O machismo e as mães sem nome

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Por Adriana Dias* Que eu saiba, na maioria das línguas contemporâneas incluindo o português, não há uma palavra para as mães e pais que perderam um filho. Por outro lado, há palavras para viúvas e órfãos. As viúvas, do latim vidua, deve ter tido origem no sânscrito vidháv?, vazio. A orfandade, fala da morte ou do abandono dos pais e parece vir, segundo a maior parte dos etimologistas do grego ???????, do qual herda um sentido de destituição. Tais palavras, portanto trazem uma forte presença do patriarcado: da força do macho que ao se perder faz do outro perdido. A mulher fica vazia, o filho, destituído. A força do machismo é tão forte que a mãe que perde um filho não tem nome. E nem precisa ter, segundo a lógica dos homens que fizeram os nomes das coisas. Se as mulheres dessem nomes às coisas, a mulher que perde o parceiro com certeza não seria vazia, nem o filho que perde os pais seria destituído. As mulheres respeitam as forças humanas e sua imensa capacidade de se reinventar. Mas o fato é que durante muito tempo quem criou os nomes foram aqueles que deixaram as mulheres que perdem os filhos sem nome. Talvez porque os pais que percam os filhos tenham mais dificuldade de elaborar e expressar sua dor, enquanto exigem das mulheres que elas sejam a mãe de plantão por toda a eternidade amém. E se a mulher nasceu para ser mãe na sociedade machista, a mãe que perde o filho parece ter falhado. E ela é punida da forma mais cruel: se quer pode ter um nome. Acompanho mães que perderam filhos com doenças raras há muitos anos, e nas suas trajetórias sei o quanto o luto é extenso, pois são anos cuidando de alguém que ao partir leva quase tudo da mãe. E ela, perde a si. Ela é uma mãe de UTI, uma mãe com uma pasta de exames que só cresce, que só tem mais e mais sono e olheiras mais profundas. Uma mãe que sabe o que é perder noite numa escala imensurável. E ao perder o filho ela perde tudo. E não ganha sequer um nome. Ela sequer tem um nome para afirmar o que ela é para explicar a outra pessoa o que ela vive. Ela tem que explicar pela perda do filho. E sofrer de novo. Há uma palavra no sânscrito, “vilomah” que significa algo que acontece "contra uma ordem natural” e coloca o mundo em caos. Não gosto muito da ideia de que o mundo tem uma ordem natural, e por isso não gosto quando tentam dizer que vilomah, e tentaram, seria uma boa ideia para mães sem nome. Parece muito próximo de vilão, e eu não recebo bem. Acho que as mães sem nome precisam se dar um nome, juntas. Mas, um nome que não tire delas mais do que já foi tirado. É preciso achar um nome que seja uma reinvenção da vida. Que traga plenitude. Que como canta Fátima Guedes, que anuncie, como uma flor de ir embora, que agora o mundo é nosso.
Flor de ir embora É uma flor que se alimenta do que a gente chora Rompe a terra decidida Flor do meu desejo de correr o mundo afora Flor de sentimento Amadurecendo aos poucos a minha partida Quando a flor abrir inteira Muda a minha vida Esperei o tempo certo E lá vou eu E lá vou eu Flor de ir embora, eu vou Agora esse mundo é meu
*Adriana Dias é Bacharel em Ciências Sociais em Antropologia, Mestre e Doutoranda em Antropologia Social – tudo pela UNICAMP. É também coordenadora do Comitê “Deficiência e Acessibilidade” da Associação Brasileira de Antropologia e coordenadora de pesquisa tanto no Instituto Baresi (que cria políticas públicas para pessoas com doenças raras) quanto na ONG ESSAS MULHERES (voltada à luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e ao combate da violência que afeta mulheres com deficiência). É Membro da American Anthropological Association, e foi membro da Associação Brasileira de Cibercultura e da Latin American Jewish Studies Association Os artigos desta seção não refletem necessariamente a opinião da Fórum. Participe, envie seu artigo para redacao@revistaforum.com.br (escreva Fórum Debate no assunto da mensagem).