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O sangue não é o real alvo da hostilidade, o nojo da sociedade é direcionado ao corpo feminino. As meninas crescem acreditando que são sujas e que precisam evitar a todo custo que o mundo perceba essa “sujeira” - vale tudo para fingir que não menstrua
Por Jarid Arraes
A menstruação é cercada de tabus. Tratada como algo nojento, indesejável e digno de vergonha, a menstruação raramente está associada a um sinal de boa saúde. A antiga ideia bíblica de que uma mulher menstruada não deve sequer ser tocada ainda prevalece na atualidade, mesmo que as justificativas religiosas não sejam as únicas para que se mantenha distância da menstruação.
O sangue não é o real alvo da hostilidade; o nojo da sociedade é direcionado ao corpo feminino. As mulheres são profundamente doutrinadas para que cresçam acreditando que são sujas e que precisam evitar a todo custo que o mundo perceba essa “sujeira”, A indústria dos absorventes menstruais e protetores de calcinhas também não disfarça: suas propagandas passam a mensagem explícita de que a mulher deve se envergonhar de seu corpo e do seu ciclo - vale tudo para fingir que não menstrua.
Uma relação criada para não dar certo
A jornalista Gladis Vivane conta que, desde muito jovem, sua relação com a própria menstruação foi marcada por episódios de associação negativa. “Lembro de uma vez a minha mãe ter dado um escândalo porque deixei uma calcinha suja de sangue no banheiro. A maneira como ela se referia àquilo, a carga de nojo que ela depositou no discurso que ‘uma moça não pode deixar essas coisas no banheiro’, marcou”, relata. “Entendo que ela queria me educar e que ela foi ensinada a tratar a menstruação assim, com essa carga negativa super forte, e eu achava isso muito estranho. Pra mim, era só mais uma roupa suja”.
[caption id="attachment_66426" align="alignleft" width="300"] Imagem: Reprodução / Facebook[/caption]
Embora situações como essa não tenham prejudicado a visão de Gladis a respeito do seu corpo, há mulheres para quem discursos como esse têm efeitos devastadores. Como a secretária Juliana Freitas, que já deixou de sair de casa por um longo período, preocupada se as pessoas notariam que estava menstruada. “Minha relação de trauma com minha menstruação foi aumentando com o passar dos anos. Eu ouvia tantos xingamentos e coisas duras da minha mãe, que me chamava de imunda quando eu estava menstruada, dizia que dava para sentir meu fedor até de outros cômodos da casa, que eu passei a não sair. Logo perdi o emprego por causa das faltas e fiquei sem trabalhar por dois anos. Tinha medo de sair na rua e de que alguém sentisse o cheiro de sangue podre, como minha mãe dizia”, relata.
Para Freitas, a relação de medo era intensificada pela exposição que sua mãe fazia na frente do seu pai e de amigos que visitavam a família. “Se eu estivesse menstruada e alguém fosse visitar, tinha que ficar reclusa no quarto. Evitava até falar com meu pai nesses dias, porque minha mãe falava coisas constrangedoras e agressivas na frente dele. Demorei muito anos para entender que isso não era normal e para compreender o que levava minha mãe a agir daquela maneira; soube depois, por minha tia, que quando ela menstruou a primeira vez foi interrogada pelo pai e até mesmo levou uma surra. Meu avô bebia e, num dia em que estava alcoolizado, descobriu que minha mãe havia menstruado pela primeira vez. Na cabeça dele, ela tinha feito sexo com vários rapazes, só isso explicava a presença de sangue em sua roupa”.
Mas a ligação entre menstruação e algo negativo não acontece sempre de forma tão explícita. A desinformação também contribui para que mulheres tenham relacionamentos problemáticos e incompletos com seus corpos; por isso, podem se sentir limitadas. A arquiteta feminista Laís Rodrigues diz que, quando menstruou, se sentia adulta e não tinha vergonha, exceto quando o sangue vazava do absorvente. “Em uma ou outra ocasião, aconteceu do absorvente vazar e marcar a roupa. Teve uma vez que isso aconteceu na escola, e o uniforme era uma calça azul claro, ficou muito óbvio, foi uma tortura. Por sorte estava com um moletom e deu para amarrar na cintura e esconder um pouco”, conta.
Essa associação de vergonha com a menstruação pode parecer algo simples e desimportante - afinal, ninguém gostaria de ter uma marca de sangue na bunda - mas a lógica da discrição, do segredo, também é um fator que impede a plena informação. Freitas explica como isso a afetou. “Quando menstruei a primeira vez, só sabia que tinha que esconder. Tinha muitas dúvidas sobre como agir, então meu dia a dia na escola era um inferno. Não conseguia prestar atenção nas aulas, preocupada se quando levantasse deixaria uma marca de sangue na cadeira. Hoje percebo que por toda a minha vida senti como se minha menstruação fosse um incômodo para os outros e para mim”, lamenta.
Ouvir mulheres falando entre si que detestam menstruar é algo muito comum. Geralmente os motivos são variados: dores pelo corpo, cólicas, alterações no humor e irritações na pele causadas pelo uso de absorventes são os mais citados. “Eu não sentia vergonha de menstruação, mas sempre detestei menstruar. Tinha cólicas muito fortes no primeiro dia, tive que voltar mais cedo da escola várias vezes por isso. Além do cheiro péssimo que você sente quando vai trocar o absorvente e, claro, da possibilidade de vazar, da chateação de ter que carregar absorvente pra caso desça a menstruação antes do previsto, todas essas coisas”, explica Rodrigues.
No caso de Gladis Viviane, as cólicas eram um grande problema que conseguiu resolver quando começou a tomar pílula anticoncepcional. “Mas passei a ficar mais dias menstruada também e isso me incomodava muito. Por mais que escolhesse um absorvente de cobertura super suave, nos últimos dias das menstruação já estava com a pele muito irritada e era um saco. Também não gostava dos absorventes internos, então tinha uma relação ruim com "estar menstruada" porque tinha uma relação ruim com absorventes.”
O dilema dos absorventes também é muito grande. E, apesar de haver tantos tipos diferentes no mercado - desde os mais grossos aos mais finos, ou até com aroma para esconder o odor do sangue -, muitas informações a respeito da utilização de absorventes não são repassadas para as garotas e mulheres. Os tabus também entram nessa equação, incluindo aqueles relacionados ao uso do absorvente interno. Laís Rodrigues relata: “Foi uma coisa que eu tive que descobrir e experimentar por conta própria. Quando eu perguntei sobre absorventes internos pra minha mãe ela respondeu que eu não podia usar porque ‘não tinha namorado’. Aquela ideia de que absorvente interno tira a virgindade e de que isso importa”, explica. “Um dia eu combinei com meu irmão de ir à piscina e, depois, falei que não ia dar por ‘questões femininas’. A namorada dele, que estava junto, comentou que ‘tampão é a melhor coisa que já inventaram’. Ela não foi mais específica, mas um pouco depois epesquisei na internet sobre absorventes internos e resolvi experimentar. Adorei, me senti muito mais livre. Mudou completamente a minha relação com a menstruação. Passou a ser menos limitante. Achei ridículo ter demorado tanto tempo para descobrir a maravilha dos absorventes internos. E eu ainda era virgem e isso também foi um passo para conhecer melhor meu próprio corpo”.
A revolução dos coletores menstruais
Embora exista há muitas décadas, só nos últimos anos os coletores menstruais ganharam alguma popularização entre as mulheres. O coletor trata-se de um copinho de silicone, um material hipoalérgico e impenetrável, utilizado cirurgicamente devido a suas características. Maleável e ajustável ao corpo, o copinho coleta o sangue da menstruação e pode ser relavado e reutilizado por até dez anos. Ao contrário do absorvente interno, que é inserido ao fundo da vagina, o coletor fica na entrada, sendo muito mais fácil de colocar e remover, além de estar disponível em uma enorme variedade de formatos e tamanhos para todos os corpos.
Em um primeiro momento, o coletor menstrual pode não parecer tão importante, mas o fato de ser reutilizável tem um significado muito maior para as mulheres e meninas de países subdesenvolvidos. No Quênia, por exemplo, absorventes são itens de luxo e muitas ficam pelo menos uma semana em cada mês sem sair de casa – o que significa que ficam sem trabalhar e estudar - devido ao custo dos absorventes. É uma realidade alarmante.
No Brasil, os coletores estão ganhando as mulheres, que os apontam como revolucionários. Se para Laís Rodrigues os absorventes internos já representavam um avanço, os coletores trouxeram mudanças definitivas. “O coletor é bem mais prático que o absorvente interno. Agora, a menstruação realmente deixou de ser limitante para mim, em qualquer sentido. Não tem nada que eu deixe de fazer, ou tenha que fazer diferente, por estar menstruada”, comemora.
[caption id="attachment_66428" align="alignright" width="300"] Coletores menstruais, em diversos formatos, tamanhos e cores. (Imagem: Reprodução / Facebook)[/caption]
A jornalista Verônica Mambrini usa coletores menstruais há dois anos e conta que, para seu estilo de vida, eles foram perfeitos por diversos fatores: “Foi uma experiência libertadora em muitos sentidos. Destaco dois: pratico esportes com frequência e uso bicicleta como meio de transporte. Como o coletor fica imperceptível quando bem colocado e é quase impossível de vazar, foi uma solução perfeita. Ganhei de volta a liberdade de movimentos que não tinha com absorventes tradicionais ou internos. Por ser de silicone, ele não absorve água, o que faz com que seja perfeito para nadar, ir à cachoeira ou ao mar. Outro ponto é a não-geração de lixo, importante para mim em especial em ambientes agrestes. Com frequência, acampo e passo dias seguidos na natureza, o que gerava lixo extra dos absorventes para trazer de volta junto com o restante do meu lixo. Com o coletor, eu posso devolver a matéria orgânica da menstruação à terra, higienizar o coletor com um pouco de água e gero zero lixo”, conclui.
Os depoimentos que celebram os coletores se acumulam nas redes, viram matérias jornalísticas e assunto em espaços de discussão. No Facebook, há dezenas de páginas e grupos dedicados a espalhar informações sobre os coletores e dicas de como usá-lo. Por isso, cada vez mais mulheres se aproximam da possibilidade. “Comecei a usar primeiro por curiosidade. Vi muitas meninas falando e quis testar”, conta Gladis Viviane. “A primeira vez que usei o coletor já amei. Foi fácil de colocar, segurou o sangue direitinho, sem vazamentos. Mas pra tirar... Putz! Quase não consegui tirar e bateu um leve desespero. Mas fui mexendo e percebendo que estava fazendo errado, estava tentando puxar e ele jamais ia sair assim. Tem que tirar o vácuo primeiro (risos) Até hoje ainda não aprendi uma técnica certeira pra tirar. Cada hora tiro de um jeito. Pra mim é a única parte chata. Mas todo o resto faz valer a pena. Posso até dormir sem calcinha quando estou menstruada! Isso é muito incrível”, celebra.
“Nesses quatro anos de uso, a minha relação com a menstruação realmente mudou. Agora não é mais uma coisa que eu queria que não existisse”, afirma Laís Rodrigues. “Lógico, não é que eu ache super legal menstruar, mas não me traz nenhuma limitação, nenhuma dificuldade. Não tem mais aquele negócio de colocar papel higiênico e pedir pra mãe descer correndo na farmácia pra comprar absorvente”. Para ela, o melhor fator é não ter mais nenhum cheiro incômodo, algo que só acontece quando o sangue entra em contato com o ar. “No começo você fica achando inconveniente porque é difícil limpar em banheiro público, quando a pia não está na cabine, mas pra tudo você acha uma solução. E o coletor você pode deixar por até 12 horas, então também não tem necessidade de limpar durante o dia, pode deixar pra quando voltar pra casa. Eu acho ótimo, em todos os sentidos, não tenho nenhuma reclamação”, finaliza.
No entanto, os coletores menstruais ainda enfrentam bastante preconceito, principalmente porque muitas mulheres têm dificuldade em tirar a carga negativa associada ao ato de menstruar - algo intimamente relacionado à misoginia da sociedade e à ideia de que tocar o próprio corpo, sobretudo a área genital, é algo reprovável. Entre vergonha, medo e nojo, as mulheres acabam deixando de lado alternativas positivas e deixam de economizar dinheiro e de resolver os problemas causados pelos absorventes.
Laís Rodrigues diz que até compreende as mulheres que sentem nojo da menstruação, mas reforça: é preciso aprender a lidar com o próprio corpo. “Tem muitas reações normais do nosso corpo que não são necessariamente agradáveis e cheirosas, mas que a gente tem que lidar de uma maneira ou de outra e é besteira fingir que não existem. Só me chateia, claro, que algumas mulheres se sintam envergonhadas em relação à menstruação (principalmente na hora do sexo) e se limitem por vergonha. Não vai na praia quando está menstruada porque tem vergonha de usar absorvente interno, fica com medo de experimentar porque envolve a vagina. Sabe? Não precisa de nada disso. Que tristeza se limitar porque outras pessoas te ensinaram que seu corpo é uma coisa pelo que se envergonhar. E acho que nesse sentido ainda também tem muito peso o fato religioso de ser proibido se tocar, se conhecer, muito menos colocar algo dentro da vagina”, ironiza.
Gladis Viviane conta que já chegou a discutir com amigas próximas por causa do preconceito contra coletores menstruais. “É o velho machismo de sempre fazendo o seu papel, né? Aquele nojo com que a minha mãe falava sobre sangue na calcinha é o que vejo em alguns comentários sobre o coletor. Tem coisa mais triste do que uma mulher ter nojo dela mesma? Isso me deixa tão revoltada que já discuti com amigas próximas. A mulher é tão ensinada a se oprimir e oprimir as outras mulheres, que não consegue parar pra pensar que só age assim porque foi ensinada a fazê-lo. É difícil tirar a venda dos olhos e se questionar”, protesta.
Sangue e libertação
Talvez a mudança desse fenômeno de repulsa contra a menstruação ainda esteja muito longe de acontecer. Ainda é necessário confrontar o machismo e construir mais oportunidades para disseminar informações de qualidade. Enquanto a misoginia protagonizar os valores direcionados às mulheres, todo processo de empoderamento e autonomia se torna mais difícil.
Rodrigues sugere que a transformação venha gradativamente. “Não sei se é necessário gostar de menstruar. É necessário não odiar menstruar. Não ter vergonha e não se limitar. Não precisa ser um evento feliz todo mês, mas não tem que ser uma coisa ruim”, estimula. “Tipo cortar a unha do pé quando ela está grande. Não é necessariamente uma delícia, mas também não é algo que te incomode, você faz quando é necessário. Acho que algumas coisas do corpo são assim, você lida com ele da maneira necessária”, explica. “Se alguém tivesse me perguntando, na minha adolescência, se eu gostaria de nunca mais menstruar, eu diria ‘com certeza!’. Hoje pra mim seria uma pergunta tão sem sentido quanto ‘você gostaria que as unhas do seu pé jamais crescessem?’", conclui Rodrigues.
Gladis traça o paralelo. “Quando os meninos começam a gozar no lençol, na adolescência, ninguém diz que esperma é nojento e ele não pode fazer aquilo porque é vergonhoso. Mas se uma menina suja a calcinha porque a menstruação vazou, ela tem que lavar e esconder logo, porque aquilo é um nojo. Em algum momento da minha adolescência, eu percebi que isso era errado e consegui crescer sem carregar esse estigma. A maioria das mulheres não consegue, o que é muito triste. Mas tem cada vez mais mulheres falando sobre coisas antes consideradas íntimas e vergonhosas demais para ir a público. E acho que isso é incrível, porque pode trazer um ponto de vista diferente para uma mulher que não teve oportunidade de ver as coisas por outro ângulo. Ela lê uma postagem num grupo de Facebook e pensa: ‘poxa, isso faz sentido, não tem nada de errado em menstruar, eu que fui ensinada a pensar o contrário’", declara.
Para Gladis, a receita inicial é direta: “Ficar de boa com a própria menstruação faz parte de um processo maior, de parar de inferiorizar a sua condição feminina”. Se as mulheres a colocarão em prática fazendo uso de um coletor menstrual ou de um absorvente externo, isso fica a critério de cada uma. O que não pode ser diferente é o combate à misoginia – as mentiras contadas sobre os corpos das mulheres precisam ser extinguidas.
Foto de capa: Reprodução / Facebook