Por Rosana Pinheiro
Há 12 anos, quando a professora Maria de Jesus Sampaio, 50, assumiu uma sala do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), em Heliópolis, São Paulo, o desafio era atrair alunos para o curso. "Eu tinha a sala mas não tinha alunos, então saia batendo de porta em porta pra ver quem precisava ser alfabetizado."
Em 2020, Maria tinha alunos mas, ironicamente, por conta da pandemia, não podia usar sua sala de aula. O antigo hábito de ir até as pessoas voltou a fazer parte da rotina das educadoras, que não queriam deixar os 360 alunos da região Heliópolis desamparados.
"A alfabetização demanda, em primeiro lugar, acolhimento. Pra você ter uma ideia, eu pego na mão de alguns para ajudar na coordenação motora. Então você imagina como foi para essas pessoas manterem a motivação e estudarem em casa." conta Maria, que ainda hoje dá aulas em esquema híbrido. Alguns alunos participam por chamada de vídeo e outros encontram-se com a professora para tirar dúvidas e pegar tarefas."Muita gente ainda tem medo de voltar e pegar o vírus. Outros não sabem mexer no celular ou só tem um aparelho que precisam dividir com toda a família. Então a gente teve que se adaptar à nova realidade."
No dia em que a reportagem visitou a professora Maria na sede da UNAS, em Heliópolis, Sebastião Ribeiro de Jesus, 85, aguardava para que a professora "passasse algumas continhas''. Ele faz parte da turma da professora Maria - hoje com 20 alunos - desde a sua formação em 2009. "Eu estou bem na leitura, mas percebi que esqueci as continhas, então vim pegar umas atividades com a professora." Sebastião é um dos alunos que não se adaptou ao esquema remoto e conta com a ajuda da professora Maria para manter-se atualizado. "Eu dou glória a Deus pela paciência da professora. Hoje eu sei que estudar é pra sempre e ela não me deixa desistir."
A dois quilômetros dali, a professora Rita Maria, 65, recebe alunas em uma sala do MOVA, dentro de Heliópolis, que está trabalhando com 35% de ocupação, em esquema de rodízio. "Hoje estamos conseguindo receber algumas pessoas aqui, com distanciamento. Mas quando não dá, eu vou até eles. A gente se encontra na feira. Cada um traz o seu caderno para eu ver a lição e passar atividades." Nos momentos mais críticos da pandemia, Rita preferiu encontrar cada aluno separadamente. "Eles me ligavam e eu ia até a porta da casa de cada um para corrigir e tirar dúvidas. Andei por tudo isso aqui. Não foi fácil."
O Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA) nasceu nos anos 1990 como iniciativa do então secretário de educação da cidade de São Paulo, Paulo Freire. O educador e filósofo é constantemente homenageado pelas 16 professoras que ministram aulas nas salas da região de Heliópolis. Na sala da professora Rita, uma grande caricatura de Freire toma metade da lousa. "Eu escrevi uma poesia comemorando os 100 anos de Paulo Freire. Mas a inspiração mesmo foi uma aluna. Ela falava 'eu perdi meu emprego porque eu não sei ver os números, eu não sei ler, professora.' Com a indignação dela me veio a inspiração."
Em São Paulo, as salas do MOVA atendem mais de 11 mil pessoas. O programa funciona através de parcerias entre entidades sem fins lucrativos e a Secretaria Municipal de Educação. Em Heliópolis, a UNAS - União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região é a entidade que cordena o programa. Em abril de 2020, a Prefeitura chegou a suspender a verba do MOVA, deixando professores sem nenhuma remuneração. "Os vereadores conseguiram reverter essa decisão depois de dois meses, mas foi um grande baque para nós. As professoras foram guerreiras e em nenhum momento deixaram de atender a todos, ainda que de forma remota." conta Rubenildo Limeira de Souza, 38, coordenador do programa na região de Heliópolis, que hoje conta com 17 salas.
Para os alunos um alívio. Maria Dolores da Silva, 67, começou a aprender há exatamente um ano. "Agora eu consigo fazer as contas de casa para ver se o dinheiro dá. Eu faço e mostro para o meu filho pra ver se tá certo. Foi ela [professora Rita] que me convenceu a aprender. Foi bem na época da pandemia. Então ela ia até a minha casa, buscava os meus cadernos e passava lição." conta Maria. "Antes me falavam 'você é burra'. Mas ninguém é burro. Porque eu nunca vi um burro com um caderno e um lápis na mão."
Cleusa de Oliveira, 69, fala com alegria dos avanços que fez no programa. "A pior situação é quando você vai procurar um emprego e precisa preencher uma ficha. Você fica ali com a caneta sem saber o que fazer. Hoje eu não passo mais por isso."
As professoras explicam que o trabalho de alfabetização não é um processo padronizado. "O maior medo deles é chegar aqui e alguém começar a rir porque eles não sabem escrever. Então a gente começa conversando com a pessoa, com a turma. Educando essa turma para que eles saibam que aqui todos são iguais e que cada um vai aprender no seu tempo." fala Rita. "Alguns alunos ficam anos com a gente, outros conseguem seguir para o supletivo, faculdade. O que mais me emociona é vê-los sonhando com isso. Outro dia eu ouvi uma mãe e filha, que frequentam a aula, dizendo que elas vão para a faculdade um dia."
E qual é o sonho das professoras? "Continuar alfabetizando. Eu vivo o meu sonho", conta Maria. "Esse trabalho é o que me faz um ser humano melhor. Como dizia Paulo Freire 'Me movo como educador, porque, primeiro, me movo como gente.'"
De acordo com dados do IBGE, o Brasil tem 11 milhões de analfabetos. A meta do Plano Nacional de Educação é erradicar o analfabetismo até 2024.