga a ser abatida.
O fato é que, qualquer que seja a evolução do quadro político americano no futuro próximo, fracassou a aposta de Obama por um espaço de interseção e diálogo com a extrema-direita. Irritados pelo excesso de conciliação do presidente com forças políticas claramente dedicadas a destruí-lo, os setores de esquerda (especialmente jovens e afroamericanos) que o elegeram em 2008 ficaram em casa nas eleições legislativas de 2010. Começava ali a ruir o mito de que a única alternativa para o Partido Democrata seria a conquista do centro político. Não foi a perda do centro, mas da esquerda, que derrotou Obama em 2010. Não há lição mais clara das legislativas de 2010 nos EUA: a retórica do ódio só poderá ser combatida efetivamente com participação das forças políticas à esquerda do centro. Resta saber se elas encontrarão voz no engessado quadro bipartidário estadunidense.
Este artigo é parte integrante da Edição 95 da revista Fórum.