Não há um só brasileiro que não tenha ouvido falar da Lei Maria da Penha, uma legislação que entrou em vigor no ano de 2006 e que versa sobre a violência contra as mulheres. Considerado exemplar por várias nações, esse marco legal brasileiro teve origem na trágica história da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, hoje com 79 anos, que sofreu duas tentativas de assassinato por parte de seu então marido, o professor universitário e economista Marco Antonio Heredia Viveros, de nacionalidade colombiana, uma à bala e outra por eletrocussão. Os crimes ocorreram no ano de 1983, quando a vítima tinha 38 anos e o autor 36.
Esta semana, o Ministério da Mulher anunciou que Maria da Penha, idosa e vivendo numa cadeira de rodas desde que foi atingida por um tiro na coluna, terá direito a proteção policial, pois vem há algum tempo recebendo inúmeras ameaças de morte oriundos de setores da extrema direita brasileira que se autodenominam “redpills”, ou “masculinistas”, segmentos que vivem de pregar ódio às mulheres. O pesadelo começou depois que um “documentário” realizado pela produtora ‘Brasil Paralelo’ resolveu contar a história impondo como verdade a versão rocambolesca de Heredia, que se diz vítima, embora seja um homem condenado duas vezes pelo crime e de histórico violentíssimo com mulheres, inclusive acusado de agressão num outro relacionamento que manteve após sair da cadeia.
A ‘Brasil Paralelo’, como é de conhecimento público, é uma empresa do setor áudio visual totalmente ligada do ponto de vista ideológico às pautas caras à extrema direita, tendo em seu portifólio dezenas de produções que promovem unicamente um revisionismo histórico caricato, contando versões absolutamente distorcidas ou fantasiosas de eventos como o Golpe Militar de 1964, a Ditadura Militar (1964-1985), a “ameaça comunista” (imaginária) e a Escravidão no Brasil. No caso do crime contra Maria da Penha, a “obra” colocou o agressor como vítima de um complô bizarro, enquanto a esposa que quase foi morta e ficou paraplégica como uma mulher de personalidade perversa. A produção foi a “senha” para que os destrambelhados irascíveis do “departamento” misógino do bolsonarismo passassem a atacá-la e a ameaçar, desde que o filme foi disponibilizado na plataforma, em agosto do 2023. Um ano antes, a propagação da mesma tese monstruosa já tinha sido feita no programa +1Podcast, da Jovem Pan News, levando também a agressões verbais por parte de extremistas contra Maria da Penha.
Até a promulgação da Lei Maria da Penha, o caso esteve sob os holofotes da imprensa por quase 25 anos. Exaustivas investigações foram realizadas por décadas, com várias dezenas de depoimentos, inúmeras perícias, toda a fase de instrução processual e audiências, além de dois julgamentos pelo Tribunal do Júri de Fortaleza, isso para não falar nos recursos impetrados pelos advogados de defesa do réu e na argumentação contida no mandado de prisão em desfavor de Heredia, que atrás das grades mesmo só ficou por um ano e meio, entre outubro de 2002 e março de 2004, embora tenha recebido uma pena de 10 anos e 6 meses em 1996, no seu segundo julgamento. O primeiro, de 1991, no qual recebeu uma sentença de 10 anos, foi anulado posteriormente.
A versão apresentada por Heredia é risível, e é ela que é apresentada pela ‘Brasil Paralelo’. Ele contou uma história sobre um suposto assalto à residência onde vivia com a esposa, três filhas e duas empregadas. Absolutamente nada do que foi dito pelo economista foi comprovado, desde os disparos, a dinâmica da suposta ação criminosa, o tempo entre os eventos, enfim. O homem tinha um histórico de brutalidade contra a companheira, as três meninas frutos de seu casamento e até em relação às mulheres que trabalhavam para a família. Ninguém entrou na casa, não houve qualquer luta corporal e nenhum vizinho ou vigilante da rua vi alguém naquela madrugada entrando na residência do casal. O disparo que “o acertou” foi praticamente à queima-roupa, o que por óbvio fez a perícia classificá-lo como autoinfligido.
De tão gritante que era o episódio e devido à demora da Justiça brasileira em pôr fim à impunidade, o caso de Maria da Penha foi encaminhado, em 1998, até para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), que considerou formalmente o crime, em 2001, por meio da divulgação de um relatório robusto, como um ato de violência doméstica, impondo ao Brasil uma acusação de ser um Estado omisso no que tange ilícitos desse tipo. Diante do escândalo e da vergonha internacional, o Judiciário finalmente determinou o início do cumprimento da pena em 2022, 19 anos após o crime.