A deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) apresentou na Câmara, recentemente, um projeto de lei que visa garantir a autonomia da mulher no uso de métodos contraceptivos. A proposta surge em meio a denúncias de que algumas operadoras e estabelecimentos de saúde estariam exigindo autorização dos maridos ou companheiros para que mulheres possam fazer, por exemplo, inserção de DIU (dispositivo intrauterino), ou mesmo comprar pílula do dia seguinte.
A ideia apresentada no Projeto de Lei nº 4389/2 é que a exigência de consentimento dos maridos para que mulheres possam acessar métodos contraceptivos se torne ilegal e determina que a escolha cabe apenas à pessoa que passará pelo procedimento.
“O Estado interfere sobre o corpo das mulheres através de agentes com concepções puramente individuais, religiosas, morais e pessoais. Nós queremos com esse projeto que isso não aconteça mais e que seja uma decisão da mulher qual método e quando (será realizado) e que não exista nenhum tipo de interferência ou questionamento a esse direito”, afirma Sâmia Bomfim.
Denúncias
Uma matéria de Victoria Damasceno publicada na Folha de S. Paulo em agosto deste ano uma grave denúncia: alguns planos de saúde estão exigindo de mulheres casadas o consentimento de seus maridos para que elas possam passar por procedimento de inserção de DIU (dispositivo intrauterino), que é um método contraceptivo.
A situação, segundo a reportagem, foi observada nas cooperativas da Unimed João Monlevade e Divinópolis, em Minas Gerais, e Ourinhos, no interior de São Paulo. As empresas de MG informaram, após a denúncia, que abandonaram a prática. Já o plano de SP afirma, apesar dos relatos de pacientes, que não exige esse consentimento.
Retrocesso
Em entrevista à Fórum, a advogada Luciana Munhoz, que é especializada em biodireito e saúde, informou que não há nenhuma norma legal que determine essa obrigatoriedade de consentimento.
“Há abusividade na relação entre seguradora e segurado, o que configura Dano Moral para os envolvidos. Haja vista que a operadora de plano de saúde presta um serviço e que a paciente é consumidora, podemos compreender que essa relação se pauta sobre as regras do Código do Consumidor. Esse é também o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que é uma relação de consumo. Assim, temos violação do artigo 6º, inciso IV c/c artigo 39, inciso I do Código do Consumidor, ensejando, portanto, indenização nos moldes do artigo 186 do Código Civil”, explica.
Segundo a advogada, a prática traz inúmeras consequências éticas, jurídicas e sociais. “Isso é um reflexo social sobre as escolhas da mulher em relação a seu planejamento familiar, desejo ou não de constituir uma família, bem como a sua capacidade de escolha sobre seus próprios atos. Podemos enxergar, ainda, que é uma construção sobre a mulher em relação a sua capacidade decisória“, pontua.
Luciana ainda vai além e chama a atenção para o fato de que isso remonta ao Código Civil de 1916. “Seria o retorno da posição da mulher como constava no Código Civil de 1916, em que se enquadrava enquanto um ser social que não tinha capacidade de tomar decisões, se não sob a tutela de um homem (marido ou pai), além de poder ser devolvida se não satisfizesse o homem. São regras de uma sociedade patriarcal e misógina que não possibilita à mulher seu espaço de escolha“, atesta.
Luciana Munhoz garante que a mulher que passar por esse tipo de situação para colocar o DIU pode se negar a assinar o termo de consentimento e, se receber negativa para o procedimento, pode recorrer ao Procon e à Justiça.
“Nesse caso de planos de saúde, é válido ainda entrar com uma reclamação na ANS (Associação Nacional de Saúde Suplementar), que é o órgão que regulamenta os planos de saúde, e informar sobre a violação, enquanto consumidora daquele plano. Também é válido frisar que a ANS possui um rol de procedimentos e eventos em saúde estabelecendo procedimentos em que os consumidores dos planos de saúde têm direito de acesso, além daqueles outros conforme seu contrato com a seguradora”, esclarece a advogada.
Lei de Planejamento Familiar
A advogada Luciana Munhoz explicou ainda à Fórum que essa exigência que está sendo feita por alguns planos de saúde tem como base a Lei de Planejamento Familiar (Lei nº 9.263/1996), que versa sobre a obrigatoriedade de consentimento do cônjuge nos casos de histerectomia, vasectomia e laqueadura.
Há, na interpretação desta lei, uma confusão, já que que o DIU é um dispositivo contraceptivo, e não um procedimento de esterilização.
A Lei do Planejamento Familiar, inclusive, é objeto de análise do Supremo Tribunal Federal (STF). Isso porque há, na Corte, duas ações questionando a constitucionalidade desta legislação, pois viola a liberdade de escolha da mulher.
Uma das ações foi apresentada pelo PSB e, a outra, pela Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep).