O que seria um debate sobre a PEC 32, proposta de Jair Bolsonaro para retirar direitos de servidores públicos, promovido pela vereadora Graciele Marques (PT), única mulher no legislativo de Sinop, no Mato Grosso, virou álibi para uma perseguição machista e misógina de grupos bolsonaristas que usam a ilusória tese do "racismo reverso" para atacar a parlamentar e a professora Lélica Elis Pereira de Lacerda, do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Mato Grosso.
Convidada para dar subsídios científicos ao debate, Lélica fez uma contextualização histórica sobre a sociedade patriarcalista branca, que fez com que vereadores, ruralistas e a mídia liberal classificassem sua exposição como racista contra os homens brancos, que formam a elite rural da cidade, que foi criada nos anos 70 a partir de um projeto colonialista da Ditadura oferecido à então Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná - cuja sigla deu nome ao município.
"Quando eu faço críticas bem feitas e contundentes ao homem branco burguês, muitos deles se identificaram. Eu os deixei nus em todos os segredos mais perversos que eles carregam e querem omitir atrás de slogans mistificadores como agro é tecno, agro é pop. O que mostrei foi que o homem branco burguês é o grande problema do planeta. E muitos deles pensavam que eu os conhecia e estavam atacando pessoalmente", disse à Fórum Lélica Elis, que deixou de viver em Mato Grosso por causa das ameaças, inclusive de morte, que vem sofrendo.
"Racismo reverso é o terraplanismo das relações raciais. Qualquer um que leu qualquer coisa sabe que nunca existiu. Os negros nunca escravizaram brancos. Os negros estão dentro de uma estrutura social constituída dentro do processo colonial e que o capitalismo se apropria dela para manter uma hierarquização do trabalho, para poder manter o mercado. Essa foi outra coisa que fui revelar", contou a professora da UFMT.
Em sua aula na Câmara Municipal de Sinop, Lélica despertou a ira da elite rural da cidade ao dizer que " Sinop é em si o nome do poder colonial que disconsiderou a existência de pessoas nesta terra, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, porque que desconsiderou? Porque existe uma compreensão de supremacia racial".
Pela fala, ela foi atacada entre outros pelo deputado estadual Gilberto Cattani (PSL), que enviou um requerimento pedindo explicações ao legislativo e a diversos órgãos da cidade e do estado. Detalhe: bolsonarista, o deputado é conhecido pelos ataques às mulheres e comunidade LGBTQI+. Em maio, ele fez uma postagem em suas redes sociais que diz que "ser homofóbico é uma escolha e ser gay também", gerando repúdio de entidades.
"Quando me acusam de racismo reverso revelam a profunda ignorância, o que não é novidade para ninguém. E leva esse tipo de argumentação absurda. E isso se reflete em toda a elite, inclusive na de Mato Grosso, que ficam repetindo teses superadas na ciência para poder justificar seu ódio e sua prática. É um erro básico, uma superignorância com certeza", disse Lélica.
Perseguição
Em entrevista ao Fórum Café, a vereadora Graciele contou sobre a luta contra a perseguição contra ela e a professora Lélica na cidade, que já recebeu o apoio de centenas de entidades representativas da sociedade.
"Quando as pessoas se sentem ofendidas com a fala da professora Lélica são justamente as pessoas que praticaram crimes tanto ambientais, quanto contra os trabalhadores daqui. São as famílias tidas como pioneiras, colonizadoras e é por isso a ofensa", afirmou Graciele (Assista a entrevista na íntegra abaixo).
Fora de Mato Grosso temporariamente para buscar apoio, Lélica diz que não vai se calar.
"A mistificação estamos enfrentando com ciência e a força nós vamos enfrentar resguardando minha vida e da Graciele. A Comissão de Direitos Humanos de Brasília já está sabendo e acompanhando nossa situação e não vamos nos calar e nem recuar. É o modus operandi do gabinete do ódio de Bolsonaro. Eles pegam minha fala de modo parcial, constróem uma narrativa de modo a gerar o ódio contra mim, porque eles têm a arma de promover a irracionalidade e provocar nas pessoas aquilo que tem de pior no ser humano: o ódio, o preconceito", diz a professora, que contou à Fórum como deixou o Estado.
"A medida que tomei nesse momento foi resguardar minha vida. Nesse momento não estou mais em Mato Grosso. Foi muito dificil me ver tendo fugir como uma foragida. Tive que vir disfarçada de boné, óculos. Tive muito medo de ser reconhecido no aeroporto por bolsonaristas e ser violentada", finaliza.