“Nem sempre houve proletários, sempre houve mulheres”. Simone de Beauvoir.
Por que escrever? Por que passar esta corda pelo pescoço? Escrever é dar sem salvar nada nem ninguém. É dar sem se salvar. Por um lado, é a passar a corda pelo pescoço. Por outro, é a exigência de justiça que revela a corda que sempre esteve lá.
Existem obstáculos que barram a escrita das mulheres. Antes disso: barram a sua existência. Se a escrita é uma forma de justificar a existência, para escrever seria necessário antes existir. Este é o círculo vicioso em que as mulheres e outras classes subalternizadas estão inseridas: não lhes deixam existir e pedem que justifiquem a sua existência. “Justificar a existência” é ser alguma coisa. É dar substancialidade ao ser.
Simone de Beauvoir dá ao ser o sentido dinâmico hegeliano: “ser é ter-se tornado, é ter sido feito tal qual se manifesta”. Não é um destino natural que nos leva a ser alguma coisa, mas um conjunto de condições materiais e simbólicas. Mulheres enfrentam barreiras sociais que restringem aquilo que elas poderiam ser.
Beauvoir no Brasil
Em 1960, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre chegaram ao Brasil. Aquele ano tinha começado com a notícia da morte de Albert Camus num acidente de carro e a sua presença-ausência parecia atravessar fronteiras. Beauvoir ficou doente numa cidadezinha perto do rio Amazonas e passou uma semana no hospital com suspeita de febre tifoide. Os jornais noticiavam: “SARTRE ESTÁ NO BRASIL E TROUXE SIMONE DE BEAUVOIR”. Sartre era sempre colocado na condição de sujeito, enquanto Beauvoir era o objeto simplesmente trazido por ele.
É possível perceber nessa manchete uma das ideias fundamentais de O Segundo Sexo:
O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem. […] A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem, e não este em relação a ela. […] O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. (BEAUVOIR, 1949, p. 16)
Essa ideia fica ainda mais evidente numa manchete que anuncia a conferência de Beauvoir na Faculdade Nacional de Filosofia (FNF): “BEAUVOIR SEM SARTRE”. Era difícil imaginar Beauvoir sem Sartre. Era notícia! Mas não era difícil imaginar Sartre sem Beauvoir nas inúmeras entrevistas que relatavam os posicionamentos dele sobre a Revolução Cubana, o colonialismo e a Guerra da Argélia.
É importante ressaltar que existem poucos registros da conferência da FNF — um marco do feminismo violentamente apagado (as fotos aqui publicadas são inéditas). Já a passagem de Sartre é exaustivamente documentada. O tornar-se vai agindo sobre a história das mulheres. Apagamentos sutis e violentos são interpretados com fórmulas simples (e equivocadas): “o esquecimento age igual sobre a história de homens e mulheres”.
Igualdade abstrata
Uma das formas mais perversas de impedir que a igualdade realmente aconteça é dizer que ela já existe. Em O Segundo Sexo, Beauvoir já mostrava a tendência de tratar a questão do feminismo como um “caso encerrado”.
A propósito de uma obra […] intitulada Modern Woman: a Lost Sex, Dorothy Parker escreveu: […] “a minha ideia é que homens e mulheres, o que quer que sejamos, devemos ser considerados todos humanos”. (BEAUVOIR, 1949, p. 14)
Na introdução do livro, Beauvoir ressalta que o homem pode “persuadir-se de que não existe hierarquia social entre os sexos e de que, grosso modo, através das diferenças, a mulher é sua igual”. Essa igualdade abstrata nega a desigualdade concreta: salários mais altos, cargos e lugares mais importantes na indústria e na política. A igualdade de direitos precisa estar inegociavelmente atrelada à igualdade de oportunidades materiais e simbólicas. Sendo a desigualdade simbólica ainda mais difícil de combater, já que ela envolve educação, hábitos, costumes e um sistema de coerção, dominação e exploração que beneficia os homens: “o presente envolve o passado e no passado a história foi feita pelos homens”.
No momento em que mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens. (BEAUVOIR, 1949, p. 21)
A conferência de Beauvoir na FNF começava com a frase: “no mundo dos homens, as mulheres ainda são objetos”. O auditório predominantemente feminino ouviu Beauvoir dizer que vivemos num mundo onde as principais atividades econômicas, políticas e sociais são desempenhadas por homens, que detém o poder das grandes decisões. Na década de 1960, ela perguntava: “se a mulher tem as mesmas atribuições de pensar e agir como o homem, por que continua ela relegada à condição de inferioridade? Uma fatalidade biológica, fisiológica ou psicológica a levaria a isso ou essa situação depende apenas de determinadas condições históricas?”.
Foi, sobretudo, depois das suas primeiras guerras mundiais que a situação da mulher na França experimentou alguma modificação. Isso porque o número de mortos nas fábricas era grande e tornou-se necessário substituí-los nas fábricas nas usinas e mesmo nas profissões liberais. O direito ao voto só foi conquistado pelas mulheres na França após a Segunda Guerra Mundial. Se hoje, no plano teórico, a mulher tem os mesmos direitos que os homens, no plano da realidade concreta, essa igualdade é muito relativa. (JORNAL DO BRASIL, 1960)
“Toda a educação da mulher conspira para barrar-lhe os caminhos da revolta e da aventura”: assim é traçado e codificado aquilo que seria tornar-se mulher. A mulher é um devir histórico. Não existiria um destino biológico, fisiológico ou psicológico que a definiria enquanto tal, mas unicamente um invólucro histórico (social, teológico, político, cultural) contingente. É este invólucro que determina quais são as experiências possíveis e impossíveis para as mulheres de cada época.
Aquilo que entendemos por liberdade é um sistema de coordenadas que apresenta apenas algumas possibilidades às mulheres por elas serem mulheres. É uma liberdade abstrata. Quantas experiências são negadas para que a mulher se caracterize enquanto tal? O tornar-se mulher é utilizado como ferramenta de dominação e exploração. Mas ele não é estático, não determina uma verdade definitiva e imutável. É possível transformá-lo.
O fato histórico não pode ser considerado como definindo uma verdade eterna; traduz apenas uma situação, que se manifesta precisamente como histórica porque está mudando. (BEAUVOIR, 1949, p. 916)
Na conferência da FNF e na entrevista sobre os 25 anos de O Segundo Sexo, Beauvoir indica duas condições para essa transformação: liberdade e igualdade reais. Inclusive, entre mulheres, já que elas são atingidas pela consubstancialidade das formas de opressão determinadas pelo sistema patriarcal-racista-capitalista de maneiras diferentes.
Tive a sorte de pertencer a uma família burguesa, que, além de financiar meus estudos nas melhores escolas, também permitiu que eu brincasse com as ideias. Por causa disso, consegui entrar no mundo dos homens sem muita dificuldade. […] Portanto, tornou-se muito fácil para mim esquecer que uma secretária nunca poderia gozar desses mesmos privilégios […] eu costumava desprezar o tipo de mulher que se sentia incapaz, financeiramente ou espiritualmente, de mostrar sua independência dos homens. De fato, eu pensava, sem dizê-lo a mim mesma, “se eu posso, elas também podem”. […] Através de O Segundo Sexo tomei consciência da necessidade da luta. Compreendi que a grande maioria das mulheres simplesmente não tinha a chance que eu havia tido; que as mulheres são, de fato, definidas e tratadas como um segundo sexo por uma sociedade patriarcal. (BEAUVOIR, 1996)
Se à nossa volta todas não são iguais e livres, não podemos dizer que nós mesmos sejamos iguais e livres. Não acredito em salvação individual. (JORNAL DO BRASIL, 1960)
Dizem “os homens” para designar a humanidade: essa é uma indicação da relação entre tornar-se mulher e ter a humanidade negada.
A história mostrou-nos que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos; desde os primeiros tempos do patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de obediência; seus códigos estabeleceram-se contra ela; e assim foi como ela se constitui concretamente como o Outro. (BEAUVOIR, 1949, p. 207)
Beauvoir termina a conferência da FNF dizendo: “é preciso lutar pela integração da mulher em todos os postos da vida social”. Foi aplaudida de pé por centenas de mulheres. Esse discurso continua atual, mas não é só pela integração das mulheres à ordem patriarcal-racista-capitalista que o feminismo luta, mas pelo fim dessa ordem. Pelo movimento da mulher na direção de tornar-se Sujeito.
Num futuro radicalmente por vir, um futuro que parece resistir, teríamos igualdade e liberdade reias. Mas pensar que as categorias de gênero possam ser irrelevantes ou contingenciais num sistema ainda perversamente dominador e exploratório seria, em última instância, pensar na manutenção desse sistema.
A mulher “caminha de cabeça erguida contrariamente aos demais passantes”, a frase de Andre Breton ficou na minha cabeça por dias. As mulheres podem ser um elemento de perturbação da ordem vigente e continuar caminhando contrariamente ao que foi imposto a elas. Podem seguir juntas na luta política feminista para outro futuro, outra liberdade, outra igualdade, outra história.
BIBLIOGRAFIA
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo [tradução Sérgio Miller]. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1949. BIROLI, Flavia. MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014. CISNE, Mirla. Feminismo e Consciência de Classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2014. SILVA, A. A. Mulheres no ataque: depoimento. [9 de junho, 1996]. São Paulo: Revista da Folha de São Paulo. Entrevista concedida a Cristiana Couto. JORNAL DO BRASIL. Simone de Beauvoir sem Sarte [26 de agosto, 1960]; Rio de Janeiro.
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Daniela Lima é escritora e ativista. Autora de Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva (2014) e Sem Corpo Próprio (2015 – em andamento). Teve contos traduzidos para a revista The Buenos Aires Review (2013) e foi finalista do prêmio literário Exercícios Urbanos (2008) na categoria contos. Colaborou para diversas revistas e sites, entre eles Blog do Instituto Moreira Salles, Carta Capital, Margem Esquerda, Territórios Transversais e Pesquisa Fapesp. É comentarista da Rádio Manchete, biógrafa da escritora Maura Lopes Cançado e fundadora do coletivo feminista Jandira (2014).