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Desempregada, 28 anos, e mãe solteira de um menino de 5 anos, L. não é um caso único, nem mesmo raro. Cerca de 7% dos casos de estupro resultam em gravidez, mas 67,4% das mulheres nessa situação não conseguem acesso ao serviço de aborto legal na rede pública de saúde
Por Andrea Dip, na Pública
Há alguns dias a Pública recebeu, através de mensagem no Facebook, um pedido desesperado de ajuda. Uma moça de Goiânia dizia que havia sido estuprada, engravidado como resultado da violência sofrida e, para piorar, seu pedido de abortamento legal havia sido negado por um hospital da cidade. Durante a pesquisa feita pela internet em busca de caminhos para garantir seus direitos, ela havia encontrado a reportagem Dor em Dobro, publicada em 2014 no site da Agência Pública.
Identificou-se de imediato com as histórias vividas pelas personagens da reportagem sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que precisam interromper gestações decorrentes de estupro apesar do direito legal de realizar o procedimento na rede pública. “Quando eu procurei o hospital, estava de aproximadamente cinco semanas, agora estou de 13. Já fui em vários lugares procurar ajuda. Não sei mais onde ir”, dizia a mensagem.
Desempregada, 28 anos, e mãe solteira de um menino de 5 anos, L. não é um caso único, nem mesmo raro. Cerca de 7% dos casos de estupro resultam em gravidez, mas 67,4% das mulheres nessa situação não conseguem acesso ao serviço de aborto legal na rede pública de saúde, como esclarecia a reportagem. Tudo indicava que L. incrementaria a estatística das vítimas do estupro, da gravidez decorrente da violência e do descaso dos responsáveis por garantir os seus direitos e amenizar o seu sofrimento.
Tem certeza de que ele não é seu namorado
L. esfrega as mãos nos olhos para tentar limpar o choro que teima em interromper sua fala todo o tempo. Está abatida, ainda tentando processar os últimos acontecimentos durante nossa conversa em São Paulo. Lembrar é reviver a violência. “Mas talvez seja melhor falar que guardar, né?” diz quase que para si mesma. Peço desculpas por fazê-la repetir a história. Ela diz que quer contar para que mais nenhuma mulher passe pelo que ela passou. “Ih, também já contei tantas vezes pra tanta gente durante esse tempo… Sabe, eu acho que eles usaram a lei que deveria me defender pra me prejudicar. Fui tratada como criminosa o tempo todo.” Custa a chamar a violência de estupro. Usa quase sempre a palavra “abuso” para se referir à noite em que foi com amigos beber na casa de um conhecido, desmaiou e acordou com as calças arriadas sem saber o que tinham feito com ela. “Levei um susto, mas não entendi nada na hora, estava atordoada e atrasada, só queria sair dali. Um dos rapazes estava em pé ao meu lado na cama e eu perguntei se tinha feito algo comigo e por que minha roupa estava daquele jeito, e ele disse que não, que não sabia de nada. Me levantei e saí”, conta. Quando chegou em casa, percebeu que tinha esquecido o celular. Falou com o rapaz pelo Facebook pedindo o endereço para voltar e buscar. Ele relutou, mas acabou passando – essa conversa seria importante algumas semanas depois. “Não toquei mais no assunto. Se eu não tivesse engravidado, não saberia que tinha sido abusada. Achei que ele poderia ter se aproveitado de mim, mas não sabia até que ponto tinha sido isso. Aí minha menstruação não veio e eu fiz o exame de farmácia e deu positivo. Eu desesperei. Pedi ajuda para uma amiga, tomei um chá de alecrim que disseram que limpava. Sabe, me senti culpada por ter bebido, eu apaguei. Pensei que eu não tinha nada que estar lá, mas eu podia estar caída na rua, nua, ninguém tem o direito de me encostar, ninguém, ninguém. Né? Ele não podia ter tocado em mim”, diz novamente com os olhos cheios de lágrimas.
Sem saber como agir e por insistência de uma amiga, L. foi até a Delegacia da Mulher acreditando ser o caminho para obter o aborto legal, autorizado em nosso Código Penal no artigo 128, inciso II. Na realidade, ela poderia ter ido direto ao serviço de saúde e é recomendável que seja assim, para que a vítima faça os exames necessários e receba acolhimento e um coquetel de medicamentos para prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Mas, novamente, L. não é exceção. Segundo estudo do hospital Pérola Byington publicado pela Folha de S.Paulo em 2010, 88,9% das grávidas vítimas de estupro atendidas em um projeto da instituição Bem-Me-Quer, que oferece ajuda médica e psicológica, não procuraram ajuda imediatamente. Como explica na mesma matéria o ginecologista Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre Aborto, as mulheres ainda não têm noção de seus direitos e temem procurar ajuda. “Há também uma questão vinculada à vergonha que impede a mulher de revelar a violência praticada contra ela. Quando engravidam, escondem a gravidez e só procuram assistência quando ela é claramente evidente.”
Chegando à delegacia, L. diz que teve de contar sua história a um guarda que estava na porta e depois a mais três pessoas: a delegada, outro homem que ela não sabe identificar e a escrivã. “Eu estava desnorteada, começaram a me fazer um monte de perguntas, se eu tinha bebido, se já tinha ficado com ele antes, se o estuprador não era meu namorado. Quando a escrivã me pediu a data e o horário, eu não soube responder. Estava confusa. Então ela perguntou se poderia pôr uma data aproximada, e eu disse que sim.”
Ali começariam a peregrinação de L. pelos órgãos públicos e a série de violências que sofreria pelo caminho. Além de insistentemente questionada sobre a veracidade de seu depoimento, pediram na delegacia que ela voltasse com duas testemunhas do estupro (!), como mostra este documento.
Com o Boletim de Ocorrência em mãos, L. foi direto ao Hospital Materno Infantil de Goiânia, vinculado à Secretaria de Estado de Saúde de Goiás, centro de referência do SUS para acolhimento à mulher vítima de violência sexual. Na madrugada do dia 15 de fevereiro, com cinco semanas de gestação, fez exames e lhe pediram que voltasse algumas horas depois. Quando voltou, foi recebida pela assistente social, que, segundo L., não se identificou. Ela começou a tomar seu depoimento questionando severamente a veracidade das informações prestadas, perguntando (novamente) se o rapaz não era seu namorado e, por fim, se ela não tinha religião – como revela este documento.
A moça conta que, depois disso, ficou muitas horas esperando para ser atendida, que os profissionais falavam com ela sem se identificar e pediam exames sem explicar quais eram. Exatamente o contrário do recomendado pelas políticas de atendimento à mulher vítima de violência. “Então duas médicas me atenderam e me fizeram contar novamente o que tinha acontecido. Eu expliquei que tinha sofrido um abuso, que achava que estava grávida e que não queria. Elas me perguntaram como eu tinha ficado sabendo sobre o hospital, começaram a me interrogar sobre isso, perguntaram de novo se o rapaz não era meu namorado, perguntaram a data e a hora, e eu disse que estava confusa e não tinha certeza. Aí elas disseram que seria feita uma investigação e que eu passaria com o psicólogo. Também disseram que a médica [responsável pelo serviço de aborto legal] não estava lá e que eu teria de esperar ela voltar das férias, mas que não sabiam quando. Eu insisti e elas disseram que dali a uns 16 dias.” Diante do desespero de L., que não queria esperar tanto tempo com o feto se formando em sua barriga, mandaram-na conversar com a diretora da ginecologia. “Ela foi a pessoa mais rude de todas, falava baixinho, me pegou assim e disse: ‘Você está bem informadinha, né?’. Eu estava muito nervosa, chorando, elas estavam me tratando como se eu tivesse cometido um crime.”
Na sala do psicólogo, lembrou-se das conversas que teve com o agressor pelo Facebook, abriu sua página e disse a data certa: 24 de janeiro. “Mas eles disseram que valia a data do Boletim de Ocorrência.” A informação não consta do laudo do psicólogo, que diz apenas coisas como “choro intenso, rejeição ao bebê, fruto de violência sexual segundo a paciente. Medo de julgamento social e familiar. Parece emocionalmente instável. […] Culpa-se pelo abuso sofrido como forma de autopunição em relação ao uso de bebida alcoólica e ter dormido na casa de amigo. Mora com os pais, tem um filho pequeno, está sem trabalho e estudo e apresenta conflito relativo a essas questões. Recusa ajuda psiquiátrica”
L. deveria esperar a volta da médica.
Se vocês não me ajudarem, vou tomar veneno
Com a data comprovada pelas mensagens do Facebook, a garota procurou o Ministério Público para a devida retificação do Boletim de Ocorrência, o que foi feito, já que ela possuía provas da data da violência sexual sofrida. Retornou então ao hospital e, após ter feito diversos exames novamente, sido atendida da mesma forma pelo psicólogo e assistente social, além da médica que havia retornado das férias, lhe foi pedido que aguardasse a resposta. O segundo laudo do psicólogo também chama atenção por dar mais importância à desconfiança de L. com a equipe do que com seu estado emocional: “Paciente com humor instável, chora muito durante o atendimento. Incapacidade de espera e de suportar frustrações. Imediatista, desconfiada dos profissionais com desqualificação da conduta da equipe. Imaturidade emocional, age como se não estivéssemos nos importando com ela. Questionada em relação a como se sente junto ao feto diz tentar não pensar. Sentimento de raiva em relação ao suposto abusador. Desespero em relação à possibilidade de ter outro filho. […] Se não resolver vou tomar veneno. Recusa ajuda psiquiátrica. […] Só quero resolver isso”. Quase um mês depois que procurou a unidade de atendimento, L. foi informada de que seu direito foi negado pela equipe, que alegou incompatibilidade entre a idade gestacional e a data de “violência sexual alegada”, considerando o primeiro Boletim de Ocorrência, que estava equivocado. L. foi informada da decisão só muitos dias depois. Acredita que foi punida por ter ido ao Ministério Público: “As médicas diziam: ‘Eu falei pra você esperar, não sei o que foi fazer no MP’”.
Desesperada, sozinha e inconformada com a decisão do hospital, L. pensou em tomar remédios, pensou em tirar a própria vida, pensou em assumir o filho do estupro. Mas seguiu na busca por seus direitos e ligou no disque 180, procurou vários órgãos e foi encaminhada à Defensoria Pública do Estado de Goiás por orientação do Ministério Público. Ela foi atendida na Defensoria e, em 21 de março, fez um ultrassom que confirmou a idade gestacional decorrente do abuso. Somente oito dias depois, 29, é que o defensor responsável pelo caso propôs pedido de alvará que tramita na 2ª Vara Criminal de Goiânia e até o fechamento desta reportagem aguardava decisão.
No dia 4 de abril, o juiz requereu a cópia do inquérito do “suposto” crime sexual sofrido pela vítima. Felizmente, nesse mesmo dia, L. conseguiu ser atendida de forma digna pela equipe multidisciplinar do Pérola Byington – Centro de Referência à Saúde da Mulher –, que lhe garantiu acesso ao procedimento, informações, exames e o acolhimento a que tinha direito.
Rede feminista
L. conseguiu obter o atendimento depois de que a Pública a colocou em contato com a ONG Artemis, que atua na promoção da autonomia feminina através de políticas públicas. Foi a Artemis que acionou a rede de mulheres que trouxe L. para São Paulo. “A equipe do Pérola entendeu que a idade gestacional batia com a data da violência e fez o procedimento, de forma digna e segura”, explica Ana Lúcia Keunecke, diretora jurídica da organização.
“Eu estou tão aliviada, já estava sem esperança, nem acredito que finalmente consegui”, diz L. “Mas quando cheguei em São Paulo recebi um telefonema do defensor público [de Goiás] perguntando por que tinha advogada de São Paulo ligando lá, que não era pra eu ter contado nada pra ninguém e que era pra eu esperar. Mas como eu ia esperar se a interrupção pode ser feita até 20 semanas?” E desaba em choro: “O que eu iria fazer? Eu estava sofrendo muito, eu cuido sozinha do meu filho, eles estavam destruindo minha integridade, iam destruir a minha vida. Aqui eles colheram meu depoimento, fizeram as contas, exames, me deram remédio porque estou com uma infecção e me explicaram o tempo todo o que iria acontecer. Eu apaguei na maca chorando de emoção”.
Denúncia e respostas
Ana Lúcia explica que foram várias as violências sofridas por L. da delegacia ao atendimento no hospital, incluindo o processo judicial. “Desde a delegacia colocaram em xeque a violência sofrida por ela. Pediram testemunhas, perguntaram se ela tinha bebido, se o estuprador não era seu namorado. É compreensível que ela tenha confundido as datas. Estava tão impactada emocionalmente que não conseguia lidar com dados racionais que estavam sendo cobrados dela. Uma pessoa da confiança dela a tinha violado de uma forma que ela não imaginava, ela se descobriu gestante e ficou confusa e assustada e não tinha condições emocionais de elaborar dados racionais. Até por isso que a norma determina que não precisa de BO para o procedimento.”
Ana Lúcia deixa claro que os direitos de L. foram negados do começo ao fim: “Seja no Hospital Materno Infantil de Goiânia, seja na delegacia que lhe exigiu duas testemunhas, seja pela assistente social que não a acolheu, pelo psicólogo que apenas relatou seu desequilíbrio, pela médica que questionou sua credibilidade, pelo defensor na demora da propositura da ação e do magistrado que até o presente momento não decidiu algo tão urgente”. Detalha: “Temos aqui muitas violações: desde a legislação brasileira, códigos de ética profissional, lei processual, violência obstétrica e até de tratados internacionais”. A Artemis pretende formalizar uma denúncia junto à Presidência da República e o Congresso Nacional.
Questionada a respeito da denúncia, a Secretaria de Saúde do Estado de Goiás se comprometeu a enviar uma nota de esclarecimento que não chegou até o fechamento desta reportagem e nos colocou em contato com a diretoria do Hospital Materno Infantil de Goiânia. Em entrevista por telefone, a diretora do hospital, Rita Leal, disse que a negativa da interrupção legal da gestação de L. veio em decorrência da incompatibilidade da idade gestacional com a primeira data em que ela relatou ter sido vítima de violência sexual. Ela afirma que a moça foi acolhida por profissionais de saúde preparados e que, mesmo que ela tenha retificado a data com aval da delegacia, restou a dúvida. “E em caso de dúvida a gente não faz.” Avisada de que L. teria conseguido realizar o procedimento em São Paulo, a diretora diz que isso não significa que a equipe do hospital tenha agido de forma errada. Afirma que o serviço tem apenas uma médica por causa de objeção de consciência de outros profissionais – uma cláusula que permite aos médicos se recusar a fazer o aborto por convicções pessoais – e que ela, de fato, estava de férias no momento do primeiro atendimento de L. Disse que outra médica da obstetrícia (com objeção de consciência?) foi chamada para atender a moça. Questionada sobre a forma como L. afirma ter sido tratada pelos profissionais, diz: “Quando a gente tem um desejo e esse nosso desejo é frustrado, cabe à gente uma insatisfação. Talvez o constrangimento que ela diz tenha sido o fato de ela ter sido questionada quanto à incompatibilidade da idade gestacional. Ela deve ter ficado constrangida quando ouviu isso, e o fato de ter que relatar para os profissionais a história dela e a gente ter detectado inconsistência no relato. Sempre que ela era questionada, ela se sentia constrangida. Mas não que tenha sido causado por mau atendimento”.
A Pública ligou na Defensoria Pública, mas a secretária afirmou que o defensor que atendeu L., Márcio Rosa Moreira, não atendia o telefone e que se ele quisesse dar entrevista retornaria. Não houve retorno até o fechamento da reportagem. Em contato com o juiz Antonio Fernandes de Oliveira, da Segunda Vara Criminal, a assistente jurídica Moema Cristina Arantes respondeu que não havia indeferimento pelo juiz, que apenas esperava o inquérito que não havia sido juntado ao processo. Questionada sobre o prazo-limite em que L. se encontrava para fazer o procedimento, disse que “ela podia fazer o aborto a qualquer tempo e que o Código Penal não veta prazo”. Informada de que há o limite de 20 semanas, disse que L. “tinha apenas cinco semanas”. Informada de que L. estava com muito mais de cinco semanas, já no limite permitido pela lei, voltou a dizer que o juiz não havia indeferido, mas esperava a cópia do inquérito.
Ilustração: Carol Teixeira