A descoberta de um assassinato brutal sacudiu a Itália esta semana. A jovem Carol Maltesi, de 26 anos, mãe de uma criança de 6 anos, foi morta a marretadas por Davide Fontana, um vizinho de 43 anos, com quem mantinha uma relação aberta.
Depois disso, o homem comprou uma serra elétrica e a esquartejou. Como se não bastasse, adquiriu ainda um freezer pela internet e manteve o corpo seccionado congelado no aparelho por mais de dois meses, tocando a vida normalmente e se passando pela vítima em seu celular, respondendo contatos pessoais e profissionais.
Foi desmascarado ao dirigir até uma localidade perto de Brescia e se desfazer dos restos mortais de Carol na beira de uma estrada. Além de acharem os pedaços do corpo, Fontana procurou uma delegacia por vontade própria para dar informações fantasiosas sobre o desaparecimento da mulher, já que morava ao lado dela.
Tudo isso seria o enredo de uma história de horror que deixaria um país, e até o mundo, chocados, não fosse por um detalhe: Carol atendia pelo nome artístico Charlotte Angie e era uma famosa atriz pornô, com milhões de acessos diários em sites de conteúdo adulto.
A partir daí, toneladas de ofensas, dedos apontados, piadas escatológicas e principalmente machismo e misoginia vieram à tona, não só na Itália, mas por parte de internautas de vários países e culturas. “Cada um escolhe seu destino”, “se fosse uma mulher de respeito nada disso teria acontecido”, “quem procura, acha”, entre outras pérolas invadiram as timelines das redes sociais culpabilizando a vítima pelo próprio assassinato monstruoso.
Um comediante italiano muito conhecido, Pietro Diomede, em seu perfil oficial no Twitter, resolveu fazer troça com a tragédia bárbara cometida contra Maltesi, que foi reconhecida por tatuagens que tinha pelo corpo, já que o assassino queimou seu rosto para dificultar sua identificação.
“Se o cadáver de uma estrela pornô é reconhecido por suas tatuagens, e não pelo diâmetro do buraco do seu cu, isso não joga a favor da fama da vítima”, escreveu Diomede, gerando uma estrondosa onda de repúdio, críticas e xingamentos por parte da sociedade italiana.
Para compreender como funciona esse mecanismo do machismo e da misoginia estruturais, que não dão trégua nem quando uma mulher é barbaramente executada e esquartejada, a reportagem da Fórum foi ouvir a filósofa Marcia Tiburi, autora de vários estudos e publicações sobre o tema.
“A sociedade patriarcal funciona como uma religião dogmática em que a vítima é a mulher e essa vítima é sempre culpabilizada. Isso quer dizer que uma mulher que sofre uma violência, sofrerá violência duas vezes. A violência em si e a violência do contexto. Já se usou a expressão “cultura do estupro” para designar o apoio que a sociedade como um todo dá aos violadores, aos criminosos, contra as vítimas quando elas são mulheres. Infelizmente, isso é inerente ao sistema patriarcal que, a rigor, é o sistema capitalista que trata os homens como sujeitos dos privilégios e do poder, bem como da violência autorizada. Atualmente isso que é chamado machismo estrutural parece até mais exacerbado, porque o fascismo, que vemos agora mais acentuado, é uma exacerbação do machismo”, explicou e contextualizou a acadêmica.
De uma forma geral, o machismo é imposto a toda população feminina, mas as trabalhadoras do sexo e da indústria pornô, assim como mulheres que não encaixam suas relações amorosas e sexuais nos moldes tradicionais e conservadores, sofrem ainda mais com estigmas e a violência declarada. Sobre isso, Marcia argumenta que tudo passa pela questão do domínio e predomínio culturais dos homens sobre corpos e mentes femininos.
“Digamos que o sexo em todas as suas formas sempre é usado contra as mulheres. Certamente elas acumulam opressões. O sexo é uma arma do patriarcado. Maridos, cafetões, pais, papas, padres, pastores, todos estão inscritos no Pater Potestas, o poder do homem que é usado contra mulheres conforme necessidades de justificar sua violência. O machismo é uma tecnologia política que submete mulheres. As trabalhadoras do sexo hoje ainda são mal compreendidas, como se o sexo não fosse uma força de trabalho. O patriarcado apaga que o sexo seja um trabalho e uma arma de opressão, assim como faz com o trabalho doméstico”, concluiu a filósofa.