O feminismo nos ensinou que não é possível pensar a sociedade sem levar em conta a desigualdade de gênero. Mas aprendemos também que precisamos da reflexão feminista para aprofundar a compreensão não só das questões de gênero, mas de todos os tipos de opressão social
Por Luis Felipe Miguel*, do Blog da Boitempo
[caption id="attachment_62517" align="alignleft" width="300"] Angela Davis, de Edgar Garcia. O artista plástico estadunidense assina a capa do livro Feminismo e política: uma introdução, de Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli[/caption]O feminismo, em suas diferentes vertentes, desvelou os mecanismos da opressão sobre as mulheres nas sociedades contemporâneas. Com o passar do tempo, por pressão das próprias lutas feministas, tais mecanismos se tornaram menos evidentes. A maior parte de suas expressões na letra da lei foi superada, substituída pela adoção de um sistema de incentivos para que a adesão aos papéis estereotipados e subalternos seja vista não apenas como voluntária, mas como verdadeiramente “libertadora”. Por isso, a reflexão feminista teve que ganhar em sofisticação e complexidade, para apreender uma forma de dominação que também se tornou muito mais sofisticada e muito mais complexa do que o velho patriarcado.
No processo, o feminismo construiu (e está construindo) uma teoria do mundo social que contribui para iluminá-lo não só no que se refere às relações de gênero, mas em todos os seus padrões de dominação e de reprodução das assimetrias entre grupos. De fato, é possível dizer que o feminismo constitui, ao lado do marxismo, uma das duas principais vertentes da reflexão crítica sobre a sociedade. Uma teoria política que esteja preocupada com a opressão e a injustiça não pode prescindir da sua contribuição. Apresento, aqui, aqueles que me parecem ser sete ensinamentos centrais do feminismo para essa teoria política.
1. Desconfiar do universal
Marx dizia que “não há natureza humana fora da sociedade humana”. O feminismo enfatiza que essa sociedade produz “naturezas” diversas de acordo com as diferentes posições sociais – algo com que Marx certamente concordaria, aliás. O apelo ao elemento universal, que unifica nossa humanidade comum, significa abstrair tais diferenças (que, convém lembrar, não são só diferenças, são hierarquias). É possível buscar esse universal como uma promessa que não se realiza na sociedade em que vivemos. Mas se simplesmente postulamos que ele está dado e pode ser extraído do mundo tal como ele é, então certamente estamos tomando como parâmetro uma posição particular, universalizando-a e, em consequência, marginalizando todas as outras.
As posições sociais dominantes têm condição privilegiada para ignorar sua própria especificidade e construir a si mesmas como universais. É por isso, por exemplo, que falamos da literatura escrita por mulheres como literatura “feminina”, mas não há uma literatura “masculina”. Como há uma literatura negra e uma literatura gay, mas não falamos de literatura branca ou hétero.
Assim, o pensamento feminista mostrou como o “indivíduo” genérico e universal do liberalismo é o homem proprietário e branco. Ele é que possui a capacidade de estabelecer contratos, que caracterizaria os indivíduos “em geral”, mas essa capacidade é dependente de sua posição no trabalho e na família. Quando mulheres, trabalhadoras e trabalhadores, negras e negros são admitidos à cidadania, são cidadãos incompletos, pois não possuem os atributos associados ao indivíduo “padrão” universal.
Mas o feminismo vai mostrar também como o “trabalhador” do movimento socialista sempre foi o homem; que na visão deste trabalhador estava pressuposta a presença de uma mulher, em casa, cumprindo funções tanto imprescindíveis quanto invisíveis. Com isso, o feminismo lançou, ao socialismo, desafios que não foram completamente respondidos até hoje. E, por fim, o feminismo vai questionar a si próprio. Afinal, ele não pode falar em nome de uma “mulher” universal, sem levar em conta que as mulheres estão situadas socialmente também em função de suas características de raça, de classe, de sexualidade – e que a emancipação da mulher, entendida sob a perspectiva de profissionais brancas, de classe média, heterossexuais, não é necessariamente a emancipação da mulher negra, da mulher trabalhadora ou da mulher lésbica.
2. Atentar para as opressões cruzadas
O entendimento desta situação gera desafios maiores para o discurso e a prática da emancipação social, pois os coloca diante de uma realidade que não admite simplificações. Não se trata de “somar” posições parciais. Um movimento operário e um movimento negro que negligenciem o gênero podem ser somados a um movimento feminista insensível a classe ou raça. Mas os três, não são capazes, mesmo em conjunto, de expressar as perspectivas e as demandas de mulheres trabalhadoras negras. Numa sociedade que é, simultaneamente, capitalista, “patriarcal”, racista e heterossexista, as posições geradas por gênero, raça ou sexualidade geram vulnerabilidades específicas nas relações de trabalho – e vice-versa. A posição social de quem sofre opressões cruzadas precisa ser entendida na sua especificidade.
Na primeira metade do século passado, uma dirigente negra do Partido Comunista dos Estados Unidos, Claudia Jones, já começava a teorizar sobre o que chamava de “tripla opressão”, observando corajosamente o equívoco de julgar que a desigualdade de classe nos fornecia, isoladamente, explicação suficiente sobre a sociedade e seus conflitos. Hoje, usamos sobretudo o termo “interseccionalidade”. Algo se perdeu, porém, nessa transição: a interseccionalidade é muitas vezes lida como indicando a necessidade de atenção ao cruzamento entre opressões de gênero e de raça, com a classe perdendo centralidade e passando a compor o pano de fundo.
2. O pessoal é político
É o slogan do feminismo dos anos 1960 que condensa, de maneira gráfica, a reflexão crítica sobre a distinção entre uma esfera pública e uma esfera privada. A crítica à divisão entre público e privado é, de fato, uma contribuição crucial do pensamento feminista. “Público” e “privado” são categorias históricas, fruto de uma classificação convencional que, ao gerar uma realidade que se adequa a ela, passa a ser vivida como se fosse natural. Como todo bom pensamento crítico, o feminismo é antinaturalista: ele busca mostrar que as relações sociais não são reflexo da natureza, mas produtos da ação de mulheres e homens que fazem (sob condições desiguais) sua própria história.
O movimento socialista já havia dado um passo, recusando a ideia de que a economia “privada” não era passível de regulação pública. Mas foi o feminismo que avançou, chegando à esfera da família, que transita como espaço de afetos e, justamente por isso, parece ter salvo-conduto para reproduzir todo o tipo de opressão. A família vive, na expressão da feminista francesa Christine Delphy, um “estado de exceção”. Nela, os direitos de seus integrantes estão suspensos. A reação à recente lei brasileira que busca impedir castigos físicos contra crianças revela como essa percepção da unidade familiar continua viva e atuante.
Ao dizer que o pessoal é político, o feminismo destacou como as relações interpessoais – na família, na conjugalidade, em todos os espaços – refletem padrões mais amplos de dominação e, ao mesmo tempo, contribuem fortemente para reproduzi-los. A barreira que separa o “privado” do “público” é um poderoso obstáculo ao enfrentamento da opressão.
Mas há o reverso deste dístico, que é menos lembrado, mas igualmente importante…
4. O político também é pessoal
O que está em jogo na política não é o controle sobre estruturas distanciadas da vida das pessoas. O que está em jogo são as matrizes de possibilidades que dão a uns, mas não a outros, o acesso a determinados espaços sociais e o controle de recursos escassos e valorizados. O que está em jogo, em suma, é a possibilidade de decidir a própria vida, o que é algo que não se efetiva em arenas específicas, mas na vida vivida de todos os dias. O político é pessoal porque nele se definem as condições em que podemos exercer nossa autonomia.
O feminismo, assim, contribuiu, mais do que qualquer outra corrente de pensamento, para a expansão de nossa compreensão da política. Boa parte da ciência política ainda se faz como se a política fosse uma atividade restrita a espaços sociais muito específicos (governo, partidos, parlamento), que giraria mais ou menos em torno de si mesma. A crítica feminista ajuda a mostrar porque essa é uma má ciência da política.
5. Aprender com a experiência vivida
A teoria não é um discurso apartado da experiência. Apenas a experiência concreta, de pessoas em suas circunstâncias próprias, socialmente estruturadas, pode ancorar a reflexão de maneira a preservar a complexidade dos padrões cruzados de opressão. O universal abstrato pode prescindir da experiência, mas não um pensamento que queira entender o mundo social com suas injustiças e buscar maneiras de enfrentá-las. Uma importante feminista estadunidense, Iris Marion Young, combinou, melhor do que ninguém, esses três aspectos: a atenção à experiência vivida, que a motivou a buscar, na própria vivência – socialmente estruturada, como qualquer vivência – da corporalidade das mulheres, elementos para produzir a crítica da sociedade atual; a recusa radical ao discurso do universal; e o entendimento de que a luta por justiça não é a busca de um padrão abstrato, mas o enfrentamento das injustiças existentes.
Citei Young por um bom motivo. Aprender com a experiência vivida, para ela, nunca foi acreditar que a experiência em estado bruto, sem construção reflexiva a partir dela, constitui conhecimento. Não há um misticismo da vivência que faz com que sua simples enunciação supra a necessidade da reflexão teórica. Aprender com a experiência vivida significa elaborar essa experiência, até mesmo para não repeti-la.
6. Discutir a formação das preferências
A experiência vivida é uma experiência vivida sob uma sociedade desigual. A opressão não é externa aos agentes sociais, ela contribui para produzi-los. Produz, em particular, a adesão à ordem social, vista como natural, como inevitável ou mesmo como justa.
O feminismo sempre buscou valorizar a experiência e a expressão das mulheres, sem, no entanto, aceitá-las como se remetessem a uma verdade original. Trata-se de evitar, por um lado, o erro de tantas interpretações autoritárias do marxismo, que desprezavam as manifestações das próprias classes trabalhadoras, entendidas como meras demonstrações da “falsa consciência”. E de evitar, por outro lado, a falácia própria de boa parte do liberalismo, para quem qualquer expressão individual de um interesse ou uma preferência é um documento indiscutível, inacessível ao escrutínio crítico, da vontade real e autêntica daquele sujeito.
Se uma mulher é capaz de expressar sua adesão ao insulamento no lar, à posição subalterna na família, aos padrões dominantes de beleza, à dupla moral sexual ou mesmo à mutilação genital, não se pode simplesmente aceitar que é a manifestação de uma vontade autônoma. Sem negar a ela a condição de sujeito, é necessário interrogar as condições – os constrangimentos e os incentivos – que geraram tal adesão, que produziram tais preferências. É necessário, enfim, manter a posição em que se recusa a ideia de que existem preferências “certas”, objetivamente identificáveis por observadores externos, mas ao mesmo tempo não se abre mão da crítica aos mecanismos de manipulação e produção da conformidade ao mundo social, tão presentes e tão atuantes.
7. Prezar a diferença não significa abrir mão da igualdade
A recusa ao universalismo abstrato, a atenção às várias formas de opressão sobrepostas, a valorização da experiência concreta: tudo isso aponta para o reconhecimento da enorme diversidade social. O feminismo vai, então, afirmar a positividade da diferença – uma questão, aliás, que continua a ser muito debatida entre as próprias pensadoras feministas. Afinal (recorrendo de novo a Christine Delphy), se a diferença é vista como a manutenção de papéis estereotipados diversos para (por exemplo) os gêneros, ela é na verdade uma forma de bloquear a existência de formas diferentes de ser mulher e de ser homem. Tantas formas que, no final das contas, a própria ideia de um papel masculino e outro feminino acabaria por desaparecer, como propõe a utopia feminista de uma sociedade pós-gênero.
De qualquer maneira que se entenda a diferença, porém, ela deve se compatibilizar com a igualdade. A crítica ao universal leva à compreensão de que a verdadeira igualdade implica no reconhecimento das diferenças, para que todos possam usufruir da mesma autonomia – “a cada um segundo suas necessidades”, de acordo com o velho slogan socialista. As lutas para que as leis levem em conta a diferença foram e são cruciais para permitir o acesso das mulheres à esfera pública, na contramão do discurso que vê “privilégios” na proteção às gestantes, em folgas no trabalho para permitir a amamentação dos filhos pequenos ou em cotas para o preenchimento de determinadas funções.
A valorização da diferença assume, assim, a posição de defesa de uma igualdade complexa, que entende que apenas aplicar a mesma régua a todos não gera justiça. Levar em conta a diferença, em vez de anulá-la pela adesão a um modelo universal abstrato, é pensar nas condições de oferecer a todos uma igualdade mais plena, entendida como igual possibilidade de viver uma vida efetivamente autônoma.
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O feminismo é uma corrente teórica muito diversificada – seria mais correto falar no plural, “feminismos”, tanto quanto o plural afirma, corretamente, a variedade interna dos “marxismos” ou dos “liberalismos”. Nem todas as suas vertentes avançam nas lições que esbocei aqui. Mas nenhuma dessas lições existiria, pelo menos com a força e a clareza que têm hoje, sem a contribuição decisiva de um ou mais feminismos.
De forma geral, o feminismo nos ensinou que não é possível pensar a sociedade sem levar em conta a desigualdade de gênero. Mas aprendemos também que precisamos da reflexão feminista para aprofundar a compreensão não só das questões de gênero, mas de todos os tipos de opressão social.
(*) Junto a Flávia Biroli, Luis Felipe Miguel é autor de Feminismo e política: uma introdução, que reúne em 10 capítulos esquemáticos as principais contribuições da teoria política feminista produzida a partir dos anos 1980 e apresenta os termos em que os debates se colocam dentro do próprio feminismo, mapeando as posições das autoras e correntes atuais