A Subsecretaria de Políticas para a Mulher de Campo Grande (Semu), no Mato Grosso do Sul, recebeu um relatório de 300 páginas, em março de 2020, que apontava necessidade de melhorias na Casa da Mulher Brasileira. Elaborado por cinco pesquisadoras, o documento destacava a importância da capacitação contínua para policiais e servidores, além da criação de estratégias para integrar os serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência na região.
No entanto, a suspeita é de que esses pontos de melhoria não tenham sido implementados na CMB. No dia 12 de fevereiro, a jornalista Vanessa Ricarte, de 42 anos, foi mais uma vítima de feminicídio em Campo Grande, e tinha relatado descaso na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) horas antes de ser morta a facadas. Na gravação, obtida pelo site G1, a jornalista afirmou ter ficado "bem impactada" com o atendimento da Deam. Leia mais nesta matéria da Fórum.
“Em resposta ao alarmante número de cinco feminicídios em apenas um mês no estado de Mato Grosso do Sul, queremos chamar a atenção para a instituição Casa da Mulher Brasileira, instituição para a qual prestamos consultoria, que resultou não só na avaliação dos serviços da CMB de Campo Grande, mas também em uma série de sugestões que visam evitar mais tragédias como o feminicídio de Vanessa Ricarte”, destaca o grupo de mulheres, feministas e pesquisadoras formadas nas áreas de Antropologia, Direito, Jornalismo, Psicologia, Sociologia em carta.
O edital de licitação para a contratação de uma empresa de consultoria e monitoramento para a Casa da Mulher Brasileira foi publicado no Diário Oficial em outubro de 2017. A empresa vencedora foi anunciada em abril de 2018, também por meio de publicação oficial. A responsável pela elaboração do documento foi a empresa Domingos Glória de Araujo ME, do Tocantins, com a execução do trabalho sendo realizada pelas pesquisadoras Carlota Philippsen, psicóloga; Karla Waleska Melo, cientista social; Pauliane Amaral, jornalista e doutora, além de irmã da musicista Mayara Amaral, vítima de feminicídio; Priscilla Anzoetegui, antropóloga; e Solange Gandur Dacach, socióloga, entre outubro de 2018 e outubro de 2019.
Pesquisa com todas as profissionais
A Fórum conversou com uma das pesquisadoras que coordenaram a consultoria, a socióloga com experiência no desenvolvimento de políticas de enfrentamento da violência contra a mulher, Solange Dacach. Segundo ela, foram recomendadas melhorias e a necessidade de conexão entre alguns setores na época.
“Quando recomendamos melhorias para os setores, não veio da nossa cabeça. Foi interativo, dinâmico, de escuta, os profissionais e as gestoras trocaram conosco”, afirmou.
“Tinha uma necessidade e uma demanda para que o próprio sistema, o sistema computador, que circula por toda a casa, fosse mais integrativo, tivesse informações mais rápidas, que algumas variáveis fossem incluídas. Todas as pessoas da Patrulha Maria da Penha, os profissionais todos, Polícia Militar foram ouvidos, todas as assistentes sociais e psicólogas do psicossocial foram ouvidas, as profissionais assessoras da juíza e assessoras da Defensoria Pública”
'Mergulho' no sistema Iris
Foi analisado com todas as profissionais responsáveis a operação do Sistema Iris, que foi integrado ao protocolo do Ministério da Mulher durante a gestão Dilma Rousseff, e tem a função da coleta de dados, segurança e eficiência no gerenciamento das informações da Secretaria da Mulher. "Foi uma das grandes iniciativas de Dilma, pensar em alternativas para que as mulheres não precisassem enfrentar a via sacra burocrática e onerosa, especialmente aquelas sem recursos, para buscar justiça."
O trabalho não apenas avaliou os serviços ali prestados pelos inúmeros órgãos estaduais e municipais. Alguns itens preconizados no Edital levou as pesquisadoras a organizarem e sistematizarem os registros históricos e dados existentes, que resultaram na História da CMB: “História do Tempo Presente: A Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande/MS”.
“Diante do que vimos, ouvimos, sentimos, propusemos, recomendamos, nos perguntamos: o que realmente foi feito para a melhoria do atendimento? Por que a morte de Vanessa Ricarte não foi evitada? Por que uma mulher que precisou fugir do cárcere privado para pedir ajuda foi morta horas depois de solicitar medida protetiva na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM)? A culpa não é da DEAM ou das delegadas que ali trabalham, como alguns acreditam, mas de toda uma falta de ajustes, que uma instituição”, reforçam as pesquisadoras em comunicado.
Dacach destaca que, ao elaborar o material informativo, foram priorizados três temas: um sobre a Lei Maria da Penha, outro sobre o conceito de gênero, e um terceiro sobre o fluxograma da Casa da Mulher, que foi repensado em conjunto com as profissionais. “Promovemos um grande seminário com expertise, mulheres do Brasil inteiro que têm experiência na questão da mulher, não só do atendimento, como da pesquisa, antropólogas, sociólogas, advogadas, educadoras, artistas. Fizemos um seminário muito grande, e, nele, todas as profissionais lá dentro foram convidadas”, conta a socióloga.
Ela também comenta que é preciso seguir incentivando a educação e o cuidado com esses temas na Casa da Mulher Mato Grosso. “Quem se interessou compareceu. Acho que precisa motivar mais para a formação continuada, precisa também ver o quanto é duro, o quanto é difícil ouvir uma mulher vítima de tanta violência, mesmo porque não foi a Casa da Mulher Brasileira e o atendimento, mesmo que em algum momento tenha sido equivocado, que causou e aumentou o feminicídio no Brasil”, acrescenta.
“O feminicídio no Brasil agora está vindo à tona com este nome, mas mulheres sempre foram assassinadas e violentadas, estupradas pelo patriarcalismo, pelo machismo, pela misoginia. Então, toda a sociedade é responsável, todos os setores de educação, de saúde, de comunicação, a imprensa é responsável por essa luta”
Outro lado
A Fórum entrou em contato com a prefeitura de Campo Grande solicitando acesso ao material e um posicionamento do órgão em relação ao caso. Em nota, o governo disse que a situação "não condiz" com a realidade, mas não respondeu sobre a possibilidade de acesso ao relatório.
Veja a nota completa enviada por e-mail:
"A Prefeitura de Campo Grande, por meio da Secretaria Executiva da Mulher, esclarece que diversas sugestões apontadas no relatório da consultoria contratada foram implementadas na gestão da Casa da Mulher Brasileira (CMB). A afirmação de que nenhuma mudança ocorreu não condiz com a realidade.
Entre as melhorias adotadas, destaca-se a ampliação da capacitação da equipe. Após a consultoria, foi realizado um Seminário nos dias 12 e 13 de agosto de 2019, contando com expositoras de notório saber que abordaram temas indicados no relatório e com a participação de representantes do Ministério das Mulheres. Além disso, as capacitações passaram a ocorrer regularmente, com periodicidade quadrimestral, abertas a todas/as servidoras (es), garantindo a qualificação contínua da equipe. Foram realizados ainda outros eventos, envolvendo os demais serviços da CMB.
A Prefeitura também estabeleceu parcerias estratégicas para o aprimoramento profissional das servidoras da CMB, como o curso Diplomado em Violência contra as Mulheres, realizado em parceria com a UFMS entre maio de 2021 e abril de 2022, com carga horária de 80 horas e 200 vagas, além do curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Direitos Humanos das Mulheres, promovido pela INSTED com cofinanciamento da Prefeitura e concluído por diversos servidores.
No aprimoramento do sistema de atendimento, foram realizadas melhorias como a inserção das etnias indígenas no Sistema Íris e a implementação do psicossocial continuado. Além disso, o quadro de profissionais da equipe psicossocial foi ampliado de três para seis integrantes, reforçando o atendimento especializado. Para qualificar ainda mais os serviços prestados, foram estabelecidas reuniões periódicas entre os setores de acolhimento, triagem, psicossocial e recepção, garantindo a avaliação constante das dificuldades e a busca por melhorias nos fluxos de atendimento.
No âmbito do fortalecimento da gestão e normatização, a Prefeitura avançou na organização interna da CMB com a publicação do Regimento Interno, elaborado de forma coletiva entre a consultoria e representantes do Colegiado Gestor. Além disso, foi criado o Banco de Textos na página da SEMU, disponibilizando materiais para consulta pública e promovendo maior transparência no acesso às informações.
Em relação à segurança e estrutura, foi desenvolvido um plano de segurança pela Guarda Civil Metropolitana, em parceria com outras instituições, que está em fase de implantação. Uma medida essencial implementada foi a separação da entrada de agressores e vítimas, garantindo que os homens apenas ingressem na unidade pela porta dos fundos e sempre acompanhados da segurança pública. Além disso, houve articulação para a instalação da sala do IMOL dentro das dependências da CMB, visando otimizar os serviços prestados às mulheres atendidas.
Na área da transparência e divulgação, foi criado o Dossiê Mulher, substituindo a divulgação generalizada dos atendimentos por um levantamento detalhado do perfil das mulheres acolhidas, garantindo maior precisão e qualidade na apresentação dos dados. A Prefeitura também intensificou a divulgação dos serviços da CMB, promovendo campanhas, capacitações e ações comunicativas em eventos da SEMU e CMB, além de utilizar os meios de comunicação para ampliar o alcance das informações sobre o atendimento oferecido.
A Prefeitura de Campo Grande reafirma seu compromisso com a proteção e acolhimento das mulheres em situação de violência. As melhorias na Casa da Mulher Brasileira são contínuas e seguem o propósito de oferecer um atendimento cada vez mais humanizado, seguro e eficiente"