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Nos próximos dias, circulará na imprensa uma carta aberta de alguns historiadores argentinos, aos quais se somou também este blogueiro, expressando preocupação com a fundação do Instituto Nacional de Revisionismo Histórico Argentino e Iberoamericano Miguel Dorrego. No Brasil, o ato foi objeto de matérias sensacionalistas na Globo News e na Revista Veja, destinadas unicamente a desferir um ataque rasteiro contra Cristina Kirchner. A matéria da Veja, em particular, contém tantos erros que não valeria a pena elencá-los aqui. Como vivemos, no entanto, num período em que os simplismos da mídia parecem fadados a justificar simplismos reativos em muitos críticos da mídia, me pareceu que valia a pena traduzir e divulgar o documento aquí, para sublinhar o fato de que também na historiografia independente o ato foi recebido com preocupação.
Antes disso, cabem dois esclarecimentos: na Argentina, a palavra “revisionismo” tem um sentido bastante preciso. Ela designa a escola historiográfica que, desde os anos cinquenta, questionou a versão dominante acerca do século XIX, segundo a qual as guerras civis teriam expressões de um antagonismo entre ditadores (Facundo, Rosas) e democratas (Sarmiento, Mitre). O revisionismo reescreve essa história para enfatizar os vínculos populares dos caudilhos e os compromissos dos liberais com o projeto dominante, de inserção da Argentina no capitalismo global como sociedade agro-exportadora e sócio menor. “Revisionismo” não é, portanto, uma invenção de Cristina Kirchner. Ao contrário do que afirma a matéria da Revista Veja, Cristina não “quer transformar” a historiografia em campo de batalha política. Na Argentina, mais que em qualquer outro lugar de que eu tenha notícia, a historiografia sempre foi um campo de batalha política, muito especialmente desde os anos cinquenta.
Mas isso não invalida o fato de que a fundação do Instituto, nos termos em que ela se deu, é, sim preocupante. Para esclarecer, traduzo abaixo a carta assinada inicialmente por Mirta Zaida Lobato, Hilda Sábato e Juan Suriano, três historiadores respeitadíssimos no país. Essa carta ainda está recebendo assinaturas de outros estudiosos argentinos. A Fórum divulga o documento em primeira mão.
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Sobre a criação do Dorrego
O Poder Executivo Nacional acaba de criar, por decreto, o Instituto Nacional de Revisionismo Argentino e Iberoamericano Manuel Dorrego. Como se afirma no preâmbulo da medida, o seu propósito "será estudar, pesquisar e difundir a vida e a obra de personalidades e circunstâncias destacadas da nossa história que não receberam o reconhecimento adequado em um ambiente institucional de natureza acadêmica, de acordo com as rigorosas exigências do conhecimento científico”. Entre estas figuras, se incluem Dorrego, San Martín, Guemes, Artigas, Rosas, Yrigoyen, Juan Perón e Eva Perón, além de alguns personagens de outros países latino-americanos.
Acrescenta-se que o Instituto se dedicará à "reivindicação de todas e todos que ... defenderam o ideário nacional e popular ante o embate liberal e estrangeirizante dos que têm sido ... seus adversários". E, segundo o artigo 1o, se revisará “o lugar e o sentido que lhes foram concedidos pela história oficial, escrita pelos vencedores das guerras civis do século XIX”. Ante esta medida e ante os motivos que a fundamentam, os abaixo assinados expressamos nossa profunda preocupação em torno aos seguintes pontos:
A primeira observação revela um absoluto desconhecimento e uma desvalorização preconceituosa da ampla produção historiográfica que ocorre no contexto das instituições científicas do país-- universidades públicas e privadas, organismos dependentes do CONICET, entre outros--, onde centenas de pesquisadores trabalham com a história, seguindo as diretrizes que impõe essa disciplina científica, mas também respondendo a diversas perspectivas teóricas e metodológicas. Nos últimos 30 anos, a historiografia argentina produziu conhecimento abundante sobre diferentes períodos, processos e figuras, incluindo todas aquelas mencionados pelo decreto como "negligenciadas".
Com todo o peso do Estado, o Instituto foi criado para promover um discurso oficial sobre o passado. Ele resgata uma corrente específica, o revisionismo, que em meados do século XX ofereceu interpretações novas sobre a história da Argentina mas que, como a corrente "liberal", não satisfaz os critérios atuais que norteiam a disciplina. Esta desenvolveu instrumentos de análise complexos, que resistem ao reducionismo próprio dessas correntes, cujo objetivo central era a construção de heróis e vilões. Esta abordagem maniqueísta, que o Instituto adota, não admite a dúvida e a interrogação, que constituem as bases para construir, sim, "conhecimento científico".
Através desta medida, o governo nacional revela sua vontade de impor uma maneira de fazer história que responda a uma única perspectiva. Assim, desconhece-se não só como funciona essa disciplina científica, mas também um princípio fundamental para uma sociedade democrática: a vigência de uma pluralidade de interpretações sobre o seu passado.
O Poder Executivo do momento tem o direito de apresentar sua própria visão do passado do país, mas criar uma instituição estatal cuja finalidade é impor uma forma ultrapassada de fazer história e uma visão maniqueísta desse passado constitui um fato grave que, sem dúvida, conspira contra o desenvolvimento científico e a circulação de várias perspectivas historiográficas, ao mesmo tempo em que se move na direção da imposição de um pensamento único, uma verdadeira história oficial.
Mirta Zaida Lobato, Hilda Sábato e Juan Suriano.