A vitória do não, por Agnes Franco

Jornalista faz forte relato sobre uma recente tentativa de assédio sexual de um colega e chama a atenção para sua autossuperação em dizer "não" enquanto mulher em uma sociedade machista

Foto: Reprodução/Ni Una a Menos
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Por Agnes Franco* Estava ao telefone, na sacada do apartamento onde moro, quando vejo alguém acenando. Espremi os olhos e reconheci Evandro**, filho de um grande amigo de meu avô, que mora algumas casas distantes da minha, e com quem estive diversas vezes nas aventuras da adolescência. Na verdade estive mais com o irmão dele, mas ele também era bastante presente. Vejo-o acenando de longe, devolvo o aceno e me dirijo para o portão do prédio. Desligo o telefone, desço um andar, abro o portão e fico contente ao revê-lo. Evandro foi diagnosticado com esclerose múltipla há muitos anos e, da última vez que o havia encontrado, ele falava e se movimentava com muitíssima dificuldade. Ele parecia bem melhor agora. Fiquei contente. No meio da conversa, como minha reunião havia sido adiada, disse a ele que se quisesse poderia passar na minha casa depois de levar as compras para colocarmos o papo em dia. Pouco tempo depois ele chegou me trazendo um chocolate branco. Aí, no começo da história, eu fiz o que fui “treinada” para fazer: agradar as pessoas, especialmente os homens, ainda que não tenha o menor interesse sexual nele. O fato é que ODEIO chocolate que não seja amargo ou meio amargo. Mas, ainda assim, fiquei com “pena” de dizer que não gostava daquele chocolate e comi, porque me violentar sempre foi natural para mim. Coloquei água para ferver com uvas e canela para o chá, porque o ABC Paulista é muito frio. Servi minha caneca e a dele. Ele me contou que casou, descasou, trabalhou em São Carlos, voltou, se formou em psicologia, falou da esclerose, das dificuldades, do tratamento, enfim, um papo – quase – tranquilo. No meio de uma coisa ou outra ele soltou “tô feliz de estar aqui” e “ainda bem que você voltou a morar aqui porque eu me sinto super sozinho nesse bairro”, respondi “eu também, ainda mais agora que o Nandão (um amigo nosso em comum, muitíssimo próximo a mim) saiu daqui. Legal, quando eu estiver de bobeira te chamo para gente bater papo”. Notei que ele não havia tocando no chá. Perguntei se ele queria que esquentasse. Ele me disse que, na verdade, devido a esclerose, ele precisava de ajuda para beber o chá. Então, ele me pediu que segurasse sua mão para que não tremesse e assim fiz. Segurei pelos pulsos. Ele bebeu e quando estávamos devolvendo a caneca na mesa, achei que já dava, soltei e foi tudo pra o chão. Ele ficou super constrangido e confesso que eu também, porque não queria coloca-lo em situação constrangedora. Pedi desculpas, peguei pano, rodo e fui limpar a caca que “eu” tinha feito (impressionante minha capacidade pra me culpar por tudo!). Eis que chega o momento em que o moço se levanta, se posiciona atrás de mim e coloca a mão nos meus ombros (tipo para fazer massagem - oi???????). Eu, instintivamente, levanto do banquinho e saio tipo egípcia, fazendo a linha ‘não entendi’ e mudo radicalmente de foco e de assunto. E... ali ficaram claras que as intenções dele não eram as mesmas que a minha e, automaticamente, entrei no modo “desconforto mode on”. Mas segui como se nada tivesse acontecido e como se não quisesse inventar qualquer desculpa para dizer “cara, desculpa, vou ter que ir não sei onde e fazer não sei o quê”. Mas, o pior estava por vir: no meio do NADA, de uma conversa qualquer, essa criatura – em frações de segundos – puxa o banquinho dele para perto de mim (gente, mas a esclerose não atrapalha os movimentos?????) e vem me dar um beijo. DE ONDE DIABOS VEIO ISSO?????? Naqueles poucos segundos vi minha vida passando pela frente. Lembrei de todas as malditas vezes que disse sim quando queria dizer não. De todas as vezes que um cara nojento achou que tinha o direito de tocar meu corpo sem que eu desse nenhum sinal de querer isso. Das passadas de mão na minha bunda na adolescência, dos estupros que demorei anos para entender que foram estupros, dos meninos que me chamavam de “pudica” quando eu não deixava eles colocarem as mãos no meio peito. Lembrei de todas as vezes que um cara olhou para mim com aquele olhar nojento de “to te vendo pelada”, de todos os “gostosa!” que eu ouvi, das INÚMERAS vezes que eu cedi ao desejo masculino para não ter que dizer “não” (porque não fui educada para isso) e me livrar logo daquele tormento. E aí, com tudo isso dentro de mim eu disse um bom e sonoro NÃO! -Uoooouuouououoooooou!!! Tá doído? De onde você tirou isso? Eu te chamei aqui em casa como um velho amigo, Evandro, não pra você vir pra cima de mim! - Ah, para, vai. A gente nunca foi amigo. - (chocada) Não??? Foi o quê??? - Não sei. Mas não éramos amigos. - Ok. Então você acabou de perder a oportunidade de construir isso. No mais, não é não, e vocês têm que aprender a respeitar isso. Eu te disse não no momento que você INVADIU meu espaço corporal, veio com graça no meu ombro e eu saí fora. - Ah, mas você não falou nada... - FALEI SIM! Posso não ter usado verbo mas deixei bem claro que não estava interessada no seu toque. Além, te FALEI no meio da conversa que não estou afim de ficar com ninguém novo, nem de conhecer ninguém novo, porque meu coração tem nome e endereço. - É, nesse ponto você está certa. Se você está com alguém eu realmente tinha que ter ficado na minha... Nossa, gente... nessa hora, juro, perdi TODA a educação e polidez que me restava. Quer dizer que eu, mulher, indivíduo, não posso dizer não, mas se um outro macho tá na parada e portanto, é meu dono, aí sim, aí o outro macho não pode chegar perto. Tá, entendi! - NÃO TEM NADA A VER EM ESTAR OU NÃO ESTAR COM ALGUÉM! INCLUSIVE PORQUE EU NÃO TE DISSE QUE ESTAVA COM ALGUÉM, EU DISSE QUE ESTAVA ENVOLVIDA COM ALGUÉM! E AINDA QUE ESTIVESSE NAMORANDO, CASADA OU O QUE FOR, ELE NÃO É MEU DONO!!!! O QUERER OU NÃO QUERER É MEU!!! E EU NÃO QUERO VOCÊ!!! Bom... depois disso, obviamente consegui pedir para ele ir embora da minha casa e pela primeira vez em 39 anos de vida consegui dizer não assim, sem dor. NÃO! Quando ele saiu porta afora fiquei pensando em todas as vezes que poderia ter feito isso e não fiz. E do quanto é difícil, ainda hoje, sair dessas situações. Acabei indo para casa do meu amigo Nandão onde encontrei Marta, companheira dele, que me deu a solidariedade necessária, e ele, que me deu parabéns muitas vezes por ter conseguido avançar um pouco mais no meu empoderamento. Outros dois amigos dele estavam lá, e falamos sobre o assunto, sobre a dificuldade que os homens têm para entender esse papel no qual somos colocadas, sobre o processo emocional penoso que a gente atravessa quando nos damos conta do tanto que a gente se anula para poder agradar aos homens e do quão tudo isso é novo para a gente. No fim das contas, na semana do meu aniversário, esse foi o meu maior presente: descobrir que já sei respeitar meu coração e meu corpo. Viva eu. Viva nós. Viva todas as mulheres que se foderam tanto para eu chegar até aqui. *Agnes Franco é jornalista **Evandro é um nome fictício