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A passagem do governo Lula ao governo Dilma, supostamente de continuidade estrita, poderia ser resumida numa frase: naquele, havia três ministérios, o da Cultura, o da Natureza (Meio Ambiente) e o do Mercado (ou seja, todos os outros), enquanto que no governo Dilma restou este último, o Ministério do Mercado. A Cultura foi entregue à indústria do copyright e da propriedade intelectual e já não há, propriamente falando, um Ministério do Meio Ambiente capaz de se opor minimamente à sanha desenvolvimentista ancorada no barragismo e na expansão da fronteira agrícola. Estes processos--a intensificação da colonização da Amazônia e a interrupção da promoção de uma ética hacker do compartilhamento na cultura--poderiam sugerir que há uma ruptura radical entre o governo Lula e o governo Dilma. Não é o caso, e sugeri-lo seria falso com os fatos e injusto com a atual Presidenta. Mas o governo Dilma teve, nestes primeiros onze meses, o mérito e o demérito de tornar visível o que já era problemático no próprio governo Lula, e que permanecia relativamente encoberto sob o tremendo carisma, a notável inteligência política e os não desprezíveis sucessos de Lula na área social. Este texto trata dessa passagem, em que se conjugam a continuidade e a ruptura num momento crítico do capitalismo brasileiro.
O lulismo é o mais bem-sucedido pacto de classes da história do Brasil. Só Getúlio Vargas é comparável em ganhos reais para a classe trabalhadora sem ameaça substancial ao status quo das classes dominantes. O primeiro mandato de Lula foi marcado pelo ajuste fiscal, a ortodoxia monetária e a reforma da Previdência, que indispuseram o governo com sua base de esquerda e geraram a ruptura no PT que daria origem ao PSOL. Pouco a pouco, no entanto, a receita keynesiana se juntaria à ortodoxia monetarista e fortes investimentos em infraestrutura, expansão do crédito, programas de transferência de renda e aumento do poder de compra do salário mínimo--que teria um ganho real de 70% durante os dois mandatos de Lula--, acompanhados de iniciativas focalizadas (como o ProUni, que levou centenas de milhares de jovens pobres à universidade através de um programa de bolsas que transfere dinheiro público para o ensino privado), sentariam as bases da emergência de um “capitalismo popular”, como o denominou Gilberto Maringoni. A sua característica central é a integração das classes populares ao universo do consumo com ganhos reais, combinada com a manutenção de uma muito mais brutal transferência de riqueza para os rentistas da dívida pública, através de altíssimas taxas de juros. A distribuição de renda entre os assalariados melhora, mas a participação do salário na renda nacional não se altera significativamente. Segundo dados do IPEA, essa participação alcançou um pico de 50% no final dos anos 50, chegou a 35,2% em 1995 e caiu paulatinamente durante o governo Fernando Henrique Cardoso, até o piso de 30,8% em 2004, recuperando-se de forma tímida sob Lula, para um patamar de 34% em 2010.
Quando se inicia a campanha eleitoral de 2010, o Brasil já havia retirado 29 milhões de pessoas da pobreza e Lula desfrutava de uma popularidade superior a 80%. A oposição, perdida entre dois discursos contraditórios—por um lado afirmar que o lulismo era uma mera continuação de Fernando Henrique, portanto desprovido de méritos próprios e, por outro, pintar o lulismo como responsável por corrupção e aparelhamento inéditos--, recorreu ao gorilismo e ao fundamentalismo religioso como estratégias desesperadas de campanha, incompatíveis até mesmo com a história de seu candidato. José Serra, afinal de contas, havia sido líder estudantil nos anos 60, fora ligado à Cepal nos anos 70 e, ao longo dos anos 80, vinculou-se à ala estatizante e desenvolvimentista do PMDB, não tendo qualquer histórico de aproximação com a extrema-direita e não sendo, ele mesmo, um homem de fé. A campanha, no entanto, foi de fanatismo religioso jamais visto nas eleições presidenciais brasileiras. A responsabilidade aqui cabe à coalizão liderada por José Serra, que tentou mobilizar, especialmente, o sentimento anti-aborto da maioria da população brasileira. Mas a coalizão liderada por Dilma Rousseff tampouco está isenta de culpa, na medida em que não politizou o debate e preferiu levar também sua candidata a uma peregrinação por igrejas, em vez de insistir no fato de que a única relevância do tema religioso numa eleição se limita à garantia de que o Estado manterá a liberdade de culto. Essa atitude terá o seu impacto no próprio governo iniciado em 01 de janeiro de 2011.
Dessa ofensiva religiosa desatada durante a campanha, as maiores vítimas durante o governo Dilma têm sido gays e lésbicas. Uma onda de ataques homofóbicos em todo o país, com espancamentos e mortes de gays, lésbicas, travestis e transsexuais, tem sido a tônica quase diária em 2011. O material didático anti-homofobia que seria adotado pelo governo federal nas escolas do país, depois de torpedeado pela bancada teocrata do Congresso, foi retirado de circulação pelo governo. Pior, a Presidenta deu uma lamentável entrevista em que afirmava que “o governo não permitirá propaganda de opção sexual”, como se nesta matéria lidássemos com “opção”, como se um material de conscientização acerca da homofobia fosse “propaganda” de orientação homossexual e como se, de qualquer forma, fazer propaganda de orientação sexual fosse possível ou efetivo. O Projeto de Lei 122, de autoria de Iara Bernardi, modificado por Fátima Cleide e relatado pelaSenadora Marta Suplicy (PT-SP), que tipifica o crime de discriminação por orientação sexual, tem sido bombardeado pela bancada teocrata com o argumento de que ele fere a “liberdade de culto”, e é visível o descompromisso do governo com sua defesa. Uma série de iniciativas de governos petistas, como o estadual do Acre e o municipal de Betim (MG), tem incluído a construção de Parques Gospel ou Batismais com verbas públicas, em flagrante contradição com a Constituição Federal. O país vive hoje uma perigosa ofensiva teocrata, em meio à qual não só gays e lésbicas, mas também os membros das religiões afro-brasileiras têm sido vítimas de constantes ataques físicos, morais e imobiliários das forças teocratas.
Talvez os dois mais significativos retrocessos de início de governo tenham se dado nas áreas de segurança pública e cultura. Naquela, a ruptura aconteceu aos 21 dias, com a demissão do Secretário Nacional de Política sobre Drogas, Pedro Abramovay, que simplesmente defendeu, numa entrevista a O Globo, a mais sensata das propostas: a possibilidade de penas alternativas a pequenos traficantes não violentos, conjugadas com outras políticas de prevenção e tratamento para viciados. Basta ler a entrevista para ver que Abramovay não defendeu nada que se assemelhasse a um “liberou geral”. O então Secretário, inclusive, enfatizou que, entre os extremos da “guerra contra as drogas” e a legalização, há um amplo leque de opções. Não foi cowboy o suficiente para o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo que, com o apoio da Presidenta Dilma, decepou-o antes que ele completasse um mês no novo governo. Dali em diante, o Brasil só reforçou seu descompasso com outros países, como Portugal e Argentina, que têm experimentado políticas mais inclusivas e inteligentes, menos histéricas, proibicionistas e militarizadas para o problema das drogas. Não há horizonte de avanços nesta questão, e a visão escolhida pela Presidenta Dilma parece ser uma réplica da estratégia fracassada do Partido Democrata dos EUA na questão da segurança: tentar parecer mais cowboy, proibicionista e linha dura que a própria direita. É exatamente o que o Brasil, cuja população carcerária triplicou entre 1995 e 2010 e já é maior que capitais como Aracaju ou Cuiabá, não precisa.
No caso do Ministério da Cultura, a ruptura foi ainda mais visível e abrupta. Um dos traços inegáveis da gestão de Gilberto Gil e, depois, de Juca Ferreira, havia sido retirar a discussão acerca de qual conteúdo privilegiar--debate histórico da esquerda brasileira—e enfocar-se na criação de condições políticas, econômicas e jurídicas para a circulação de cultura produzida pelos próprios sujeitos populares, independente de seu conteúdo. O apoio ao modelo Creative Commons de compartilhamento e ao software livre, iniciativas como a Casa de Cultura de Digital e, muito especialmente, os Pontos de Cultura revolucionaram a relação entre Estado e cultura. O MinC Gil/Juca rompe com outro velho dogma da esquerda: trata a produção cultural em diálogo com as novas tecnologias, sem demonizá-las. Entende que não é possível pensar uma política cultural de esquerda sem uma compreensão renovada do papel do audiovisual, da internet, das novas técnicas de reprodutibilidade digital. Entende também que não é papel do Estado estabelecer distinções entre a cultura que seria autenticamente brasileira e aquela que não o seria. Nesse sentido, foi o primeiro ministério da cultura do país que incorporou as lições do tropicalismo. Além disso, o MinC Gil / Juca abandona de vez o dirigismo tradicional da esquerda e, ao invés de trabalhar com a ideia de “levar” cultura à sociedade, estabelece a concepção de que a cultura já está sendo produzida pelos sujeitos sociais. O que há que se fazer é criar teias, redes, possibilidades de circulação. O MinC Gil / Juca também questiona o terreno reservado à cultura como adorno beletrístico e passa a colocar em xeque os seus sustentáculos econômicos — daí o projeto de revisão da lei de direitos autorais, que se choca diretamente com os interesses do lobby das patentes e da propriedade intelectual. Com uma multiplicidade de fóruns, consultas públicas, congressos e encontros, o Ministério gera uma massa crítica que se sente cada vez mais incluída, cada vez mais agente do movimento vivo da política cultural.
Na transição para o governo Dilma, através de canais do próprio PT, se articulam os setores hegemônicos da cultura que haviam sido preteridos pela revolução Gil / Juca: membros da chamada “classe artística” (metonímia que designa, nestes debates, a indústria fono-cinematográfico-teatral do Rio de Janeiro e de São Paulo, descolocada por uma concepção nova, antropológica de cultura), apparatchiks da máquina burocrática do PT e a indústria do copyright e da propriedade intelectual, que teve seus interesses contrariados na gestão anterior. Esses setores convergem em torno do nome de Ana de Hollanda, cantora e compositora que, como figura pública, até então era inexpressiva. Houve articuladores de seu nome que contaram com isso para aceder depois ao cargo. Isso acabou não acontecendo (pelo menos até agora) e o MinC imediatamente se lançou à desmontagem do legado de Gil / Juca. O projeto de flexibilização dos direitos autorais, que havia passado por seis anos de debate no governo Lula, recebido mais de 7500 contribuições e sido tema de dezenas de reuniões e seminários em todo o país, foi abortado. A licença Creative Commons no site do Ministério, um gesto simbólico de profunda importância da gestão anterior, foi substituída pela marca do copyright. O ECAD, a malfadada agência arrecadadora de direitos autorais que atua com total impunidade e falta de transparência, exercendo poder draconiano sobre a execução de canções até em festas de aniversário e consultórios de dentista, passou a ter peso significativo no Ministério, e o objetivo de regulá-la, já encaminhado na gestão Gil / Juca, ficou cada vez mais longínquo. Um dos maiores especialistas em direitos autorais do Brasil, Marcos Souza, foi demitido da Diretoria de Direitos Intelectuais e substituído por uma advogada ligada ao lobby da propriedade intelectual, Marcia Barbosa. No Ministério da Cultura, o quadro é de espantoso retrocesso.
Mas nenhuma área emblematiza tão dramaticamente o contraste entre o ideário original do PT e o plano do governo Dilma como o trato à Amazônia. É verdade que aqui há muito mais continuidade que nos outros dois exemplos. Pese à atuação de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, entre 2003 e 2008, anos durante os quais se conseguiu uma redução significativa no desmatamento, já em 2005, com a chegada de Dilma Rousseff à Casa Civil, se consolidava no governo a concepção desenvolvimentista no trato com a Amazônia. É dessa data, e de responsabilidade de Dilma, a ressurreição do mais polêmico e devastador projeto da atualidade no Brasil, a usina hidrelétrica de Belo Monte, uma mega-barragem no Rio Xingu que foi inicialmente concebida em 1975, pela ditadura militar. Tomada como questão de honra pela Presidenta, que se recusa a ouvir indígenas, lavradores e ribeirinhos afetados, a obra foi inicialmente orçada em R$ 4,5 bilhões. Hoje, ela já se encontra oficialmente em R$ 26 bilhões, com estimativas de que não sairá por menos de R$ 32 bilhões, 80% dos quais é dinheiro público. A implantação do projeto tem sido marcada por irregularidades jurídicas, com dispensas de licitação legal, ausência de oitivas às populações indígenas afetadas, condicionantes ambientais não cumpridas, bizarras jaboticabas não existentes no marco regulatório (como a “licença parcial” e a “licença temporária) e intensas pressões sobre o Ibama, que levaram, inclusive, ao pedido de demissão de seu Presidente, Abelardo Bayma Azevedo, para a nomeação de um substituto mais dócil ao projeto, Curt Trennepohl.
Uma enorme bibliografia escrita por especialistas em energia, como Oswaldo Sevá, da UNICAMP, que estuda o projeto há 23 anos, Procuradores da República, como Felício Pontes Jr., do Ministério Público Federal no Pará, antropólogos do quilate de Eduardo Viveiros de Castro e jornalistas e lideranças populares da região já demonstrou que a grande beneficiária do projeto não é a população brasileira, mas a indústria do alumínio; que haverá extinção ou diminuição expressiva de espécies de peixes no Xingu, causando insegurança alimentar para os indígenas, ribeirinhos, extrativistas e trabalhadores rurais da região; que a majestosa Volta Grande vai secar; que os povos navegadores e pescadores da região terão suas vidas tragicamente afetadas. Todos os estudos demonstram que os Juruna, da Comunidade Paquiçamba, estavam corretos quando previram, dez anos atrás: “vamos ficar sem recursos de transporte, pois onde vivemos vamos ser prejudicados porque a água do Rio vai diminuir, como a caça, vai aumentar a praga de carapanã com a baixa do Rio, aumentando o número de malária, também a floresta vai sentir muito com o problema da seca e a mudança dos cursos dos rios e igarapés”. Altamira já vive hoje uma situação caótica, de migração descontrolada e aumento significativo das taxas de criminalidade, incluindo-se abundante violência sexual contra crianças.
Sabendo-se que o atual paradigma de formação de superávit comercial às custas da expansão da fronteira agrícola é concentrador e, a medio prazo, insustentável e suicida, como articular a urgente mensagem ambiental num contexto em que o ufanismo do “Brasil potência” a torna particularmente impopular? Quem será capaz de articular pontes entre o ambientalismo e o combate à desigualdade social, de tal forma que a nova Classe C seja permeável à urgente mensagem de que fazer hidrelétricas e exportar soja até a água e o solo acabarem não é exatamente um bom plano? Como fazer o balanço de um momento histórico em que o PT parece ter perdido em definitivo o compromisso com os movimentos sociais mais independentes na defesa dos pobres, levando de roldão uma militância já convertida em apparatchiks em visível processo de fanatização? Como conter o assustador avanço teocrata se um governo supostamente de esquerda faz a ele todas as concessões possíveis? Como elaborar uma política de genuíno respeito e carinho pela Amazônia em meio a tantas violências cometidas contra ela, com a ação e/ou a cumplicidade do governo? Não seria este o momento ideal para se questionar a mitologia do “Brasil potência” que emerge e ouvir, por exemplo, a mensagem do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) em favor de um modelo de sociedade menos predatório, menos arrogante, menos grandioso mas, no fundo, mais feliz? Tenho a convicção de que sim, embora tenha também a suspeita de que não vai acontecer.