O futuro redescoberto: um olhar feminista sobre “Que horas ela volta?”

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Dar relevo àquilo do mundo que se oculta: limites morais, preconceitos tão antigos quanto naturalizados, regras e práticas de convívio social que subalternizam o outro. Talvez esta seja uma das responsabilidades sociais do cinema. Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, dialoga com essa responsabilidade Por Daniela Lima, no Blog do Boitempo

À minha mãe.

Em um dos momentos mais inspirados de Esculpir o Tempo, Tarkovski diz que a responsabilidade do diretor de cinema é dar aquilo que o público precisa – mesmo que ele não saiba. É enfrentar a ideia de que o cinema existe apenas para divertir ou produzir um afastamento da vida cotidiana que – muito equivocadamente – achamos que conhecemos bem.

Dar relevo àquilo do mundo que se oculta: limites morais, preconceitos tão antigos quanto naturalizados, regras e práticas de convívio social que subalternizam o outro. Talvez esta seja uma das responsabilidades sociais do cinema. Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, dialoga com essa responsabilidade.

Tarkovski também diz que os objetivos do cinema não podem ser meramente utilitários e pragmáticos: fazer rir, fazer chorar, fazer pensar. O efeito sobre o público e a sociedade é sempre mais complexo e profundo do que esses termos admitem.

Anna e o protagonismo das mulheres

Um filme dirigido por uma mulher e que gira em torno de três protagonistas mulheres: patroa, empregada e sua filha. Numa coversa por telefone, Anna Muylaert me disse que não pretendia fazer um filme feminista, mas que agora se dá conta de que fez: “as mulheres são protagonistas do filme, o que já é raro num universo de personagens masculinos, em que mulheres idealizadas por homens fazem as suas secretárias, amantes…”.

Para comprovar essa predominância masculina, foi criado o “teste de Bechdel”, que, grosso modo, avalia se filmes têm a participação mínima de mulheres. Para isso, o filme precisaria ter pelo menos duas personagens mulheres, com nomes, que conversem uma com a outra sobre qualquer coisa, que não seja um homem. Parece simples, mas muitos filmes e séries não passam no teste.

Antes mesmo da estreia, Que horas ela volta?  já provocou um intenso debate sobre machismo: de acordo com relatos do público, dois outros cineastas tentaram impedir que Anna se sentasse no palco durante um debate sobre o filme realizado pela Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. Um deles ainda teria chamado Regina Casé, uma das protagonistas do filme, de gorda.

Quando conversamos, Anna disse que se espera que “mulheres façam sucesso, até certo ponto e que ela passou do ponto”, mas que o “mais importante é abrir o debate sobre o aprendizado da sociedade em aceitar situações em que o protagonismo é das mulheres, e a coadjuvância, dos homens”.

Aquilo que está oculto

Segredo é um direito ou um privilégio? Alguns segredos ajudam a estruturar o domínio de uma classe sobre a outra. Ocultam a violência física e psíquica na esfera privada. A separação entre público e privado permitiu que esses segredos se mantivessem protegidos pelos muros e grades. Essa separação retira o caráter político das relações de poder no espaço doméstico, permitindo que regras e práticas perversas se naturalizem.

Em Que horas ela volta?, a empregada pergunta se ela e a patroa podem conversar, a resposta é sim. Mas não há escuta. “Estou precisando conversar com a senhora”, “Claro, deixou a lasanha lá?”, “Deixei, deixei, mas e o…?”, “Obrigada, amor, chega cedo segunda, beijo”. O filme de Anna vai mostrando como essas regras subalternizam a empregada. Subalternização que começa no uso da palavra empregada para designar trabalhadoras domésticas. Todo empregado é trabalhador, mas nem todo trabalhador é empregado. Ser empregado indica pessoalidade, não-eventualidade, subordinação e remuneração no trabalho. Mas a escolha de usar a palavra empregada, quando se poderia dizer trabalhadora, não é casual. Empregada tem um valor simbólico da passividade: aquela que foi empregada por alguém. Já trabalhadora indica ação: aquela que trabalha. Val é tratada como a empregada de Bárbara. Jéssica é a filha da empregada de Bárbara. Aliás, de Dona Bárbara.

Aquela que perturba aquilo que está oculto

Val pergunta se Jéssica pode ficar na casa dos patrões para prestar vestibular. Ao que Bárbara responde: “Jéssica? Quem é Jéssica?”. De acordo com a passagem do tempo do filme, Val mora e trabalha na casa de Bárbara há mais de dez anos. Como é possível não saber de uma informação tão básica sobre alguém que é quase da família? Sim, é possível imaginar que Val possa ter evitado o assunto… Mas, como a dinâmica da relação não envolve escuta, é mais provável que Bárbara simplesmente não tenha se interessado pelas histórias, desejos e afetos de Val. Bárbara trata Val como mais um objeto funcional da casa.

Esse jogo, propositalmente exagerado no filme, pretende ampliar aqueles pequenos gestos cujo significado cotidiano recai sobre uma zona cinzenta de interpretação. É necessário que Bárbara seja apresentada como uma megera, que suas tintas sejam carregadas, para dar relevo às pequenas violências cotidianas, que não são apenas naturalizadas, mas traduzidas como bondade: um quartinho que mal cabe uma cama, mas “tem até televisão e ventilador”.

A atriz Karine Teles, que interpreta Bárbara, consegue gerar certo mal-estar quando se coloca como reflexo dos maneirismos da classe alta, que não está acostumada a se ver representada de forma crítica. Sobretudo, quando Bárbara passa de uma posição de violência cordial para a violência explícita: “cuida para ela ficar da porta da cozinha para dentro, entendeu?”.

Bárbara e a emancipação fictícia

O gesto de Jéssica não abraçar a mãe no aeroporto expõe uma das consequências da transferência do trabalho doméstico e dos cuidados da família para outras mulheres. Ser segunda mãe de Fabinho, filho de Bárbara, retirou a possibilidade de Val ser mãe de Jéssica. Quando a emancipação de uma mulher é resultado da transferência do trabalho doméstico para outra mulher, não pode ser vista como emancipação real.

O termo quase da família, aquela que integra sem verdadeiramente integrar a família e que trabalha sem ter o trabalho reconhecido como trabalho, é uma das máscaras que escondem a exploração no espaço doméstico. A divisão sexual do trabalho e as marcas indeléveis da escravidão estão presentes nas regras e práticas do trabalho doméstico no Brasil. É uma herança nefasta do Período Colonial inscrita no sistema racista-capitalista-patriarcal. Segundo Christine Delphy, o trabalho doméstico não gratuito ou mal remunerado é um dos pilares ocultos da economia geral de exploração capitalista.

Dizer que Val, morando na casa dos patrões, trabalha em tempo integral não é exagero: até a aprovação da PEC das Domésticas, em 2013, trabalhadoras domésticas não tinham acesso a direitos básicos, como jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais, pagamento de horas extras e adicional noturno, fundo de garantia por tempo de serviço e seguro-desemprego.

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Lavar roupa, cozinhar, limpar a casa, cuidar dos filhos: esses trabalhos não são inferiores em si mesmos, são inferiorizadas para inferiorizar também quem os faz. A transferência do trabalho doméstico para outra mulher não garante igualdade para mulheres que, assim como Bárbara, trabalham fora: reproduz essa desigualdade entre mulheres. Como nos alerta Beauvoir, não existe salvação individual. O fim da divisão sexual do trabalho é também o fim desta hierarquia. Igualdade de direitos e condições é a única saída para que todos possam fazer escolhas legítimas (escolher entre ser trabalhadora doméstica ou morrer de fome não é uma escolha legítima) – inclusive, escolher cuidar da casa e dos filhos.

A emancipação fictícia de Bárbara é exposta também quando Carlos, marido de Bárbara, diz que é ele quem sustenta a casa. Nas palavras de Carlos: “todo mundo dança, mas eu escolho a música”.

Carlos, Fabinho e a herança como manutenção da desigualdade

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A alta burguesia russa se perguntava, antes da Revolução, o que tinha feito para que quisessem destruir seu modo de vida. Queriam, em desespero, impedir o futuro. Era como se não percebessem a relação entre o seu modo de vida e a violência sistêmica necessária para sustentá-lo.  

Uma das funções da família patriarcal é perpetuar desigualdades de uma geração à outra por meio da herança. Carlos, papel de Lourenço Mutarelli, é herdeiro de uma grande fortuna. Não precisa se preocupar em trabalhar. Fabinho, na maior parte do filme interpretado por Michel Joelsas, será herdeiro de Carlos e também não precisa se preocupar em trabalhar ou estudar. Interessa a eles, assim como interessava à alta burguesia russa, a manutenção das desigualdades. Isso se reflete tanto no imobilismo dos personagens como nas tentativas de dominar e assediar Jéssica, que representa uma ameaça ao seu modo de vida.

Jéssica e a tinta vermelha

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Uma mulher consegue trabalho na Sibéria. Sabendo que todas as suas correspondências seriam lidas pelos censores, ela combina um código: se as notícias forem verdadeiras, ela escreverá em vermelho. Já as falsas serão escritas em azul. Chega a primeira carta: “tudo é uma maravilha por aqui, lojas abastecidas, comida abundante, apartamentos amplos e aquecidos. Só não temos tinta vermelha”. Pensei nesta piada, contada e recontada pelo Žižek, após sair do cinema. Jéssica – interpretada com tanta naturalidade por Camila Márdila que tenho vontade de dizer “vivida” e não “interpretada” – parece trazer a tinta vermelha para o filme.

“Mas onde você aprendeu isso? Está em algum livro?”, pergunta Jéssica. Ao que Val responde: “você parece de outro planeta, tem coisas que a gente já nasce sabendo”. Quando Val diz que “a gente já nasce sabendo”, ela se refere ao fato de que já nascemos numa sociedade cindida por desigualdades abissais. Mas as regras e práticas que reafirmam essas igualdades são diferentes entre classes sociais diferentes. Jéssica, criada no interior de Pernambuco, não conhecia os maneirismos da elite paulistana. Não compreende a razão de Val morar na casa dos outros, num quartinho com vista para uma parede de concreto, onde mal cabe uma cama. Não compreende as razões para não poder circular pela casa ou comer a mesma comida dos patrões. Não compreende que chamem de quase da família aquela que é tratada, nas palavras de Jéssica, como cidadã de segunda categoria.

Uma das habilidades dos sistemas exploratórios é mudar o simbolismo das coisas sem mudá-las concretamente: basta dizer que uma trabalhadora doméstica é quase da família para que não se fale mais em exploração. Um dos primeiros impactos do filme é justamente mostrar a perspectiva de Val da casa por uma câmera fixa na cozinha. Tudo aquilo que se passa na casa é registrado por uma porta que tem a metade do tamanho de uma porta padrão. Por aquela fresta, ela vê os patrões comerem, se movimentarem, sentarem, viverem. Esse seria um dos limites entre Val e a família.

Além da separação de espaço, existe a separação da comida entre a comida dos patrões e a comida dos empregados. Val tenta explicar a Jéssica: “quando eles te oferecem uma comida que é deles, é por ter certeza que você vai dizer não”. Jéssica não compreende essa encenação que esconde, atrás de sorrisos e vozes simpáticas, uma segregação violenta. Desafia essas regras quando toma café na mesa dos patrões, quando almoça com Carlos e come o sorvete de Fabinho, quando aceita que Bárbara faça um suco para ela. É um crescente de ações que faz com que a violência cordial de Bárbara se transforme em violência explícita. É a tinta vermelha.

Val diz que Jéssica “olha tudo como presidente da república” e “se acha melhor do que todo mundo.” Ao que Jéssica responde: “não me acho melhor, só não me acho pior”.

Val e a piscina

A escolha de Regina Casé para interpretar Val é o ponto mais delicado do filme. Antes de ver Que horas ela volta?, ouvi que a presença dela poderia transformar o filme em uma comédia de costumes e reduzir a sua força política. A minha perspectiva sobre a escolha de Regina era muito diferente dessa: ela poderia dialogar com outros públicos.

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Retomo Tarkovski: um filme não precisa seguir fórmulas elitistas para concretizar o seu potencial político de atingir as pessoas. A minha impressão é que, justamente por fazer Val transbordar os limites dela mesma, é que Regina atinge o público. Quando Jéssica passa na primeira fase do vestibular, Val quebra as regras e entra na piscina. Mas não uma piscina cheia e durante o dia, como Jéssica experimentou. Mas à noite, numa água que só molhava os seus calcanhares. Ao contrário de Val, Regina parece mergulhar numa piscina cheia, espalhar água e molhar todos que estão à sua volta. Regina atinge o público.

Anna me disse que a piscina é colocada como esse símbolo máximo de segregação por ser “o lugar mais exclusivo das classes altas”. Quando Jéssica pula na piscina, começa o desmonte das regras e práticas daquele espaço doméstico. Mas elas se refletem e se conectam com o sistema injusto e desigual que rege a esfera pública. É este sistema que Jéssica vai enfrentar passando no vestibular. Um sistema que não é apenas uma abstração: atinge concretamente a vida das pessoas. Um sistema que segrega com a escassez de bolsas de permanência, cotas, cursos noturnos, creches e bandejões. Um sistema que precisa ser desmontado coletivamente.

Antes de sair da piscina, Jéssica dá um mergulho profundo, daqueles que modificam o tempo e ameaçam estruturas. Minha conversa com Anna Muylaert terminou com ela dizendo que se sentia como Jéssica pulando na piscina. Anna é a primeira cineasta, em 30 anos, a representar o Brasil no Oscar. Que horas ela volta? traz a esperança de um futuro que não se reflita unicamente no retrovisor.