A hashtag #meuamigosecreto constituiu-se como movimento internáutico divertido e criativo. Primou pela ironia de denúncia das relações de poder assimétricas implícitas em certas práticas e atitudes. Uma proposta abrangente, pois abriu espaço para vozes opositoras ao racismo, à misoginia, à LGBTfobia e à heteronormatividade
Por Cidinha da Silva*
A campanha eletrônica #primeiroassédio, proposta pelo blogue feminista Think Olga, deflagrou o processo de libertação da voz de milhares de homens e mulheres na internet, relatando a primeira experiência ou lembrança de assédio sexual.
O evento ocorreu em resposta ao assédio sofrido por Valentina, criança de 12 anos, participante do reality televisivo Master Chef Júnior. Na ocasião, a menina foi tratada como presa de pedófilos que, por meio de trocadilhos, memes e piadas, faziam previsão do tempo de maturação de seu corpo para estuprá-la. Os depoimentos foram doloridos, mas libertadores para as pessoas que depuseram e, principalmente, para as leitoras, vítimas de abusos.
Campanha subsequente, #meuamigosecreto, cuja maternidade ainda não foi reivindicada, propôs que as mulheres expusessem situações desagradáveis vivenciadas com um homem ou presenciadas de forma direta ou indireta, trocando o nome do sujeito pela hashtag. Houve tanta participação de artistas, parlamentares, intelectuais, ativistas políticas e, acima de tudo, gente comum sem maiores adjetivações, que a campanha viralizou nas redes sociais.
Um meme bastante representativo criou um amigo secreto para a presidenta Dilma: #meuamigosecreto ainda não aceitou que perdeu a eleição. E quer o poder a todo custo, completaria.
Correntes contrárias à campanha se insurgiram. Ora vindas de mulheres, ora de homens. As primeiras acusaram as protagonistas de #meuamigosecreto de “não terem o que fazer.” Definiram-se também como mulheres diretas e guerreiras demais para participar de brincadeira tão insignificante. Mas os homens, principalmente, culpabilizaram as mulheres e as aconselharam a escolher melhor seus amigos.
Eles não compreenderam ou não quiseram compreender que as duas campanhas em tela superam as inócuas #somostodosmaju/taís, entre outras. Aquelas abriram espaço para a manifestação de um eu coletivo, potencialmente mobilizador de mudanças, mesmo no plano simbólico. Possibilitaram a constituição e exposição de arquétipos opressores. Escancararam as atitudes de homens em situação de poder, professores, sindicalistas, diretores de escolas, de programas midiáticos, de blocos carnavalescos, de políticos, bandas, entre outros que oprimem as mulheres desse lugar.
A meu ver, a hashtag #meuamigosecreto constituiu-se como movimento internáutico divertido e criativo. Primou pela ironia de denúncia das relações de poder assimétricas implícitas em certas práticas e atitudes. Uma proposta abrangente, pois abriu espaço para vozes opositoras ao racismo, à misoginia, à LGBTfobia e à heteronormatividade também.
Gerou ainda uma hashtag complementar, #minhaamigasecreta. Pudemos ler textos interessantes como: "#?minhaamigasecreta e #?meuamigosecreto têm a pele branca e nunca abrem mão do protagonismo. Acreditam que, na música 'Olhos coloridos', 'todo brasileiro' realmente antecede o trecho 'tem sangue crioulo'. Na Vila Madalena (bairro cult de São Paulo), usam turbante e aumentam o volume do cabelo pra dizer que são negros, ainda que tenham todas as vantagens sociais de ter a pele clara. Descobriram a mitologia africana e acham que Orixá é horóscopo. Acham justo, sem nunca ter sofrido racismo, se inscrever como cotista em concursos públicos. Podem também ser vistos na versão cosplay indígena, isso depende das vibrações do dia”.
Houve também os que acusaram a campanha de transformar a web em mar de indiretas. Ora, ora, o clima catártico é norma nas redes sociais, ou não? Deixou de ser e não percebi? Por que a catarse contra o racismo, a misoginia, a LGBTfobia é tão incômoda? Por óbvio, as mulheres quando exercem o poder da palavra, de maneira autônoma, sem tutela, desconstroem o poder dos machos, machistas e heteronormativos de plantão.
Os homens poderiam se sentir convidados ao autoexame de próstata a partir das tags, ao invés de se defenderem como meninos mimados que deixaram o pirulito cair no chão. Convido-os a ouvir este sujeito lúcido: “Galera (outros homens), cês tão ligado que esses #?meuamigosecreto que as mina tão falando e vocês tão dizendo 'arranjem amigos melhores', são a gente né? É a gente. Nós tudo. Os homens. Nas suas mais variadas formas. A gente é machista, galera. É racista também. E homofóbico. É bom virem lembrar a gente porque dá pra esquecer quando você se coloca como aliado e tal. Mas se você ler cada relato com calma não duvido que vai encontrar um ou outro (ou vários) que remetam a alguma coisa que você já fez mas acha que não faz. A treta não é só pro outro cara não. É pra você e eu também”.
Para finalizar, a campanha #meuamigosecreto anunciou em neon outra, vigorosa há 24 anos, o que elimina a acusação de “modinha” da internet. Falamos dos 16 Dias de Ativismo Pelo Fim da Violência Contra a Mulher, iniciada em 1991, em 130 países. O dia 24 de novembro, marco de lançamento da hashtag #meuamigosecreto, antecedeu o Dia Internacional da Não-Violência Contra as Mulheres (25 de novembro), data de abertura do período de 16 dias a ser finalizado no Dia Internacional de Direitos Humanos (10 de dezembro).
E depois do destaque em neon, convocamos a placidez de um poeta para fechar esta crônica: “O mais lindo desse #?meuamigosecreto é que, no fundo, ele propõe um diálogo, dá uma oportunidade para quem oprime se olhar no espelho e refletir. O opressor que vive em mim lê e é todo ouvidos. Nada a postar, só a refletir. Obrigado, amigas.”
(*) Cidinha da Silva é escritora. Publicou, entre outros, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê, 2013) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014). Despacha diariamente em sua fanpage