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"A nossa luta não será em vão"
Nina Simone
Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, quero falar de dois grandes movimentos que percebo. Um é objetivo, pragmático, organizado e pode ter seus resultados medidos no tempo de uma geração. Outro é mais intangível, sutil, instável e seus efeitos deverão ser sentidos apenas por gerações futuras.
Construídos a partir dos resultados da Rio+20 em 2015, atualmente uma das principais declarações que perpassa 193 países é a agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Dentre os 17 objetivos temos um que trata especificamente da igualdade de gênero (ODS 5). Destaco apenas uma de suas metas: 5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública.
Hoje as mulheres não estão presentes nas esferas de tomada de decisão, seja na vida pública ou privada. Percebe-se no âmbito global a urgência de ocuparmos esses espaços de poder e participar ativamente da construção tanto das leis nacionais como de acordos do cotidiano.
A decisão orçamentária e de investimentos é política e passa pela visão de mundo, e não pela economia. Além de decidir a gestão dos recursos tem também a decisão sobre o que afeta nossas vidas. Hoje as leis são feitas e aprovadas majoritariamente por homens pela ótica reducionista do mercado, passando algumas vezes por religião e muitas vezes por costumes. São os homens que decidem o que acontece se somos estupradas, em quais situações podemos fazer aborto, quanto ganhamos, como será nossa ascensão na carreira, quanto tempo teremos de licença maternidade, a quem cabe o papel de se ausentar do trabalho para cuidar de filhos e familiares. E sem termos modelos femininos no poder, todas nós somos levadas de forma consciente ou não a reproduzir o padrão masculino de gestão, de tomada de decisão, de negociação, da busca incessante por resultados e crescimento, como se estivéssemos todas e todos permanentemente medindo o tamanho do pau, a distância do cuspe ou quem mija mais longe. Homens, nada contra suas brincadeiras de moleque no muro lateral da escola (e me desculpem aqueles que sempre odiaram isso). É só que elas parecem ser as bases das decisões do nosso mundo contemporâneo e sei que têm muitos homens que não concordam também com essa forma, mas estamos presos nesse padrão auto imposto que é vendido para nós da propaganda de shampoo e de carro a filmes de Oscar.
O mundo como conhecemos e vivemos hoje é construído por homens, para homens. E isso vai mudar. Dizer que o futuro é feminino na realidade é mais do que um desejo. É só uma percepção de que um grande ciclo começa a se encerrar.
E aqui escrevo sobre o segundo movimento que percebo.
A vida é feita de ciclos. O maior deles é a eterna roda de nascimento, crescimento, florescimento, amadurecimento, declínio, morte e renascimento. Se não acredita em renascimentos, esqueça o ser humano, pense numa planta.
O ser humano tem a vida dividida por setênios e as leis biográficas nos mostram a cada 7 anos quais são os nossos desafios, crises e “lições de casa” da vida. Temos as grandes fases da adolescência, com o despertar sexual, da vida adulta e do processo de envelhecimento. Tudo isso combinando o nosso desenvolvimento biológico (corpo), anímico (pensamentos, sentimentos, ações no mundo) e espiritual. E a mulher vivencia além destes, outros ciclos: da menarca à menopausa, a fase menstrual alinhada com a lua, o momento de decidir se quer exercer a maternidade ou não, a gravidez. Esses ciclos que cabem em uma vida, assim como os ciclos da vida em sociedade (que cabem em muitas vidas), são registros que permanecem em nossas memórias atávicas, ancestrais, no inconsciente coletivo, nos costumes populares e ocultos em mitos, lendas, contos de fada que contamos para as crianças, em superstições.
Então “o futuro é feminino” faz muito sentido se pensarmos que estamos apenas resgatando o que um dia já foi. Mas vamos ter que desmontar cada peça do modelo patriarcal. No patriarcado, homens mantêm o poder primário e predominam em funções de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades. Isso é o que vivemos hoje. Por exemplo, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU) que é de 1979 reforçou os direitos ligados ao voto, à nacionalidade, à escolha da profissão, à igualdade nos salários e benefícios, ao matrimônio e maternidade e à liberdade de escolha do cônjuge. Mas no Brasil, apenas em 2002 (Código Civil) foi retirado o direito masculino de anular casamento em caso de comprovação de não virgindade pré-nupcial da esposa e só em 2009 foi regulada a licença maternidade para militares (Lei nº 11.106).
As antigas culturas matrifocais, sem hierarquias e dogmas (não confundir com matriarcal, onde o papel de liderança e poder é exercido pela mulher), eram organizadas ao redor das mulheres e crianças e protegidas pelos homens. Será um resgate para algo igual? Provavelmente não.
Lentamente este despertar da consciência acontece e o caminho da liberdade de expressão renasce. Mulheres vêm se unindo em grupos, rodas, coletivos só de mulheres (ou não) para trabalhar esse resgate por meio de vivências. Sagrado feminino, espiritualidade feminina, valores femininos, cura são algumas menções que não dão conta de explicar este outro movimento. A jornada do herói, descrita por Joseph Campbell, é uma visão arquetípica que narra a trajetória de muitas histórias de mitos ao longo das épocas. Porém essa visão não contempla o universo feminino. Maureen Murdock, estudiosa de Campbel, propôs a jornada da HEROÍNA, trazendo dilemas e conflitos específicos da natureza feminina e dos desafios que só as mulheres enfrentam em uma sociedade patriarcal. E é esse trilhar que nos levará ao futuro é feminino.
Essa é nossa luta. Atuar no objetivo e pragmático para o hoje, pois há muitas vidas de mulheres e meninas em jogo, mas ressignificar o feminino na nossa sociedade, que não pertence e reside apenas em nós mulheres.